17.1.09

o som e a fúria



A companhia nesta peça. Da esquerda para a direita:
À frente, no chão, Tory Vazquez, April Matthis.
Na fila de trás: Mike Iveson, Ben Williams, Vin Knight, Aaron Landsman, Kaneza Schaal, Kate Scelsa, Randolph Curtis Rand, Susie Sokol, Greig Sargeant, Annie McNamara.


"The Sound and the Fury (April Seventh, 1928)", pela companhia de teatro nova-iorquina Elevator Repair Service, na Cultugest. Fomos ver ontem. Excelente (só as cadeiras são banalmente desconfortáveis, mas parece que o melhor teatro em Portugal quer-nos colocar em desconforto físico antes de nos colocar em desconforto moral).

"O Som e a Fúria", de William Faulkner, escrito em 1929, é a história de decadência de uma família sulista dos EUA no princípio do século XX. A obra divide-se em quatro partes, todas contando basicamente a mesma história - mas narrada de pontos de vista diferentes e, portanto, com acessos distintos ao mundo. As três primeiras narradas por três irmãos, a última narrada na perspectiva da terceira pessoa. A primeira parte, a mais marcante, é narrada por Benjy, mudo e retardado. (Não me venham com coisas politicamente correctas acerca da expressão: é a expressão apropriada para o que se pensava disso quando o texto foi escrito.) Essa primeira parte é o fulcro artístico da obra: por comentários deixados por Faulkner, dá a ideia de que todo o resto do livro é apenas para ajudar o leitor a compreender progressiva (e penosamente) o que está em causa. A "peça" é, nem mais nem menos, a leitura directa quase integral dessa parte da obra original. Teatro de palavra, portanto. E que palavra.


Susie Sokol



Como é que pode ser o mudo o narrador? O que lemos é o "fluxo de consciência" de Benjy, os seus pensamentos desorganizados, filtrados pela sua forma "simplificada" de acesso ao mundo, onde mistura a percepção do que se está a passar naquele dia presente (7 de Abril de 1928, dia do seu 33º aniversário, quando atinge a idade final de Cristo) com uma colecção de memórias fragmentárias, em que os episódios vão aparecendo aos bocados, misturados, num puzzle quase impossível de deslindar (apesar de Faulkner ter distinguido, com passagens itálico/não itálico, todas as mais importantes mudanças de episódio). Benjy, o atrasado, a quem mudaram o nome quando perceberam que era atrasado, para não conspurcar o nome original, (Maury, o nome do tio, irmão da Mãe), é verdadeiramente a voz da situação. A voz pura de um mudo, um dos poucos que nunca terá culpa de nada. Escreveu-se que o título "O Som e a Fúria" vem daí, por Shakespeare ter escrito, no Macbeth, monólogo da cena 5 do acto 5:



"Amanhã e amanhã e amanhã,
Insinua-se este ritmo mesquinho dia após dia,
Até à última sílaba de tempo registado,
E todos os nossos ontens iluminaam parvos
A caminho da morte poeirenta. Apaga-te, vela breve!
A vida não é mais que uma sombra ambulante, um pobre actor
Que se pavoneia e aflige durante a sua hora no palco
E depois não se ouve mais: é um conto
Contado por um idiota, cheio de som e fúria,
Não significando nada.



Caddy will smell of trees. Isso é o que pensa Benjy de Caddy, a única da família branca que realmente é coerente com o seu amor pelo irmão (e o suficiente para ele sentir isso).
(Mike Iveson, Annie McNamara, Susie Sokol, Kate Scelsa, Ben Williams).



O crítico do The New Yorker que foi ver a peça, e escreveu sobre ela a 26 de Maio de 2008, diz que gostou de ver que um terço das pessoas saíram a meio - por isso mostrar que Faulkner ainda consegue pôr algumas pessoas fora de si! É que há muitos ingredientes a fazer deste espectáculo de teatro uma obra de consumo difícil.



Randolph Curtis Rand, Annie McNamara, Aaron Landsman, Kate Scelsa



Há mulheres a fazer de homens e homens a fazer de mulheres; brancos a fazer de pretos e pretos a fazer de brancos; a identificação actores/papéis não está suportada numa clara relação um-para-um (há 12 actores para 27 papéis, mas Benjy é quase sempre desempenhado por Susie Sokol, papel que partilha um pouco com Aaron Landsman; e as mudanças actor/papel normalmente ocorrem quando há saltos no tempo) ; o narrador Benjy, mudo que só geme e balbucia, é parcialmente representado por sons que não saem da sua boca e por movimentos que nem sempre se vêem no seu corpo; de vez em quando deixa-se ver directamente que se está mesmo a ler a obra de Faulkner, usando um exemplar dela.


Ben Williams, Vin Knight, Susie Sokol



A Mãe da família Compson (mãe de Benjy) reconhece-se como a senhora que existe às vezes sentada no cadeirão do comando - mas às vezes desempenhada por um homem negro. Vin Knight impressiona nesse papel de Mãe, com um roupão de dormir branco e uns grandes óculos pretos. Apesar disso, que devia assustar a "verdadeira senhora", ela pretende comandar mesmo o imaginário da família: foi dela a ideia de mudar o nome de Maury para Benjy quando descobriu que ele era "atrasado", para o afastar da linhagem da nomeação (Maury é o nome do seu irmão); é ela que detesta que se usem diminutivos em vez de nomes próprios correctos: chama Candace a Caddy, chama Benjamin a Benjy e protesta quando os outros não fazem isso.


Ben Williams, Mike Iveson



Há alguma muleta para facilitar a vida ao espectador no meio de coisa tão complexa? Bem, alguma coisinha: tudo se passa na sala da casa da família Compson, mas há muitas sugestões do que se passa lá fora (muitos sons e coisas como a bola de golfe que vem do campo em frente e cai ali); todos os actores estão sempre em palco e a mudar de papéis, mas a leitura literal do texto de partida até ajuda, porque contém os "disse a Mãe" e os "disse Quentin" que são como setas virtuais a apontar para as relações actores/personagens; não será dito exactamente todo o texto original, mas tudo o que seja dito constará exactamente do original. Isto ajuda? Em larga medida, sim. É muito mais fácil de seguir do que eu estava à espera. Apesar de, contrariamente ao que diz o encenador John Collins, conhecer o livro na íntegra melhorar a compreensão total do espectáculo. Note-se que há duas famílias, americanas sulistas, uma dela de negros (que falam "à negro", expressões traduzíveis para português como "Sinhô".) No espectáculo de Lisboa há legendagem, a que muitas vezes recorri para me orientar. E, ajuda preciosa, única concessão ao espectador, há no início e repete-se parcialmente mais duas vezes durante o espectáculo uma descrição das famílias em presença.


Kaneza Schaal



A actriz Susie Sokol (Benjy) e o actor Vin Knight


Em balanço: um grande espectáculo de teatro, que exige alguma disponibilidade e ganha se tivermos feito alguma preparação pessoal para o mesmo, a trazer à vida ainda outra vez um grande texto. Um texto que, quando o terminamos, nos deixa com um nó na garganta. Mas quem não quer nós na garganta vê telenovelas...


(O que o Ípsilon escreveu sobre isto, aqui.)