Paulo Pedroso ganha acção por prisão ilegal no processo da Casa Pia.
O meu primeiro blogue chamava-se Turing Machine e começou com um post que era sobre o "caso Paulo Pedroso". Foi publicado a 24/10/2003, aqui, e intitulava-se DREYFUS E MAIS ALÉM. Aqui vai ele de novo.
Robert O. Paxton publicou, na já longínqua edição de 27 de Fevereiro de 1986 da The New York Review of Books, uma recensão da edição em inglês de um livro de Jean-Denis Bredin sobre o famoso caso Dreyfus. Grande parte do que se segue são excertos desse comentário ao livro.
1. Um resumo dos factos: as falsificações existem. «Um dia em 1894 uma mulher-a-dias da embaixada alemã em Paris, que trabalha para a espionagem francesa, encontra no caixote do lixo do adido militar um papel indicando que um oficial francês está a passar segredos militares aos alemães. O capitão Alfred Dreyfus, único oficial judeu no Estado-maior francês, é injustamente acusado e oficiais superiores da espionagem fazem a acusação vingar forjando mais documentos. Adicionando ilegalidade à falsificação, mostram-nos secretamente ao tribunal militar, mas escondem-nos da defesa. Como o herói apodrece na Ilha do Diabo, apenas a sua esposa, o seu irmão, e alguns outsiders mantêm a crença na sua inocência. Os seus esforços para descobrir a verdade e persuadir outros da inocência do herói, passam-se em anos de voltas e reviravoltas. (...) Finalmente, após doze anos de luta, a justiça triunfa. O tribunal de recurso anula as duas condenações do tribunal militar.»
2. As conspirações são muito manhosas. «[O livro] está admiravelmente livre das teorias barrocas da conspiração que proliferam luxuriantemente em ambos os lados deste caso. Recusa supor que todos os mistérios devem ser solúveis por construção lógica. Está pronto a admitir que muitos detalhes continuam por esclarecer, mesmo após estudo aturado do dossier. (...)»
3. Liberdade individual e liberdades cívicas. «O autor teve inevitavelmente um interesse especial pelos dois advogados incompatíveis de Dreyfus. O velho e tradicionalista Edgar Demange quis arguir o caso em termos estritamente técnicos, limitar-se a suscitar uma dúvida salvadora, aplacar o exército, e aproveitar os compromissos propostos pelo governo. Colidiu com o jovem e flamejante Fernand Labori, que estava apaixonadamente empenhado em discutir o caso em termos de liberdades civis em sentido lato e em lutar pela vitória total. Dreyfus e sua família preferiram Demange. (...) Este homem austero e recatado, que queria apenas ser deixado só para viver a sua vida de patriotismo e dever, decepcionou os seus apoiantes mais militantes que desejavam uma cruzada. (...)» Mas, dizemos nós, o problema é que nem todos os exercícios de cidadania podem ser desempenhados de forma recatada - e a tentativa de assassinato cívico de um líder político não se trava na secretaria.
4. A justiça e a política não são como a água e o azeite. «O caso Dreyfus ocorreu num momento muito particular do desenvolvimento da política de massas (...). Demagogos através de toda a Europa experimentaram, nos anos 1880 e 1890, o anti-semitismo e o nacionalismo como a cola de um novo conservadorismo de massas. Tiveram sucesso considerável em separar uma parte da classe trabalhadora do socialismo. Mais de 39 por cento dos subscritores do "memorial a Henry," um fundo que o insolentemente anti-semita jornalista Edouard Drumont recolheu para apoiar a viúva do major Henry, o falsificador que estivera na origem do caso, após o seu suicídio, foram trabalhadores ou artesãos, que se juntaram com padres, oficiais e a pequena aristocracia rural para dar uns tostões e fazerem umas provocações.»
5. Convém não esquecer as lições da história. «[O autor] tem o equilíbrio para ver o caso de Dreyfus como mais do que um marco na história do anti-semitismo moderno. (...) A lealdade de grupo de um oficialato sitiado e a famosa justificação que Charles Maurras fez dos actos do major Henry como "falsificação patriótica", certamente a defesa mais seca da raison d'état alguma vez escrita, não tem uma conexão necessária com o anti-semitismo. Há perigos em todos os estados modernos (...).»
6. Do século XIX para o século XXI. Nesta nossa democracia, tantas vezes se toma quase como insulto ser "um homem de partido". Mas é isso que permite que, em determinado momentos, saibamos com que opções e biografias concretas contamos. Contrariamente a certos providenciais instantâneos, que de repente se apresentam com as credenciais da falta de passado partidário, nós sabemos de onde vêem certos homens e mulheres porque são "de partido" e porque os partidos servem também (embora sem exclusivo) para estruturar personalidades representativas com profundidade, que sejam "marcos" no terreno público e forneçam à comunidade referenciais devidamente identificados e escrutinados anos a fio.
Houve-se muito agora o slogan "os políticos são iguais aos outros". Ora, os políticos não são iguais aos outros. Os privilégios e responsabilidades acrescidas dos políticos devem ser proporcionadas às necessidades do bem comum. Mas nenhuma sociedade é suficientemente rica para se permitir destruir os seus recursos escassos. E os bons políticos são recursos escassos, em toda a parte. Os políticos bem preparados, experientes, honestos, escrutinados ao longo de anos - são recursos escassos e vitais. A democracia não pode dar-se ao luxo de os destruir levianamente e sem motivo, abusando da fragilidade imensa da credibilidade pessoal. Ignorá-lo, em nome de um igualitarismo puramente abstracto, a coberto da tentação de ser agradável ao maior número, é uma irresponsabilidade que não deveria cometer-se.
Pior ainda quando, na mesma maré, se esquece que a demagogia em nome das vítimas é criminosa. E se ela visar, conscientemente ou por mera leviandade, os mecanismos que no concreto viabilizam a democracia, essa demagogia precisa ser combatida, sem tergiversação e sem medo. Embora o populismo e a facilidade tenham a boca larga e estejam sempre prontos a engolir-nos - e possam mesmo ensaiar a tentativa de limitar o direito à opinião livre, por formas capciosas disfarçadas de moralismo de qualquer obediência.
Post Scriptum, de hoje 2 de Setembro de 2008: Aos que preferem os linchamentos, a pedido das suas mentes brilhantes, apenas digo: ide para o inferno, vós que sois os seus construtores.