De Miguel Gomes, Aquele Querido Mês de Agosto tem sido bem recebido como filme "português" (mostraria o "Portugal profundo" com emigrantes e tudo) e tem sido largamente comentado como uma inteligente mistura de documentário e ficção.
Fomos ver e gostámos. Mas queria fazer uma apreciação "formal" sobre "Aquele Querido Mês de Agosto", por ele me fazer lembrar filmes cuja dinâmica central é uma mudança "de clima" que resulta quase imperceptível pela sua longa preparação mas brutal pelos seus efeitos. Exemplo: o "Sol Enganador", de Nikita Mikhalkov (1994), onde se começa numa atmosfera de exuberante alegria campestre, onde os homens são fortes e as mulheres são belas e os campos são invencíveis e o sol inesgotável - para pouco a pouco se revelar que as famílias mais bonitas podem esconder o longo tentáculo do ditador estaliniano e o corropio de desgraças que por essa via bate à porta. O filme gasta a sua longa duração a tornar-nos distraídos para o perigo - para, quando esse perigo se apresenta, nos ensinar a lição de que não devemos ser demasiado tocados pela felicidade, sob pena de nos tornarmos ingénuos, distraídos, facilmente comestíveis, presas cândidas.
Mas o que é que isto tem a ver com o filme em apreço?
"Aquele Querido Mês de Agosto" tem sido lido como uma mistura inteligente de documentário e ficção. Certo. Mas isso não chega.
Parece-nos que, mais do que isso, a passagem do "documentário" para a ficção serve como plataforma de outra passagem: a passagem de um clima de "Verão festivo e inconsequente" para um clima de potencial "tragédia familiar-amorosa". E não estou propriamente a falar dos amores adolescentes, porque esses só deixam dores instrutivas.
O ponto chave da ameaça dessa mudança de clima acontece quando os cantadores que preparam a "festa dos colhões" visitam a casa de Tânia e do seu pai. No cantar ao desafio que aí acontece, o cantador que actua pelos visitantes coloca explicitamente a acusação de incesto entre pai e filha, poucos minutos depois de esse pai ter dado mostrar de ciúme possessivo direccionado para essa filha. O cantador que defende a honra da casa continua num tom elevado - e, nesse ponto, pode esperar-se que o filme vai virar completamente de rumo e tornar-se numa história pesada. A realização não vai por aí e a tensão é expulsa um pouco a pontapé (como o cantador que levara o desafio demasiado longe). Contudo, do ponto de vista formal, fica afirmada a possibilidade de umas férias descontraídas e "juvenis" esconderem uma densidade trágica relativamente credível. E talvez tão documental como as cantigas pimba que muitos têm visto como o lado "documentário" deste filme.
Note-se bem que não pretendo que isto seja uma leitura "objectiva" do filme...