José Tavares, 1976, Arquivo Diário de Lisboa (daqui)
O Correio da Manhã publica hoje uma matéria apresentada assim: «Polémica. Governo montou rede de apoio na internet. Campanha com meios públicos.» A acusação básica é que o blogue SIMplex, criado para apoiar o PS nas últimas eleições legislativas, “foi alimentado com meios públicos usados a partir do Governo”, com “conteúdos fornecidos por um conjunto de assessores”, que “usaram o seu tempo, pago pelo erário público, meios informáticos e informação privilegiada para produzir propaganda” .
Vamos por partes.
Gente paga pelo erário público? Os membros do governo são pagos pelo erário público. Os deputados também. Os presidentes de câmara e os vereadores também. O mesmo para deputados europeus. E respectivos assessores. Quando o PM anda em campanha eleitoral, está a ser pago pelos dinheiros públicos. Quando chegar a vez de o PR fazer o mesmo, será do mesmo modo. Ou com deputados em exercício em campanha de recandidatura. O país paga a infra-estrutura da democracia, é assim em todo o lado onde há democracia, só não compreende isso quem preferia que o Estado fosse gerido por quem pudesse pagar do seu próprio bolso para exercer cargos políticos. Os assessores trabalham: o seu trabalho é político, a sua assessoria é política: quando o seu “político” titular vai à vida, eles vão à vida também. Só os salazarentos de serviço é que ainda exploram a repulsa anti-democrática pela política. Eu, que não sou assessor de ninguém, recebo uma bolsa: sou pago pelo erário público! Devo renunciar a escrever sobre política em blogues? E posso escrever sobre cinema e teatro, ou nem isso? Ou só posso publicar à noite, depois do horário de trabalho? Mas eu não tenho horário de trabalho! Terei de pedir autorização para escrever – ou até mesmo para pensar – em assuntos que não sejam “de serviço”? Estes tipos ultrapassam até a análise de Marx: quem me paga não compra só a minha força de trabalho, compra todo o meu tempo, não me deixando sequer margem para a reprodução do suporte orgânico da dita força de trabalho.
“Propaganda”, dizem eles. Essa só pode vir na linha da campanha da “verdade” do PSD de Pacheco Pereira nas últimas eleições. O PS, e o governo apoiado pelo PS, não deviam ter direito a apresentar as suas informações, nem os seus argumentos, nem a defender-se dos ataques múltiplos – porque isso é propaganda. Aquilo a que o CM chama “propaganda” é o exercício do debate democrático, tão-só. O que lhes dói é que tenha havido gente capaz de desmontar as mentiras sistemáticas avançadas por sectores para quem a derrota dos socialistas valia tudo. E mais: alguns blogues dizem verdades que jornais como o CM escondem, obliteram, ignoram. É isso que lhes custa?
Foram usados “meios informáticos do governo” para divulgar informação? Isso quer dizer o quê? Que os textos foram escritos num processador de texto chamado Word que estava no computador de trabalho do assessor X ou Y? Que as mensagens de correio electrónico foram enviadas do servidor de correio electrónico habitualmente usado por essas pessoas? E daí? As páginas do CM que estou a analisar chegaram-me, a meu pedido, digitalizadas. Crime: não comprei o jornal, alguém o digitalizou para mim. O monitor onde vi essas páginas é de um computador que não me pertence: crime? Em rigor, podia estar a trabalhar em “Robótica Institucionalista” em lugar de estar a escrever este texto: crime? Sequer criticável? Uma falha ética? Haja pachorra. Esta gente vive na idade da pedra, literalmente: parecem ser do tempo em que, se eu escrevesse na lousa do outro, só podia estar a usurpar o que não era meu.
Enfim, também sublinham que há blogueiros que escrevem sob pseudónimo. E daí? Há muitos outros blogues onde, por variadas razões, não é fácil saber quem são os seus autores. Isso é proibido? É criticável, porquê? Será só coscuvilhice doentia? Ou querem poder perseguir mais facilmente quem apoie o governo?
A única acusação séria que é feita é a de que o SIMplex teria usado “informação privilegiada”. Eu, que nem sou jurista, acho que isso quer dizer que foi usada informação que, devendo ser reservada por motivos legais a certas pessoas, foi disponibilizada a pessoas que não deviam ter acesso a ela. Essa acusação tem, pois, um contorno legal. Devia, então, ser circunstanciada: esperávamos exemplos de “informação privilegiada” abusada pelo SIMplex. Esses exemplos não são dados. Nada me faz crer que existam, mas aguardo.
Há, em destaques nas páginas desta novela, algumas pérolas exemplificativas da mente distorcida dos seus autores. Parece que no blogue Simplex se escreveu sobre coisas como o Magalhães e o TGV, óbvios temas de campanha eleitoral num blogue de campanha eleitoral. O CM acha que isso é notícia. Parece que no blogue Simplex se atacava a campanha de Ferreira Leite. O CM acha que isso é notícia. O blogue SIMplex defendia coisas que Ferreira leite atacava. E o CM acha que isso é notícia. Depois da campanha, foram criados outros blogues favoráveis ao governo. E o CM dá isso como notícia.
Acho que há aqui um outro problema: alguns jornais, habituados a determinar criteriosamente certo tipo de informações e análises que de modo algum deixam vir à luz do dia, mesmo conhecendo as matérias, ficam aborrecidos por haver hoje em dia blogues que são veículo alternativo a essa censura, encapotada ou nem tanto. Blogues que publicam, que argumentam, que opinam, que informam. Enquanto alguns jornais deitam poeira para os olhos. Ao CM e a outros jornais que temam a concorrência dos blogues, há que dizer: habituem-se.
Mas, no fundo, talvez haja outro problema aqui também: o CM diz que o material lhe foi mostrado por um dos membros do SIMplex. Quem será? Talvez algum candidato a notável que pensava que realmente nos iam pagar por escrevermos para o SIMplex, tendo ficado zangado quando os cheques nunca chegaram. Quem diz os cheques diz uma colunazinha num jornal de Lisboa ou qualquer outra tribuna onde mostrar a sua notável inteligência… Enfim, um tipo de fonte com que o CM deve saber lidar… Sempre houve gente a pretender ser sabedora de como lidar com as mudanças de ciclo político na perspectiva da gestão da carreira. Sempre houve “jornalistas” sabedores de como comer parolos ao pequeno-almoço. Com muito molho, claro.
(Declaração de interesses: eu fui, com muito prazer e honra, um dos autores do SIMplex.)
Ler ainda:
Escândalo: o governo faz política, por Pedro Adão e Silva, no Léxico Familiar
A Central, por Eduardo Pitta, no Da Literatura
A ética do bufo, por Rogério da Costa Pereira, no Jugular
Do 37º e 38º, por André Couto, no Delito de Opinião
Chamar os bois pelos nomes, por Tomás Vasques, no hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
Os ratos, por Tiago Barbosa Ribeiro, no Metapolítica
Dos métodos totalitários de propaganda, por Sofia Loureiro dos Santos, no Defender o Quadrado
De Salazar à república dosjuízes procuradores, por Miguel Abrantes, no Câmara Corporativa
A espuma dos dias, por Vasco M. Barreto, no Aparelho de Estado
Da ética, por Luís Novaes Tito, no A barbearia do senhor Luís
Da ética republicana ou qualquer outra, por Francisco Clamote, no Terra dos Espantos
e ainda
O país onde vivemos, por José Reis Santos, no Blogue de Esquerda
Vamos por partes.
Gente paga pelo erário público? Os membros do governo são pagos pelo erário público. Os deputados também. Os presidentes de câmara e os vereadores também. O mesmo para deputados europeus. E respectivos assessores. Quando o PM anda em campanha eleitoral, está a ser pago pelos dinheiros públicos. Quando chegar a vez de o PR fazer o mesmo, será do mesmo modo. Ou com deputados em exercício em campanha de recandidatura. O país paga a infra-estrutura da democracia, é assim em todo o lado onde há democracia, só não compreende isso quem preferia que o Estado fosse gerido por quem pudesse pagar do seu próprio bolso para exercer cargos políticos. Os assessores trabalham: o seu trabalho é político, a sua assessoria é política: quando o seu “político” titular vai à vida, eles vão à vida também. Só os salazarentos de serviço é que ainda exploram a repulsa anti-democrática pela política. Eu, que não sou assessor de ninguém, recebo uma bolsa: sou pago pelo erário público! Devo renunciar a escrever sobre política em blogues? E posso escrever sobre cinema e teatro, ou nem isso? Ou só posso publicar à noite, depois do horário de trabalho? Mas eu não tenho horário de trabalho! Terei de pedir autorização para escrever – ou até mesmo para pensar – em assuntos que não sejam “de serviço”? Estes tipos ultrapassam até a análise de Marx: quem me paga não compra só a minha força de trabalho, compra todo o meu tempo, não me deixando sequer margem para a reprodução do suporte orgânico da dita força de trabalho.
“Propaganda”, dizem eles. Essa só pode vir na linha da campanha da “verdade” do PSD de Pacheco Pereira nas últimas eleições. O PS, e o governo apoiado pelo PS, não deviam ter direito a apresentar as suas informações, nem os seus argumentos, nem a defender-se dos ataques múltiplos – porque isso é propaganda. Aquilo a que o CM chama “propaganda” é o exercício do debate democrático, tão-só. O que lhes dói é que tenha havido gente capaz de desmontar as mentiras sistemáticas avançadas por sectores para quem a derrota dos socialistas valia tudo. E mais: alguns blogues dizem verdades que jornais como o CM escondem, obliteram, ignoram. É isso que lhes custa?
Foram usados “meios informáticos do governo” para divulgar informação? Isso quer dizer o quê? Que os textos foram escritos num processador de texto chamado Word que estava no computador de trabalho do assessor X ou Y? Que as mensagens de correio electrónico foram enviadas do servidor de correio electrónico habitualmente usado por essas pessoas? E daí? As páginas do CM que estou a analisar chegaram-me, a meu pedido, digitalizadas. Crime: não comprei o jornal, alguém o digitalizou para mim. O monitor onde vi essas páginas é de um computador que não me pertence: crime? Em rigor, podia estar a trabalhar em “Robótica Institucionalista” em lugar de estar a escrever este texto: crime? Sequer criticável? Uma falha ética? Haja pachorra. Esta gente vive na idade da pedra, literalmente: parecem ser do tempo em que, se eu escrevesse na lousa do outro, só podia estar a usurpar o que não era meu.
Enfim, também sublinham que há blogueiros que escrevem sob pseudónimo. E daí? Há muitos outros blogues onde, por variadas razões, não é fácil saber quem são os seus autores. Isso é proibido? É criticável, porquê? Será só coscuvilhice doentia? Ou querem poder perseguir mais facilmente quem apoie o governo?
A única acusação séria que é feita é a de que o SIMplex teria usado “informação privilegiada”. Eu, que nem sou jurista, acho que isso quer dizer que foi usada informação que, devendo ser reservada por motivos legais a certas pessoas, foi disponibilizada a pessoas que não deviam ter acesso a ela. Essa acusação tem, pois, um contorno legal. Devia, então, ser circunstanciada: esperávamos exemplos de “informação privilegiada” abusada pelo SIMplex. Esses exemplos não são dados. Nada me faz crer que existam, mas aguardo.
Há, em destaques nas páginas desta novela, algumas pérolas exemplificativas da mente distorcida dos seus autores. Parece que no blogue Simplex se escreveu sobre coisas como o Magalhães e o TGV, óbvios temas de campanha eleitoral num blogue de campanha eleitoral. O CM acha que isso é notícia. Parece que no blogue Simplex se atacava a campanha de Ferreira Leite. O CM acha que isso é notícia. O blogue SIMplex defendia coisas que Ferreira leite atacava. E o CM acha que isso é notícia. Depois da campanha, foram criados outros blogues favoráveis ao governo. E o CM dá isso como notícia.
Acho que há aqui um outro problema: alguns jornais, habituados a determinar criteriosamente certo tipo de informações e análises que de modo algum deixam vir à luz do dia, mesmo conhecendo as matérias, ficam aborrecidos por haver hoje em dia blogues que são veículo alternativo a essa censura, encapotada ou nem tanto. Blogues que publicam, que argumentam, que opinam, que informam. Enquanto alguns jornais deitam poeira para os olhos. Ao CM e a outros jornais que temam a concorrência dos blogues, há que dizer: habituem-se.
Mas, no fundo, talvez haja outro problema aqui também: o CM diz que o material lhe foi mostrado por um dos membros do SIMplex. Quem será? Talvez algum candidato a notável que pensava que realmente nos iam pagar por escrevermos para o SIMplex, tendo ficado zangado quando os cheques nunca chegaram. Quem diz os cheques diz uma colunazinha num jornal de Lisboa ou qualquer outra tribuna onde mostrar a sua notável inteligência… Enfim, um tipo de fonte com que o CM deve saber lidar… Sempre houve gente a pretender ser sabedora de como lidar com as mudanças de ciclo político na perspectiva da gestão da carreira. Sempre houve “jornalistas” sabedores de como comer parolos ao pequeno-almoço. Com muito molho, claro.
(Declaração de interesses: eu fui, com muito prazer e honra, um dos autores do SIMplex.)
Ler ainda:
Escândalo: o governo faz política, por Pedro Adão e Silva, no Léxico Familiar
A Central, por Eduardo Pitta, no Da Literatura
A ética do bufo, por Rogério da Costa Pereira, no Jugular
Do 37º e 38º, por André Couto, no Delito de Opinião
Chamar os bois pelos nomes, por Tomás Vasques, no hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
Os ratos, por Tiago Barbosa Ribeiro, no Metapolítica
Dos métodos totalitários de propaganda, por Sofia Loureiro dos Santos, no Defender o Quadrado
De Salazar à república dos
A espuma dos dias, por Vasco M. Barreto, no Aparelho de Estado
Da ética, por Luís Novaes Tito, no A barbearia do senhor Luís
Da ética republicana ou qualquer outra, por Francisco Clamote, no Terra dos Espantos
e ainda
O país onde vivemos, por José Reis Santos, no Blogue de Esquerda