Uma das teses que fazem as delícias de algumas pessoas que se acham radicais, embora isso nem sempre seja mau e nem sempre seja bom, é a da conveniência de Portugal sair do euro. Não vou tecer grandes considerações sobre isso. Limito-me a deixar-vos um material que me parece relevante.
Como saberá quem me acompanha, não sou admirador de Francisco Louçã. Mas reconheço, desde sempre, que é um pensador consistente, muito bem preparado, actualizado e profundo, além de um político combativo e pessoa que considero honesta. Por isso vê longe as consequências que certos passos poderiam ter e não quer ficar associado a confusões. Em Março de 2012 deu à estampa um livro, com Mariana Mortágua, "A DIVIDADURA - PORTUGAL NA CRISE DO EURO", que na altura interpretei como um testamento político num ponto essencial, que resumiria assim: "não me misturem com essa malta que defende a saída do euro, porque não quero arder na fogueira dessa irresponsabilidade, se vier a acontecer".
Deixo-vos largos excertos do primeiro capítulo desse livro. É uma leitura longa, mas vale a pena.
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Francisco Louçã, Mariana Mortágua, A DIVIDADURA - PORTUGAL NA CRISE DO EURO
Excertos do Capítulo 1 : E se nos impuserem a saída do euro?
Comecemos pelo princípio, pela decisão de criar a nova
moeda, que se voltaria a chamar escudo. O cenário é então este: o governo,
perante as dificuldades económicas, decide aceitar o ultimato da Alemanha e
declarar a saída do euro, para passar a usar o escudo como moeda nacional.
Manda então imprimir em segredo as notas de escudo e prepara-se
para anunciar a grande novidade, numa sexta a noite, a hora do telejornal,
quando os bancos já estão fechados (ou decreta um feriado bancário durante
vários dias). Nesse fim-de-semana, todos os bancos fazem horas extraordinárias
para distribuir as notas por todos os multibancos, para que a nova moeda possa
entrar imediatamente em circulação.
(…)
O que vai acontecer, em qualquer caso, é que toda a gente
descobrirá que se prepara uma nova moeda. Esta operação de lançamento do escudo
envolve milhares de pessoas, que transportam e distribuem as notas, e que irão
certamente contar às suas famílias. De qualquer modo, todos assistiram nas
semanas anteriores a declarações dos ministros a explicar que a situação vai
muito mal e que serão necessárias medidas corajosas para salvar a Pátria. Todos
assistiram as cimeiras europeias de emergência e perceberam o que se estava a
passar. Há segredos que simplesmente não podem ser guardados.
O que farão então as pessoas? Não é preciso adivinhar: vão a
correr aos bancos levantar todas as suas economias e guardar as notas de euros.
Se não o fizerem, as suas poupanças vão ser totalmente transformadas em
escudos, a um valor nominal que cairá com a forte desvalorização que, afinal, é
o objectivo desta operação. Ou seja, as poupanças vão ser tão desvalorizadas
quanto a moeda em que passam a estar registadas. Os trabalhadores que
depositaram salários e pensões vão ser as primeiras vítimas da nova política.
Por isso, vão tentar salvar o que puderem.
Não são só os trabalhadores, diga-se de passagem. Haverá uma
enorme fuga de capitais. As empresas, os fundos financeiros, todas as instituições
que tiverem dinheiro depositado nos bancos que atuam em Portugal quererão pô-lo
lá fora, onde sintam que os seus depósitos ficam protegidos da desvalorização.
Ora, os bancos não querem pagar aos clientes todos os seus
saldos, porque esta corrida iria arruiná-los. Não querem nem podem, pois
simplesmente não têm o dinheiro para isso - nem há nos bancos notas suficientes
para pagar de uma vez toda a sua dívida aos seus depositantes. Os bancos vão
por isso fechar as portas quando se generalizar o alarme e o governo terá de
chamar o exército para guardar os edifícios. Foi assim na Argentina e na
Rússia, foi assim em todos os casos em que se anunciaram grandes desvalorizações
(e nem se tratava de sair de uma moeda e criar outra, o que nunca aconteceu na
história da União Europeia), com a agravante de que neste caso a moeda que
circulava é retirada para ser substituída por outra, fortemente desvalorizada.
Quem defendeu como alternativa imediata a saída do euro começa
então a ter a primeira dificuldade. É que o exército e os bancos vão atuar
contra a população. E as primeiras vítimas são os depositantes. Se a desvalorização
for de 50%, como calculam alguns economistas que defendem tal alternativa, as poupanças
dos trabalhadores irão perder metade do seu valor.
O que é muito provável, em contrapartida, é que durante
algum tempo circulem paralelamente notas de euro e de escudo e que esta dupla referência
de preços tenha um efeito inflacionário forte, além de conduzir a uma desvalorização
exagerada do escudo. Pode ainda criar perturbações nos mercados, com o açambarcamento
de produtos, dado o medo em relação à evolução económica. Nesse momento terá
lugar uma corrida aos supermercados e haverá uma diminuição de produtos nas
prateleiras, até que a nova situação económica tenha assentado. A vida não vai
ser fácil depois do euro.
QUANTO É QUE DEVEMOS AO BANCO?
Chega depois o segundo choque. Metade das famílias portuguesas
tem uma longa dívida ao banco, que lhes emprestou dinheiro para comprar a casa
que será paga durante muitos anos. Estes empréstimos foram feitos em euros. E,
no dia da saída do euro, o governo tem duas opções: 1) aceita o que os bancos
querem, que estas dívidas das famílias sejam consideradas ao seu valor anterior
em euros; ou 2) decreta, para proteger os devedores, que as dívidas sejam
transformadas em escudos. Na prática, só terá a última alternativa, porque a convulsão
social agravada pela multiplicação da dívida seria insustentável.
De facto, se o governo permitisse que se mantivessem os
créditos em euros (como foram contratados), as pessoas ficariam muito mais
acorrentadas à dívida. Imaginemos quem tinha 100 mil euros de dívida,
convertidos, ao escudo desvalorizado, numa dívida de 30 mil contos. Se o seu
salário antes da desvalorização era de 1000 euros (na nova moeda, 200 mil
escudos, ou 200 contos, que depois, com a desvalorização, passam a valer só
cerca de 670 euros) e se usava metade para pagar ao banco, precisava antes de
cerca de dezassete anos, com a corda ao pescoço, para pagar a dívida. Agora,
precisará de vinte e cinco anos com as mesmas dificuldades, dando a mesma
metade do seu salário ao banco. Perdeu oito anos.
No segundo caso, em que o governo denomina as dívidas aos
bancos em escudos, ao valor anterior a desvalorização, como deve fazer, quem
tinha uma dívida de 100 mil euros passa a ter uma dívida de 20 mil contos...
que valem cerca de 67 mil euros. O banco ficou a perder. O problema é que, com
este processo de desvalorização da dívida, o banco vai a falência, porque criou
um buraco gigantesco no seu balanço e as suas dívidas à banca internacional
continuam em euros. Não tem forma de pagar as suas dívidas ao estrangeiro.
É por isso que os defensores da saída do euro explicam,
honestamente, que será necessário nacionalizar todos os bancos, não
necessariamente para socializar o capital financeiro, mas antes para o salvar.
Ora, salvar um banco pode custar muito caro, como já sabemos pelo caso BPN.
Porque, quando se nacionaliza um banco, fica-se com os ativos, mas também com
as suas dívidas, que são dívidas a quem nele depositou e dívidas a quem lhe
emprestou dinheiro, normalmente a banca estrangeira. Essa dívida está em euros,
mas o banco, falido e nacionalizado, vai receber as suas receitas e depósitos
em escudos desvalorizados, para continuar a fazer pagamentos no estrangeiro em
euros. A dívida pública disparou do dia para a noite porque o Estado ficou com
os 175 milhares de milhões de dívida dos bancos. Salvar os bancos tem um custo
e não é pequeno: as dívidas dos bancos, que antes eram privadas, passam a ser
públicas porque foram nacionalizadas.
AUMENTO DE IMPOSTOS
Chegados aqui, já sabemos o que se vai passar: para pagar as
dívidas da nacionalização da banca, vai haver um novo aumento de impostos,
desta vez para financiar a banca internacional. O trabalhador, cuja dívida
pessoal foi protegida, tem de pagar por outra via, que serão os novos impostos.
Claro, é fácil imaginar que o governo simplesmente declare que não paga as dívidas
internacionais dos bancos privados que nacionalizou. Mas, então, toda esta operação
da desvalorização da nova moeda pode ser posta em causa, porque o seu objectivo
era aumentar as exportações para mercados abertos, de modo que o aumento das
vendas de produtos portugueses salvasse a economia.
Por outro lado, esta decisão tornaria ainda mais difícil o
acesso da economia a financiamento externo. (…)
(…) Com tudo isto, os trabalhadores depressa perceberão que
perderam parte do seu salário (ou da sua pensão), que o esforço orçamental não
diminuiu (pelo contrário, agravou-se, pois a dívida vai ser paga em euros mas
os impostos são recebidos pelo Estado em escudos, sendo precisos cada vez mais
escudos por cada euro) e que a saúde e a educação têm novos cortes. Por tudo
isso, o trabalhador vai lutar por recuperar o seu salário.
Ora, isso pode deitar tudo a perder, dirá o governo. (…) O
país está em alvoroço, houve motins à porta dos bancos porque os depositantes
perceberam o que iam perder, os impostos e preços estão a subir, os salários a
descer. Então, o governo tem duas opções: a solução dos presidentes argentinos,
que fugiram do palácio de helicóptero, ou a solução da repressão.
Por outras palavras,
a saída do euro meteu-nos numa alhada. (…)
SALVAR A ECONOMIA COM AS EXPORTAÇÕES
Passou assim o segundo choque. Mas vem aí mais e pior. (…)
(…) com a desvalorização, o preço dos produtos importados
aumentaria no mesmo dia. O combustível passaria a custar uma vez e meia o seu preço
anterior e todo o sistema de transportes também: imagine o litro da gasolina a
480 escudos (ou 2,4 euros actuais). O mesmo aconteceria com os alimentos
importados ou com os medicamentos, entre tantos bens de primeira necessidade.
Nos supermercados, os bens faltariam, mas os que estivessem à venda seriam
imediatamente mais caros.
Como dois terços do rendimento dos portugueses são gastos no
consumo, imagina-se o efeito destes aumentos de preços. Este impacto faria, por
si só, com que o salário passasse a valer ainda menos.
Quanto as exportações, é óbvio que podem aumentar. Mas muitos
economistas vêem a sociedade como um laboratório e esquecem demasiadas vezes os
tempos da decisão e dos resultados das políticas. Ora, esses tempos vão ser
essenciais neste caso, por uma razão simples: é que os preços das importações
aumentam de imediato, mas os efeitos do possível aumento de exportações vão
demorar algum tempo. Até pode ser muito tempo.
(…) Para que as exportações possam liderar o processo de
crescimento será necessário reverter décadas de desindustrialização em Portugal
e de especialização da economia em sectores não transaccionáveis. É sem dúvida
desejável, mas demorado e difícil de executar a curto prazo.
Além disso, é preciso levar em consideração o custo da
matéria-prima e de outros recursos que são importados, para determinar o preço
dos produtos que a economia portuguesa exporta. Como metade do valor das exportações
depende de produtos importados, e estes se tornam mais caros com a desvalorização
da moeda, o ganho de competitividade das exportações é diminuído. Por tudo
isto, as receitas das exportações aumentam pouco, devagar e mais tarde.
Entretanto, a vida ficou mais cara, os depósitos foram abalados pela desvalorização,
o aumento de emprego e de exportações demora algum tempo e é incerto.
(…)