16.6.12

O Cavalo de Turim.



Fui ver o último filme do húngaro Béla Tarr, O Cavalo de Turim, e sobrevivi para vos contar.

Segundo a revista Atual/Expresso de hoje, o realizador terá dito, para afastar os intérpretes filosóficos, em jeito de conselho, o seguinte: "Por favor, acredite só nos seus olhos". Não posso imaginar conselho mais disparatado, para não dizer conselho mais carregado de má-fé, do que este, ainda por cima sobre este objecto. Como bem disse, e explicou, N. R. Hanson (Patterns of Discovery, 1965), os olhos não vêem, quem vê são as pessoas. E há ali muito para ver, coisa que vai muito além de acreditar nos olhos.

O Cavalo de Turim pinta um quadro, com dois traços principais em termos de ideias sobre o mundo e um esquema formal significativo a que se pode dar mais ou menos importância, mas não esquecer.

Quanto às duas ideias sobre o mundo.
Primeira: tudo no filme se passa num mundo fora das instituições humanas, num mundo o mais possível enterrado na nossa condição natural de bichos. Não há sequer uma família no sentido em que a família é uma instituição social, culturalmente enraizada, complexa e sofisticada. Há um pai e uma filha que tratam de sobreviver, ponto final. Os contactos com outras pessoas são hostis (como com os ciganos) ou banalmente necessários na ordem do imediato (como com o anti-Nietzsche que vem comprar aguardente - e sei que o realizador nega que algo no filme tenha a ver com Nietzsche, mas isso não depende do que ele diz querer, nem sequer do que ele quer realmente).
Segunda: o filme passa-se num mundo onde o mal moral e o mal natural são a mesma coisa. Assim como continuar a pensar que o terremoto de Lisboa em 1755 foi castigo divino para os pecados dos alfacinhas. A tempestade tem um significado moral, não é o fim do mundo físico, é o fim da ordem do mundo, é o fim da ordem como mundo, é o desabar de que alguém tem a responsabilidade (talvez a América, para onde os ciganos querem ir).

Quanto ao esquema formal: o filme é uma anti-criação, o desfazer da criação divina, provavelmente de novo desempenhada pelo mesmo Deus. São seis dias (na criação bíblica, o sétimo dia é de descanso depois da obra, aqui não cabe haver descanso depois do desmontar da obra) e a última coisa a ser des-criada é a luz. O desaparecimento da luz consuma o desaparecimento do mundo.

As duas ideias sobre o mundo que, a meu ver, dominam o filme, mereceriam uma dúvida: Tarr propõe que pensemos nessas ideias, porque elas andam por aí e devem ser reflectidas, ou propõe que elas são caminhos interessantes para ler a condição humana? Não consigo demonstrar, pelo que entendi do filme, qual é a resposta mais adequada. Contudo, o esquema formal da anti-criação sugere-me que o filme propõe uma metafísica que incorpora aquelas duas ideias acerca do mundo: um mundo vazio de instituições e um mundo onde a ordem natural expressa uma ordem moral. Provavelmente, faltaria acrescentar que a des-criação do mundo seria o castigo dos nossos pecados.

O filme é belo: custa a aceitar que estamos a ver aquilo mas, depois de o aceitarmos, é um objecto poderoso (a cuja estratégia convêm os seus 146 minutos de duração). Mas este filme contém uma visão do mundo que cava em tudo o que me repugna como metafísica. E de nada vale o realizador pedir para acreditarmos apenas nos nossos olhos.