2.6.12

matar o tigre.


A maior parte das famílias prezam a segurança de que necessitam para levar a sua vida em liberdade. Sim, a segurança é necessária à liberdade. Algumas optam por reforçar as portas e as janelas; outras por um sistema de alarme; outras por um guarda-nocturno partilhado com a vizinhança. Outras compram um cão.
A família Silva optou por um cão. Para delícia das crianças, escolheu um pequeno cachorro, lindo de morrer com apenas uns dias, de uma raça meiga com os conhecidos mas feroz com os intrusos, lindo e possante ao mesmo tempo. Compraram o cachorro num fornecedor tido por idóneo e fiaram-se nos seus conselhos - mas, passado pouco tempo, o cachorro começou a crescer numa linha de desenvolvimento inesperada. Rapidamente perceberam que o bicho era um tigre - e não podia viver-se com um tigre naquela vivenda familiar. Entretanto, hesitaram: não queriam chamar um especialista para confirmar o desvio, ou o erro, ou o logro; tinham receio de estar a apreciar mal a situação, devido aos seus poucos conhecimentos daquela raça rara; chegaram a pensar, quando se convenceram de que era mesmo um tigre, que afinal talvez um tigre criado em família e com muito carinho pudesse ser um animal doméstico e viver num bairro urbano em harmonia com a vizinhança. Consultaram peritos em domesticação de animais selvagens, em psicologia animal, em psiquiatria de felinos, estudaram métodos de meditação trans-espécies para tentar mudar a natureza do animal.
A situação foi-se arrastando e toleraram umas mordidelas e uns arranhões até ao dia em que o tigre, já suficientemente esfomeado e poderoso, mostrou todo o seu potencial...

(Um país precisa de serviços de informação. Isso: espiões. Não acreditem naqueles que dizem que isso são resquícios da PIDE: um Estado democrático não pode simplesmente estar à mercê dos que o atacam pela calada, de fora ou de dentro. Mas há remédios que são perigosos, têm de ser (ad)ministrados com toda a cautela. E quando o equilíbrio químico do remédio/veneno se altera, normalmente a única solução é deitá-lo fora. Tendo chegado onde chegaram as coisas com os nossos serviços secretos, minados por interesses privados e por abusos escandalosos que nem as mais altas instituições foram capazes de detectar e contrariar, não há solução de recurso que transforme um serviço secreto corroído pela deslealdade organizada num futuro departamento de defesa da democracia. A República precisa de serviços secretos, mas isso já não existe, como mostram as últimas notícias. O cancro corroeu a estrutura numa extensão impossível de compreender: os que, de dentro, podiam ser vozes limpas, foram calados pelo controlo dos fiéis à manobra, não se sabendo até que ponto isso pode ter acontecido. Resta cortar o mal pela raiz: extingam-se estes serviços secretos, criem-se outros, com outra gente, com outro controlo democrático, longe desta teia de conivências no poder político, no poder económico e em interesses pouco escrutináveis. Portugal, como qualquer democracia, precisa de serviços secretos. Para isso, tem de acabar com "isto" que actualmente faz de conta que presta esse serviço, para depois poder começar sem os tecidos contaminados que hoje só nos podem causar medo do pior. É preciso matar o tigre e comprar o tal cão, que era o que queríamos desde o princípio. E isto não é ser radical: é perceber que com a liberdade não se brinca.)