6.6.12

Carta ao Guilherme.


Caro Guilherme,

Vejo que a Galp Energia te levou ao estágio da selecção nacional para que lesses aos jogadores a carta que lhes escreveste (e que aparece no vídeo que deixo abaixo). A julgar por uma fotografia que aparece no sítio « 11 por todos, todos por 11», terás sido tu mesmo a escrever a carta, à mão e tudo. A carta está num bom português e isso é de sublinhar, em tom positivo, porque é importante que na tua idade já se saiba escrever português de forma escorreita. Além do mais, estar de bem com a nossa língua é uma competência importante para facilitar outras aprendizagens, escolares e não só. Deves ser um rapaz aprumado e inteligente, o que sempre gostamos de ver. Assim sendo, achei que podia tratar-te como um cidadão, capaz de ouvir opiniões - mesmo sendo divergentes da tua.

Queria, por isso, dizer-te que discordo de aspectos importantes do conteúdo da tua carta.
Não concordo nada com essa ideia de que a selecção nacional de futebol terá "a oportunidade de mudar em campo a opinião que o mundo tem de nós; de mostrar que não somos fracos e preguiçosos, que sempre fomos e continuamos a ser um povo honesto, lutador e corajoso". A meu ver, a opinião que o mundo tem de nós não depende do que vai fazer a selecção nacional - e, se fosse esse o caso, "o mundo" estaria errado. A nossa diligência, honestidade e coragem dependem do que fizermos todos - todos e cada um - e não do que fizer um punhado de portugueses, mesmo que sejam bons jogadores de qualquer coisa. Eu diria mesmo mais: tenho dúvidas de que, como povo, tenhamos essas características morais que são próprias dos indivíduos, tais como honestidade e coragem. Pelo menos estou firmemente convencido de uma coisa: não é a soma das qualidades morais de cada pessoa que resulta nas qualidades próprias do colectivo, do povo, do conjunto dos cidadãos ou simplesmente habitantes de um país. Podemos ser todos pessoas excelentes e não sabermos organizar-nos para fazer as coisas como elas devem ser feitas no plano da nossa vida em comum - e isso não se resolve com passes de mágica, tipo campeonato europeu de futebol.
Sabes, Guilherme, a quem nasceu onde eu nasci e teve a vida que eu tive (e não vou estar aqui a queixar-me), faz uma certa confusão esse teu ponto de abordagem às nossas realidades como país. Há muita gente nesta terra que não merece que se diga sequer que sermos ou não considerados preguiçosos depende do desempenho da selecção. Há muita, muita gente neste país que trabalha muito, e sofre muito, apenas para alimentar a sua família. Há muita gente que trabalha arduamente e não obtém a justa retribuição por isso. Isso é que pede coragem, coragem cada dia, luta cada dia - e mesmo muita honestidade cada dia. Longe dos palcos e dos holofotes, essa gente anónima não pode sofrer a injustiça - mais uma - de aceitarmos que o que se pensa dela depende dos jogos da selecção. Temos obrigação de pensar o país de outra maneira, sem ligarmos as nossas às vezes duras realidades à circunstância de um europeu de futebol.
Se aquelas afirmações tivessem sido feitas por algum profissional de discursos inflamados para entreter as pessoas, nem me daria ao trabalho destes comentários. Como tu dás a cara por um grupo etário que tem a oportunidade de pensar Portugal de outra maneira, julguei útil dirigir-te esta minha reflexão, a ver se ela aproveita a alguém. Quero sugerir-te que, quando voltares a ter a oportunidade de escrever assim uma carta a puxar aos grandes sentimentos, não te deixes levar pela aparente grandiosidade do momento e evites fazer o que pode parecer "dar lições" aos teus concidadãos, mesmo que alguns te saúdem pela qualidade do texto. É que o ser fraco ou forte, preguiçoso ou diligente, honesto ou trapaceiro, lutador ou encolhido, corajoso ou cauteloso - depende de muita coisa; não se trata de pecados originais, nem de virtudes caídas do céu. E seria justo pedir-te que essas qualidades todas (as que tu mencionas, não as qualidades menos heróicas que eu trouxe à baila) fossem vistas à luz da vida difícil que muitos levam nesta terra.

Porta-te bem e desculpa lá esta impertinência de velho, vir com remoques à carta de que deves estar tão orgulhoso. Aproveita e guarda-a, para a releres daqui a uns dez campeonatos europeus de futebol - a ver se nessa altura ainda pensas assim as coisas. Será um exercício interessante, quero crer.