A canção "Que Parva que Sou", dos Deolinda, fala de problemas que existem. Alguns tentam elevá-la a bandeira de uma revolta, outros tentam desvalorizar o objecto, outros até fazem hermenêuticas rebuscadas da letra para lhe encontrarem portas por onde possa entrar algum antídoto. Parece que foi o caso de Maria de Lurdes Rodrigues, o que, a ser verdade, não lhe fica bem. Outros, para quem a arte é um tijolo, "reescrevem" a canção para se colarem com banalidades ao êxito que o seu saber-fazer não sabe. Queria aqui deixar umas breves notas sobre o episódio.
Primeiro, a canção é de intervenção, de protesto. E muito bem, porque fala de realidades obscenas que existem neste nosso país. Não é um rigoroso tratado de sociologia, mas também não era para ser.
Segundo, ainda bem que há quem proteste e denuncie. Também por aí passa a arte, também a música. Em todo o mundo. Isto aqui não é o Irão, ainda bem.
Terceiro, é errado tentar ignorar, muito menos menos menosprezar, estes sinais de descontentamento e revolta. Antes de ouvir a rua é melhor ouvir a música. Ser surdo é uma grave deficiência política, sempre. E costuma dar mau resultado.
Quarto, tentar arrebanhar partidariamente ou sectariamente uma canção de protesto é muito canhestro. Há quem nunca resista à tentação de tentar encerrar o social dentro do político-partidário, o que é pena.
Quinto, se a canção dos Deolinda acelerar a consciência do cancro que é a precariedade, e estimular organizações responsáveis a fazerem propostas viáveis e corajosas para a combater, a intervenção da canção valeu a pena. Não terá valido a pena se for apenas ocasião para o teatro das carpideiras do costume, que são bons a batar palmas nos coliseus mas muito primários a montar a tenda no quintal que não lhes pertence.
Finalmente: ouçam música, pensem se ela vos der que pensar, mexam-se se ela vos der genica para isso - mas, por favor, se forem deputados ou políticos activos, não tentem reconduzir tudo à retórica habitual. Nem contra, nem a favor, nem a assobiar para o lado. É que se arriscam a fazer figura de quem, ouvindo "A formiga no carreiro", diz que se trata de um hino da união zoófila.