20.2.11

a infinita profundidade do presente


Se a minha memória não me falha (uma improbabilidade), o primeiro espectáculo de teatro que vi foi "A Morte de um Caixeiro Viajante", no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, nos meses a seguir ao 25 de Abril ("o" 25 de Abril é o de 1974), levado pela minha irmã Leonor ou pelo meu irmão Manuel. Teve de ser nesse período, já que esse foi o último ano lectivo em que residi na cidade. E tive de ser "levado", por nessa altura não ter ainda autonomia (nem intelectual nem financeira) para tomar decisões dessa natureza. Não faço a mais pequena ideia de quem eram os actores, nem sequer qual era a companhia. Lembro-me de uma encenação onde o palco era ocupado quase totalmente por uma espécie de imenso andaime, onde as personagens da vida de Willy Loman se emaranhavam fisicamente com tanta contorção como retorcidas eram as suas memórias.
O texto é de Arthur Miller e foi levado ao palco pela primeira vez em 1949. Podendo ter parecido desactualizado na euforia de alguns anos passados na ilusão de um capitalismo adocicado e engolido com analgésicos, é hoje de uma actualidade indesmentível. Mas não é a isso que venho agora, já que um texto é um texto, podemos pegar nele e lê-lo quando e como quisermos, a fazer o pino pode tornar-se difícil por confundirmos o sangue que sobe à cabeça por causa da posição com os nervos transportados pelas ideias do autor, mas o texto descansa à nossa espera. Já a peça em palco, gente viva com gente viva, é outra história. Essa gente viva pode matar o texto ou, pelo contrário, injectar-nos visões as mais díspares.
Vem tudo isto a propósito de uma ida ao teatro, ontem à noite, ver A Morte de um Caixeiro Viajante, pelo Teatro Experimental do Porto, com encenação de Gonçalo Amorim, no quadro do "Ciclo de Teatro do Porto?" (o "?" não é engano), a correr no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. Valeu a pena voltar a este caixeiro viajante.
Aos meus olhos de leigo, um dos desafios maiores da encenação deste texto está nas constantes idas ao passado em que o sexagenário Loman viaja quando coloca em perspectiva as suas desventuras presentes. Se a coisa for mal feita, o espectador perde-se, ou perde-se a fluidez de um discurso interior que corre às vezes em contra-mão do discurso público. Neste caso, consegue-se que os fantasmas encarnem de forma perfeitamente compreensível e fluída no plano do presente, sem truques, apenas com os suficientes marcadores discretos da diferença (que uma personagem se vista de forma anacrónica relativamente às demais pode ser suficiente para a deslocar umas dezenas de anos do presente e ajudar-nos, a nós espectadores, a destrinçar).
De qualquer modo, o que queria aqui sublinhar é a interpretação. Não vi nenhuma mancha por esse lado (nem todos podem brilhar: o patrão do caixeiro viajantes está certinho e correcto, mas não tem muito por onde voar, está escrito como um estereótipo), alguns actores estão muito eficazes (é o caso de Maria João Pinho, a fazer Linda, a mulher do protagonista, talvez a personagem mais realista, aquela que em tudo o que diz e faz poderia existir sem qualquer teatro numa família daquele tipo) - e há, depois, um monstro de representação: Claúdio da Silva, o caixeiro viajante (Bernardo Soares, no Filme do Desassossego).
Cláudio da Silva apresenta-se de forma absolutamente excessiva, usando o corpo para dar corpo a uma vida em convulsão; usando a exploração do espaço para mostrar uma vida onde ele correu mundo sem nunca se ter libertado da hipoteca da casa e do seguro para pagar e da prestação do frigorífico acumulada com a respectiva reparação precoce; contorcendo os membros e a cara para mostrar como as recordações do passado, de todas as cores, lhe afligiam o presente destinado a cavar-se em buraco. O excesso de Cláudio da Silva em palco (e pela sala toda), materializa a grande tragédia que ali está em causa: a infinita profundidade do presente. Se ao menos o homem pudesse esquecer os pecados passados, deixar descansados os sonhos mal acabados - mas não, tudo se torna presente quando o presente já é difícil e isso bloqueia ainda mais o acesso à saída.
O excesso infinito da representação de Cláudio da Silva é, assim, a concretização absoluta do que há de mais trágico nestas vidas banais que andam por aí todos os dias: quando o momento presente, longe de ser plano, cava tudo o que temos acumulado nos recantos do corpo que é a alma dos vivos.