24.1.11

presidenciais, danos colaterais à esquerda (o caso do PS)

Bo Bartlett, Empire, 2007

No espaço do PS há várias formas de ver a relação entre esse partido e os demais elementos do espectro partidário.
Há os advogados do "orgulhosamente sós", que acham indesejável ou impraticável que o PS se entenda com quem quer que seja para dar base a uma solução governativa. Há os que sonham acordados com uma aliança com o PSD, encarando o bloco central como a estabilidade máxima que se pode dar ao regime. E há os que, desejando um PS mais ousado na ruptura com as delícias da "mera gestão do capitalismo", preferem que o jogo estratégico conte com o BE e/ou com o PCP.
Os isolacionistas, na sua aspiração à pureza do "mais vale sós que mal acompanhados", representam esse traço da cultura política nacional que é a identidade imatura. Identidade imatura é aquela que teme as misturas por medo da diluição. Entre nós preza-se pouco a capacidade para juntar esforços, a sabedoria do compromisso; foge-se da negociação concreta do possível como se isso fosse um pecado. É aceitável ter preferência por maiorias absolutas: é também a minha preferência, por ser a fórmula que garante a melhor identificação das responsabilidades pelo rumo da governação. Coisa bem diferente é adoptar a postura "ou nós, ou o dilúvio". O PS, a persistir nessa linha, cairá continuamente na situação de governo minoritário, o que, em geral, nem é bom para o país nem para o PS. (Como se verá: este governo será despedido quando for mais conveniente à direita, não ao país.)
Pelo seu lado, os socialistas adeptos do "bloco central" dão pouco valor a um activo importante de qualquer democracia: a existência de alternativas reais. Meter os dois maiores partidos no mesmo saco pode, em certas ocasiões, ser necessário, mas a prazo equivale a condenar o país a ser sempre governado mais ou menos com a mesma política, mesmo que isso seja feito com "estilos" diferentes. Essa doença do rotativismo já deu maus resultados no passado, não deixará hoje em dia de agravar o desinteresse "do povo" pela governação da casa comum.
Os que vêem o PS como um dos partidos da esquerda, que desejariam dar alguma tradução política à maioria aritmética que PS, PCP e BE têm a maior parte do tempo, têm um problema óbvio para resolver: o ódio de estimação que PCP e BE dedicam ao PS. O PS é, muitas vezes, o principal alvo a abater para bloquistas e comunistas. Esses partidos alimentam uma cultura "de oposição" que dificulta conceber uma governação PS partilhada com eles. PCP e BE são, em questões absolutamente essenciais para o entendimento do mundo de hoje, habitantes de um imaginário passadista. O exemplo mais gritante é a sua posição sobre a União Europeia, que confunde sistematicamente a oposição a certas políticas com a oposição à própria UE, algo inaceitável para os socialistas.
Eu, que estou entre os minoritários (vejo o PS à esquerda, quer pelas suas políticas, quer pelos seus parceiros preferenciais), reconheço que esta "sensibilidade" tem tropeçado num obstáculo de monta: PCP e BE, mesmo nos dias em que se entregam menos à coligação negativa que têm com o PSD e o CDS para esmigalhar o PS, mostram-se claramente avessos a pensar no mundo que realmente existe, preferindo ter programas políticos que dispensem a realidade. O PCP e o BE continuam a falar como se o mundo fosse infinitamente plástico, como se o PS não nos levasse directamente ao paraíso na terra por pura falta de vontade.
Nestas circunstâncias, estamos muito carecidos de que se mostre, pelo exemplo, como é que uma batalha política pode ser conduzida em convergência entre o PS e a auto-proclamada esquerda da esquerda. Isso exigiria reflexão política inovadora, estudo aturado dos problemas essenciais, propostas que quebrem os atavismos de que todos padecemos, uma nova linguagem da imaginação concreta. Sim, imaginação concreta: ser novo, não em generalidades, mas em problemas reais e que as pessoas compreendam. Sim, imaginação concreta: dar respostas atendendo ao mundo que temos e aos problemas que estão aí, não somente conversas vagas e proclamações canoras que ninguém entende como se trocam por miúdos.
Manuel Alegre teve a responsabilidade - e a oportunidade - de fazer essa reflexão e traduzi-la em discurso político. Passou completamente ao lado. Mostrou-se absolutamente incapaz dessa tarefa. Por esse lado morreu. Infelizmente, com isso deu um golpe duríssimo em todos os que entendem ser necessário e urgente que as esquerdas encontrem uma convergência mínima face a este mundo agora ainda mais complexo e incerto. A poesia hoje está mais difícil. Precisa de palavras novas. Que Alegre não teve. Palavras que, do alto da sua sobranceria de quem já viu tudo e percebeu tudo, Alegre não soube construir. É justo debitar-lhe esse dano colateral, que todos vamos pagar, tenhamos ou não sido "alegristas".