O espaço do comentarismo político, assumido ou disfarçado, é pródigo em pérolas. Uma das preferidas versa o "monopólio dos partidos" neste regime representativo. (Por exemplo: "as presidenciais são dos poucos momentos na vida política que escapam ao monopólio dos partidos".) Já passando ao lado do facto de que há muitos lugares electivos neste regime a que podem candidatar-se cidadãos independentes, dispensando qualquer ligação partidária, essa conversa do monopólio dos partidos evita confrontar-se com esta questão muito simples: o que são os partidos políticos mais do que organizações de cidadãos que se juntam para influenciar os nossos destinos comuns?
Claro que os partidos políticos reais, aqueles que existem mesmo, em lugar de estarem apenas numa ilha em nenhures, têm defeitos, insuficiências, pecados. Muitíssimos, é bom de ver. Só não têm essas metástases pecaminosas aquelas obras humanas que não passam da ideia. E, mesmo assim, a ideia, para se manter limpa, tem de permanecer relativamente vaga e abstracta. O mundo mancha tudo, essa é uma condição só desconhecida de quem nunca tentou levar nada à prática. E esses, puros, que imaginam como seriam imaculados se passassem à acção, usam ser os que mais depressa desatam a morder pai e mãe quando saem a barra e as vagas lhes empurram os órgãos internos para cima e para baixo até à dor. É que a virgindade é muito perigosa quando nos apanha desprevenidos no meio da selva habitada.
Fácil é compreender que dá uma trabalheira criar um partido, coisa que assusta imenso os paladinos da "independência". É precisa a bênção de 7500 cidadãos, um projecto de estatutos, uma declaração de princípios ou programa político, denominação, sigla e símbolo. Tudo isso dá imenso trabalho, uma canseira - e, claro, muitos nem sequer percebem por que é que um partido há-de ter programa, já que o seu "programa" é uma ideia à solta pronta a qualquer pega de cernelha.
A brilhante ideia alternativa é o "movimento": uma antecâmara, um porto de abrigo, um cruzamento que pode fazer-se ou desfazer-se com relativa facilidade, um nó numa rede (tão pós-moderno, o modo de fazer). Claro que há muitos movimentos que nasceram, precisamente, do movimento: numa dinâmica "de baixo para cima", gente que se encontra ao andar e, reconhecendo-se num caminho, cria marés. Essas são as glórias da cidadania. Mas há outros movimentos que nascem da cristalização: a cristalização de um momento, tentando guardá-lo numa gavetinha para o recriar noutro momento futuro (outra eleição, por exemplo).
Estamos fadados, parece, para que as eleições presidenciais sejam fornos de "movimentos", daquela espécie que se destina a guardar a fotografia para mais tarde descongelar um pico de febre. E não há muitos entusiastas que parem para pensar onde acabaram tantos movimentos desses. Já, por outro lado, o nosso sistema, apesar da podridão que tantos lhe apontam com ligeireza, permitiu, ainda mais ou menos recentemente, a emergência e afirmação de um partido politico que veio modificar a arquitectura partidária. E nem foi preciso recorrer ao expediente justicialista, como aconteceu na Itália das "mãos limpas". Trata-se, claro, do BE. O seu percurso até hoje, gostemos dele ou não, mostra que "o sistema" tem espaço para o investimento em novos posicionamentos. Agora, isso não cai do céu. Pois não. Mas quem espera que a solução caia do céu, bem pode deixar descansado o espaço da cidadania - em vez de fazer de conta que tem para ele ideias milagrosas.
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A propósito de criar "movimentos":
(E este "paralelismo" nem é nada contra o "Movimento Homeostético", entenda-se.)