9.12.13

Estrela Report.


Na foto, manifestantes contra o "Relatório Estrela" em Estrasburgo, hoje.

Quando a acção dos políticos transcende a banalidade do ramerrame, os seus nomes deixam de ser (apenas) seus e passam a ser das acções relevantes que empreendem. É também assim neste caso: o “Relatório Estrela” é o nome-bandeira pelo qual passou a ser conhecido o trabalho da deputada europeia Edite Estrela, enquanto autora do “Relatório sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos”, aprovado pela Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade dos Géneros do Parlamento Europeu e, agora, presente ao plenário dessa instituição. (Na realidade, já foi presente anteriormente, mas os meios mais conservadores europeus conseguiram, até agora, evitar a votação.)

Os direitos sexuais e reprodutivos abrangem um vasto domínio, incluindo: o direito a cuidados de saúde maternos e ao planeamento familiar; a questão da mortalidade materna (com indicadores a melhorar, mas com flutuações preocupantes em alguns países europeus); a questão da educação sexual, cuja inexistência ou insuficiência tem efeitos negativos nas taxas de natalidade na adolescência, de interrupção voluntária da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis; a questão do aborto, com alguns países europeus que continuam a legislar a hipocrisia (quer dizer, proibindo na lei, explicita ou implicitamente, para poderem fechar oficialmente os olhos e não terem que se defrontar com os problemas reais) ou que, apesar de legislações mais realistas, deixam pulular os obstáculos extralegais aos mecanismos legais; as insuficiências dos sistemas de saúde no que toca às doenças sexualmente transmissíveis; a violência de género, muitas vezes ligada à sexualidade; etc. A merecer preocupação está também o facto de, aparentemente, alguns países europeus não monitorizarem adequadamente estas questões. Por exemplo, mais de dois terços de Estados-Membros não dispõem de qualquer informação sobre a percentagem de mulheres grávidas que foram a, pelo menos, uma consulta pré-natal e mais de um quarto de Estados-Membros não possuem dados sobre a percentagem de partos assistidos por um profissional de saúde qualificado. Ora, quem não sabe não cuida. Além do mais, a tornar ainda mais urgente o tópico, a contexto de crise e recessão só ajuda, com o argumento das “poupanças” a todo o custo, a encurtar o braço dos meios públicos para atender a estes direitos.

Os direitos sexuais e reprodutivos são parte dos Direitos Humanos, como reconhecido por instrumentos internacionais, e estão intimamente ligados à efectividade da igualdade de género. Por exemplo, a regulação da fertilidade: claro que, num mundo ideal, essa questão seria tanto de homens como de mulheres; mas, neste mundo real que temos, a falta de métodos acessíveis e aceitáveis para essa regulação acaba por cair mais pesadamente sobre os ombros das mulheres. Em qualquer caso, os direitos das mulheres são direitos de todos: porque nenhum ser humano decente vive bem num mundo onde metade das pessoas são potencial ou efectivamente discriminadas por serem do género feminino; porque quem discrimina as mulheres também discrimina por outros motivos (orientação sexual, por exemplo) com os mesmos “argumentos”.

Por todas estas razões, o Relatório Estrela, reconhecido pela esmagadora maioria como um relatório equilibrado, ganhou o interesse de muitos por essa Europa fora, que vêem nele um contributo para que as instituições europeias sejam relevantes na vida concreta e real dos europeus concretos e reais.

Ora, estranhamente – perdão, sem estranheza nenhuma – o Relatório Estrela tornou-se um ponto central da luta política à escala europeia. Por quê? O contexto é este: há uma agenda reaccionária global (europeia, internacional) para impor morais particulares a toda a gente. O que essa agenda reaccionária pretende é capturar as políticas públicas, fazendo com que os meios dos Estados só possam ser usados dentro dos limites traçados por essas morais particulares. A questão é esta, com um exemplo: ninguém quer obrigar ninguém a usar este ou aquele método anticonceptivo, porque não cabe às políticas públicas determinar como as pessoas se comportam nesse campo; mas é criminoso diminuir os esforços das políticas públicas para informar as pessoas acerca do que está em causa e é criminoso deixar esse assunto ao “Deus dará” só porque certas correntes religiosas têm preceitos que vão contra a autodeterminação consciente das pessoas nessas matérias. Não podemos proibir uma religião de pregar que “venham os filhos que Deus quiser”, mas devemos impedir que as políticas públicas, por omissão, traduzam esse preceito obscurantista. O obscurantismo é a arma dos extremismos. Neste caso, o obscurantismo é a arma do extremismo reaccionário, também agora na Europa, aliás importando as piores práticas do extremismo americano.

Como de costume, o obscurantismo reaccionário assenta muito na apresentação falseada da lógica das situações. O Relatório Estrela não quer impor nada de novo aos Estados Membros, mas quer promover o interesse pelas práticas que dão melhores resultados em termos de saúde e de implementação dos direitos já reconhecidos. O Relatório Estrela leva a sério a questão civilizacional da violência de género, que temos de combater resolutamente. O Relatório Estrela alinha com as abordagens pragmáticas em questões de saúde pública, com aquelas abordagens que dão prioridade à saúde das pessoas em vez de lhes pedir primeiro que adiram a certas morais particulares antes de se protegerem e cuidarem. O Relatório Estrela é uma questão de civilização.

É para isto que serve a Europa: para distribuir o melhor e restringir o pior. Para que a Europa seja dos cidadãos temos de assumir a importância destes debates globais. Os cidadãos europeus podem apoiar estas iniciativas. Amanhã, o Parlamento Europeu vota o Relatório Estrela. Apelo a que façam ouvir a vossa voz: multipliquem o apelo ao voto “SIM” no Relatório sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, o agora chamado Relatório Estrela. Façamos disto um tópico de opinião pública.

O relatório pode ser lido em português aqui.