O “Relatório sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos”, aprovado pela Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade dos Géneros do Parlamento Europeu, foi hoje presente ao plenário dessa instituição e foi afastado por iniciativa de sectores militantes da direita europeia e portuguesa.
O "Público" resume assim a principal linha de argumentação subjacente ao voto de hoje do Parlamento Europeu sobre o Relatório Estrela: "Invocando o princípio da subsidiaridade, segundo o qual os Estados devem ser livres de legislar sobre as questões que dizem respeito aos seus cidadãos, os eurodeputados aprovaram em plenário uma resolução que teve como efeito a anulação da votação do relatório."
Quer dizer: aquilo que é essencial na Europa, um espaço de direitos humanos, quando convém passa a ser assunto dos Estados-Membros. A Europa preocupa-se com o euro e com o défice e com a dívida - mas acha que as questões de direitos humanos são para os Estados-Membros tratarem?! Edite Estrela resume bem a tendência quando diz que o Parlamento Europeu "era mais progressista em 2002 do que é hoje”, porque há 11 anos "aprovou um relatório com um conteúdo muito semelhante a este" que agora nem deixou votar.
É claro que o ponto do aborto se tornou a bandeira central desta batalha. Evidentemente, ninguém queria impor o aborto a ninguém, mas os "defensores da vida" que tratam do assunto de forma ideológica querem, na prática, "expulsar" dos sistemas de saúde aqueles que recorrem à interrupção voluntária da gravidez. Teremos que dizer, para usar os termos extremos que alguns desses "defensores da vida" preferem: há por aí quem nem se importasse que morressem as mulheres que recorrem a esse acto extremo. Ora, isso é inadmissível: não é aceitável que, em nome de morais privadas, haja quem faça das leis letra morta, quando a vida e a saúde das mulheres que recorrem à IVG acabam por ser desprezadas por quem enche a boca com a "defesa da vida".
Assim de repente, deixo sobre o horizonte de futuro próximo duas observações preliminares.
Primeiro, uma questão estritamente política: os métodos do extremismo reaccionário que são correntes nos States vão (estão a) ser importados em força na Europa. Isso é importante, porque há nas instituições uma direita muito permeável aos que berram alto. O que se tem passado no PE sobre este relatório é um assalto de certos grupos activistas ao medo e ao oportunismo de certos deputados. Devo dizer que acho legítimos esses métodos de mobilização, mas insisto que temos de estar atentos a esta movimentação, até porque actua muitas vezes por deturpação abusiva do que está em causa. E também porque muitos responsáveis políticos não têm coragem para um debate racional sobre assuntos delicados.
Em segundo lugar, é preciso ter atenção a uma questão "religiosa" (eu diria antes, de política dos religiosos). E é muito simples: os movimentos mais militantes da direita católica estão a preparar-se para a eventualidade de terem de travar uma batalha contra certas orientações do Papa Francisco. Não creio que, doutrinalmente, o Papa lhes vá causar problemas sérios, mas muitos temem isso e querem estar preparados para lhe dar luta. A afinação dos métodos de mobilização, que serve para a política, servirá também para isso, se for o caso.
Perder uma batalha não é perder a guerra. Mas convinha que as esquerdas percebessem o que aí vem.