Para falar mesmo a sério, sirvo-me simplesmente das palavras de José Teófilo Duarte, que eu resumo com uma única das suas frases: «Não há seriedade numa ditadura.»
Mas vale a pena ler a explicação: «Não há seriedade numa ditadura. A não ser a séria aplicação da repressão. Quem acha que a ditadura era frequentável é quem não tem a mínima curiosidade intelectual, nem tem a mínima noção do que é viver em sociedade. Há quem exclame que sempre disse o que entendeu e não sofreu nada com isso. Resta acrescentar que quem isto diz nunca tem nada para dizer, ou então diz o que os regimes repressivos querem ouvir. Coisas do tipo: "a política é para os políticos" ou "deixem-nos governar". E uma ditadura não proíbe apenas o que se diz, proíbe o que se quer conhecer. Proíbe tudo o que coloca em risco os privilégios dos que proíbem.»
Entretanto, porque certas coisas não podem ser faladas com punhos de renda - já que os punhos de renda podem estar próximo das mãos que nos apertam as gargantas - , talvez devessemos falar com menos elevação do que José Teófilo Duarte. Por exemplo, lembrando a elevada moral da "classe dirigente" do "antigamente". Assim de repente: o caso "ballet rose" diz-lhes alguma coisa? Não, não é simplesmente uma série de televisão. Aconteceu mesmo, neste país "gerido" por "gente séria".
E da própria corrupção faz parte que a "gente séria" seja protegida pelos mecanismos da ditadura. A censura, por exemplo.
Não era possível publicar por cá aquilo que escreveu a imprensa estrangeira. Por exemplo, relatos como o do jornal italiano ABC, sob o título “Caça à lolita no jardim do ministro”. Aí se escrevia sobre a participação entusiasmada de um membro do governo, muito próximo de Salazar, em brincadeiras com raparigas de idade inferior a 14 anos. Nos jardins da moradia desse ministro no Estoril realizavam-se “caçadas”, como eles diziam, nas quais umas tantas miúdas, despidas excepto dos sapatos e de uma cabeleira com uma fita colorida, eram "soltas" para serem perseguidas pelos caçadores - “diversos aristocratas, o tal ministro e altos funcionários estatais” – que, igualmente despidos e igualmente marcados com uma fita colorida, tratavam de capturar a rapariga com a fita da mesma cor, passando, então, à actividade sexual entre caçador e presa. Noutras ocasiões, explicava o jornal, as menores dançavam nuas sob holofotes de luz rosa, prática conhecida como “Ballet Rose”, designação que deu nome ao caso.
Tudo gente séria. E, dirão alguns, que tinha isso a ver com a ditadura? Resposta: tudo. Porque era a impunidade dos membros da casta dominante que produzia o desplante de fazer e depois encobrir com recurso à manipulação dos órgãos do Estado, desde os que se ocupavam da censura até aos que desviavam o curso da acção da polícia e dos tribunais. E, claro, se algum advogado oposicionista pudesse ser acusado de ser a fonte das notícias "inconvenientes" na imprensa estrangeira, e se isso pudesse ser usado para o afastar, isso também não teria nada a ver com a ditadura, pois não?
Uma ditadura é um mundo total. A corrupção moral faz parte do sistema, como cimento. Pensar, como muitos pensam por aí hoje, que "antigamente é que era limpo", é, na maior parte dos casos, ignorância. Mas essa ignorância não nasce do vazio: nasce dos que a alimentam, com mitos e fábulas. E há muito disso, hoje. Cuidado: não devemos olhar com bonomia para os que aproveitam as ondas para limpar a memória das ditaduras passadas - porque isso serve para facilitar as ditaduras futuras.