27.4.14

Há pouca gente neste mundo (Vasco Graça Moura).


A morte de Vasco Graça Moura faz-me pensar. Não o conhecendo pessoalmente, percebo, pelo que leio por aí, confirmando a impressão que já tinha, que VGM era, nas relações pessoais, uma pessoa estimada. Alguns dos que o elogiam sem reservas são pessoas que me merecem toda a confiança. Quanto à obra, a minha modesta opinião alinha pela opinião de quem sabe mais do que eu, aqueles que valorizam muito o que deixou como poeta e como tradutor. Perguntarão: que tem isto de especial? Não tem nada de especial, mas faz-me pensar.
Faz-me pensar porque VGM, em certas vertentes da sua vida pública (a política, designadamente) sempre me pareceu uma pessoa com uma interpretação demasiado confrontacional das virtudes da clareza (contra os adversários) e da lealdade (com os correligionários). Quero dizer, sem amaciar as palavras pelo seu falecimento: ele adoptava um estilo de dureza na intervenção que eu não aprecio e que, em geral, tendo a considerar poluição dos debates públicos. Tendo a considerar erosão emocional da argumentação. Lembro-me, há muitos anos, de ver debates na televisão francesa e abominar um estilo agressivo, que por cá ainda não se praticava mas lá já era corrente, nomeadamente nos debates políticos. Isso hoje é o pão nosso de cada dia por cá, mas VGM esteve à vontade nesse estilo desde há muito tempo.
Aquela veia confrontacional que eu vi e ouvi, aconteceu. As virtudes que reconhecem aqueles que tomo por gente que fala verdade, existiram certamente. Qual das visões está errada? Acho que nenhuma. Acho que cada um de nós é muitos, cada um de nós é plural. Em particular, aquilo que somos em privado e aquilo que somos em público – podem ser faces muito diferentes de um mesmo mundo pessoal. Não há mal nenhum nisso. Mas há mal em que não haja no mundo espaço suficiente para múltiplos de cada um de nós.

Deixo, abaixo, o que interessa de um poeta: algo da sua poesia. Anda-se uma vida toda a tentar escrever um verso que valha a pena. E depois morre-se.

***

O caminho de Ohrid


do alto das muralhas de ohrid onde
acorrera aos gritos desvairados dos vigias,
o rei samuel avistou o seu exército desfigurado,
arrastando-se entre as montanhas da macedónia.

aos catorze mil homens tinham sido
arrancados os olhos por ordem do imperador
e a um em cada cem mandara ele, basílio II,
fosse poupado um olho para conduzirem o regresso

dessa manada cega. depois de atravessarem altas neves
vinham-se agora despenhando para o lago,
tropeçando, agarrados uns aos outros,
a tortura espelhada nas contorções das faces,

o sangue a empapar-lhes os andrajos. e o rei,
tomado pela angústia, deu um grito de dor e morreu
no alto da muralha sobre a colina e os seus bosques e pomares
que o lago placidamente reflectia.

nesse instante compreendeu como era ambígua
a força cega do destino e em nenhum mosteiro
podia a iconostase explicar-lhe esse cruel mistério:
os santos, com feições dos retratos do fayoum,

entre as chamas trémulas emudeciam
nos seus frescos e as vozes dos jovens monges,
no seu canto austero e imperturbado,
elevavam uma grave primavera na penumbra.



Vasco Graça Moura, in Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, Quetzal, 2005



(foto de Tim Walker)