29.4.14

Íon, de Eurípides, 40 anos e 25 séculos depois.


REPOSIÇÃO: curta série de espectáculos na casa do Teatro da Cornucópia, de 15 de Maio a 1 de Junho.


Íon, levado à cena pela companhia Teatro da Cornucópia no palco do S. Luiz Teatro Municipal, integra-se nas comemorações dos 40 anos do 25 de Abril. Este espectáculo é uma comemoração genuína, mas radicalmente marcada pelo momento criativo de Luis Miguel Cintra, o encenador.

Cintra está mergulhado dramaticamente no seu tempo das sínteses. É ele que o diz: “a ânsia de dominar a vida que nos vai fugindo e que é desordenada por excelência” vem (não escamoteia) com a percepção do envelhecimento físico. Neste caso, mais uma vez, a síntese vem pela mão do enxerto: no clássico muito clássico texto de Eurípides, adaptado – com tesouradas largas em elementos típicos do teatro grego, como o coro, mas sem perder nada da força do enredo –, entram duas canções de Zeca (a abrir e a fechar, como parêntesis), Pasolini nas suas cartas a Gennariello, o poema “Crepúsculo dos Deuses” de Sophia, o hino do MFA, a bandeira portuguesa e um pequeno busto da república a um canto. E tudo isto numa filigrana cintriana que não é sempre fácil de entender. Vejamos.

Comecemos pelo enredo original.

O jovem Íon é filho da violação da princesa ateniense Creúsa pelo deus Apolo. Abandonado pela envergonhada mãe na gruta onde se praticara o acto forçado, salvo segundo instruções do deus, Íon vai tornar-se servidor do santuário em Delfos, desconhecendo a sua origem. É aí que o presente narrativo o encontra. Creúsa, entretanto, tão-pouco sabendo do destino de seu filho, casara com Xuto, um estrangeiro que fora útil a Atenas na guerra, união de que não resultaram filhos. Quando Creúsa e Xuto vão ao oráculo de Delfos para saber com que poderão contar em termos de descendência, dão-se encontros transformadores

O oráculo indica a Xuto que Íon é, afinal, seu filho. A esterilidade do casal não seria, pois, culpa do marido. Íon, embora desconfiado da novidade, acha uma bela promoção passar a ser tido por descendente de um deus (Xuto é neto de Zeus) e alinha em festejos e projectos que deixariam Creúsa de fora, apesar de antes ter simpatizado com aquela visitante do templo. Creúsa, mal informada acerca do que disse o oráculo, julga ter sido anunciado que não mais poderá ter filhos, quando o marido encontrou um fruto antigo de uma relação desordenada, e quer vingar-se em Íon, tramando que o matem à traição, na festa do reencontro com o pai Xuto. Descoberto o projecto homicida de Creúsa, esta é condenada à morte, mas refugia-se como suplicante no templo, condição em que é intocável. No impasse assim gerado, tem lugar a revelação: Creúsa reconhece o cesto e os apetrechos com que abandonara Íon na gruta e consegue demonstrar que o seu conhecimento desses objectos é prova de ser a mãe do rapaz. Juntas as peças, o filho de Apolo com uma humana vai de servo do templo a príncipe de Atenas.

E a política?

Como podemos entender este espectáculo como parte das comemorações do 25 de Abril? Para responder temos de compreender que “comemorar” não seja apenas fazer a festa, mas também, ou antes, como terá de ser sempre com a Cornucópia, comemorar seja pensar no que importa sobre esse pedaço de mundo onde se co-memora, onde se lembra em comum. Teremos, necessariamente, de estar a falar de política.

É certo: há no texto de há 25 séculos referências claramente críticas à política ateniense de então: as pessoas capazes afastam-se da política, os políticos abusam do poder em seu proveito e são agressivos na defesa dos seus interesses. E isto continua a dizer-nos alguma coisa hoje. Não me parece, contudo, que por esta via se esgote o que este espectáculo tem a dizer politicamente. Pela parte que me toca, há outros dois elementos que resultam em mensagem política pela mera retoma do texto grego nos dias de hoje.

Desde logo, a mentira: todo o enredo nasce do que foi escondido, do que falta saber a todas as partes interessadas por ter sido tapado das suas vistas por outros agentes. E haverá doença mais evidente na política actual?

Depois, os deuses: o agente que espoleta toda a confusão é Apolo, quer na origem (violação), quer na forma como trata de encaminhar os acontecimentos subsequentes. Ora, embora hoje não pensemos a vida pública em termos de deuses, essa figura representa muito bem, num certo sentido, o carácter histórico e contingente das nossas circunstâncias: nós não podemos nunca contar apenas com as nossas acções e com as nossas responsabilidades estritamente pessoais. Numa escala micro, os filhos pagam pelas (ou beneficiam das) acções dos pais. Numa escala macro, uma geração traz às costas a história de um povo, o que fizeram as gerações anteriores e os respectivos desenvolvimentos. E quem se pensar sem o lastro do passado, pensa-se como uma mera máquina, como um irresponsável, um anti-cidadão, um arrancado do tecido da cidade. Sim, não há hoje os deuses que havia. Como diz o poema de Sophia (Crepúsculo dos Deuses) agora enxertado no fim do enredo clássico: “eis que se apagaram / os antigos deuses sol interior das coisas”. Já não explicamos com essa categoria, “deuses”. Mas, ao contrário do poema de Sophia, que vê pelo apagamento dos deuses “que se abriu o vazio que nos separa das coisas”, algo preenche esse lugar dos deuses: a história, o nosso passado colectivo, que continua a ser a massa de que somos feitos, o cimento que dá sentido a que estejamos juntos aqui. E uma política que não saiba lidar com isso é a política da tristeza colectiva que tantos sentimos neste 25 de Abril.

E entra a estranha categoria do pecado original.

Já que Cintra, hoje em dia, sente a necessidade de explicar os seus pensamentos por paralelos com o universo religioso (é ele, talvez, o “católico progressista”, como se dizia, mais intrigante hoje em dia, uma vez que figuras tão pertinentes da mesma “linha”, como Manuela Silva, andam por aí, mas demasiado discretas para aquilo que o tempo precisa), faz sentido evocar aqui a ideia de pecado original. Não o pecado original na versão católica corrente, com Adão e Eva, a serpente e a maçã; não o pecado original da sede de conhecimento (comer a maçã para saber o que são as coisas), mas um pecado original que não tem nada de mítico, que não parou num qualquer período ante-histórico do mundo. Aqui ganha sentido a ideia do pecado original que tem lugar na história concreta da humanidade. O pecado original como ofensa (enquanto pecado) e "original" por ter nascido para nós com a nossa entrada nesta humanidade concreta que é a nossa sociedade. Partilhamos o pecado original de uma civilização mesmo que nada tenhamos contribuído pessoalmente para ele, por sermos parte da sociedade que gerou o mal e que continua, estruturalmente, capaz de repetir o mesmo dano. É neste sentido que podemos, por exemplo, falar de Hiroxima (a bomba atómica) como um pecado original nosso. Não metemos as mãos, nossas, de carne e osso, nesse pecado, mas fazemos parte de uma lógica que pode repetir, com mais ou menos variação, o mesmo mal. Somos culpados da prática concreta desse mal? Decerto não. Mas o que está implicado no pecado original, neste entendimento, não é culpa individual e eficiente de um dano concreto e particular. Nesta forma de entender o pecado original, sem qualquer mitologia e assumindo o peso de herdar uma história, sem ter força nem engenho para mudar o mundo, sem ser capaz de o impedir de repetir a destruição – neste sentido de pecado original, reflectir hoje sobre Hiroxima, por exemplo, é tomar pessoalmente em mãos a nossa parte desse dia de mais uma expulsão do paraíso. Neste sentido de pecado original, nós sofremos das más acções dos deuses do nosso tempo, do que herdámos; nós vivemos do que nos ultrapassa; mas nós somos também um factor do que ultrapassa os outros, somos deuses dos outros, as nossas acções pesam sobre eles, nós recebemos e transmitimos a história e a contingência que está para lá da responsabilidade individual. É a problemática do erro histórico, dos erros e glórias de um povo que ultrapassam essa visão distorcida de que tudo começa e acaba aqui e agora na acção individual. E tudo isto é preciso compreender para compreender onde estamos hoje. Politicamente. E de como saímos daqui. E os deuses de Íon são apenas uma sombra do pecado original que nos atormenta hoje. E o ferrete da política que falta, também - para lidar com esses deuses.

Entretanto, sem Pasolini tudo isto é ainda insuficientemente radical para compreender o que Cintra e a Cornucópia nos andam a querer dizer 40 anos depois do 25 de Abril.

Pier Paolo Pasolini, realizador de cinema (talvez o único que fez filmes que me provocam a necessidade – física, não intelectual – de interromper o visionamento), escritor, poeta, homem de teatro, intelectual, um pensador radical em todos os sentidos, polémico na sua união de contrários – católico e marxista (ah, como eu sempre achei ridícula aquela coisa dos “católicos comunistas” apregoados, porque, das duas uma, ou era normal e não valia a publicidade, ou então tinha de ser publicidade enganosa) –, homossexual quando os tempos eram outros e isso era também ser radical nesse tempo, morreu assassinado por um jovem prostituto em 1975. Segundo o homicida, este agiu em legítima defesa quando Pasolini ficou violento no seu desejo. Segundo outros, que viram buracos insanáveis no processo judicial, Pasolini foi vítima de uma conspiração para matar uma voz incómoda para a Itália democrata-cristã de meados da década de 1970.

Ora, é este Pasolini radical (que vai à raiz das coisas) que Cintra recupera para dar conselhos a Íon, o príncipe e futuro rei. Fá-lo com excertos das cartas de Pasolini a Gennariello, um inventado rapazinho da Itália profunda. São cartas destinadas a resgatar Gennariello da modernidade, a querer trazê-lo para o projecto de preservar uma imaginária autenticidade do povo, salvar uma integridade que só pode ser mítica. São cartas retintamente anti-modernas, idealistas contra a corrupção do tempo, mas completamente fora do tempo e do lugar: se Gennariello existisse, rapazinho, na sua idade e na sua cultura, não perceberia grande coisa do que Pasolini lhe queria dizer com as suas cartas. O Gennariello mítico não podia existir, como não podia existir a África mítica, selvagem, inocente e pura, que Pasolini procurou noutro projecto, “Notas para uma Oresteia africana”, filmado na Tanzânia e no Uganda. Íon vai ser governante e pode seguir os conselhos dos deuses, que aparecem no fim da peça para anunciar o seu plano e colocar o príncipe nos trilhos que convêm aos seus desígnios – ou pode, alternativamente, Íon deixar-se (des)encaminhar pelo Pasolini que Cintra escolhe para dizer que a seta da história nem sempre é progresso, que andar para a frente nem sempre é para a frente, que o que vemos de mudança nem sempre é a razão a trabalhar o mundo, que as transformações nem sempre são desejáveis e não temos que estar sempre a aplaudi-las como se elas fossem as melhorias que não são. Em conversa, Cintra dizia, a propósito daquela intervenção dos deuses no fim, que é como aquele aparecimento das carantonhas da Junta de Salvação Nacional na televisão, na madrugada de 25 para 26 de Abril de 1974, a fechar com óculos escuros assustadores (lembram-se de Pinochet?) e caras fechadas um dia que tinha sido de tanta alegria e esperança, nas ruas: duas coisas tão díspares. E, então, para não deixar os deuses à solta a falar de forma tão medonha, Pasolini é posto a dar outros conselhos.

Na realidade, Cintra e a Cornucópia preocupam-se em não correr para o lado que sopram os ventos, em não ler o que já está escrito, em obrigar a pensar – mesmo numa comemoração. Sendo Abril, precisamente por ser uma comemoração. Então e não lhes fazem (colectivamente, como companhia teatral) o mesmo que fizeram a Pasolini? Fazem, mas agora mata-se (ou tenta-se) de outros modos. Erri De Luca, numa entrevista ao Corriere della Sera publicada a 16 de Outubro de 1994, precisamente sobre as carta a Gennariello, diz: “aquele que tenta atirar no centro, erra o alvo”. Certamente, é essa a crítica que se faz sempre aos radicais. Talvez com razão. Mas podemos dispensar estes radicais, se queremos continuar a pensar?

Este espectáculo (vi na noite de 24 de Abril e depois fui para o Carmo) é uma excelente forma de pensar em nós, 40 anos depois. Está lá a extraordinária força do texto de Eurípides, uma daquelas histórias que vivem pela sua própria dinâmica interna. E entram mais uns tantos elementos a dizer-nos “pensem em Portugal, hoje, não na Grécia antiga”. Na verdade, nem todos os enxertos encaixam com facilidade no conjunto (quem consegue perceber facilmente tudo o que saiu da cabeça de Cintra para se materializar em pormenores imensos num cenário de Cristina Reis?), mas o conjunto funciona muito bem como prazer de continuar a viver a liberdade enquanto coisa concreta que nunca está resolvida.

(Em cena no S. Luiz até 4 de Maio, sem representação no Dia do Trabalhador.)

No vídeo, Cintra a ler Pasolini nas cartas a Gennariello.