8.10.11

sobre certas virtudes.


Era uma vez... Houve um tempo... detesto estas fórmulas, que podem dar a ideia de que sou um saudosista, que julgo que "no meu tempo é que era bom".
Não obstante, como posso deixar de recorrer a essas expressões para dizer que: Anos atrás as pessoas liam A Crítica da Razão Pura, de Kant, sendo que a leitura não é fácil, começar a compreender exige entrar no ritmo do homem, é preciso um esforço de "reverse architecture" (vá, façam o paralelo com "reverse engineering" e pensem no carácter arquitectónico do pensamento kantiano). Suavam-se as fontes do Éden para perceber o que andava o senhor Martin a querer dizer com Ser e Tempo. Para já não falar das Investigações Lógicas, e de Edmund Husserl em geral, que João Paisana explicava como quem esmaga a banana para as criancinhas, mas que, deixados ao abandono, nos esgotava pilhas Duracell umas a seguir a outras.
Líamos. E não nos queixávamos. Até porque, depois do sofrimento, vem o prazer. Neste caso, que não em geral. Se não conseguíamos meter o dente, a culpa era nossa, não das obras. Como escreveu Kuhn, a propósito dos enigmas que os cientistas tentam resolver: se o cientista não consegue resolver o enigma, é ele que está a falhar, não são "as coisas".
Pois, agora, gente muito decente comporta-se como se a papa tivesse de ser cozinhada por "alguém" antes de ser comida. Se um livro não se lê como um romance (ligeiro!), implica esforço, regressar e rever o que foi lido, pensar uma e outra vez, juntar as pontas, tomar umas notas à margem para manter o andaime a funcionar... então, com tudo isso, o livro é uma seca. Como se a dificuldade fosse um deserto, em lugar de ser uma aventura. Esquecendo-se que é no deserto que se encontram oásis. E, em caso de seca, a culpa é do autor, claro, que se esqueceu de tratar de ser um autor popular.
Se eu não tivesse compreendido a Crítica da Razão Pura (andei um Verão a lê-la, e suei), ou da Razão Prática, ou o que fosse, só tinha que fazer melhor até compreender. Mudados os ventos, e com eles as vontades, tal como as coisas andam ainda o senhor Immanuel Kant há-de ser citado em tribunal de justiça para reescrever a obra em doze episódios de 3 minutos cada, com intervalos para pipocas e coca-cola ou fanta. Pela mesma ordem de ideias, os cientistas reclamariam ao "criador" que resolvesse os enigmas que mais lhes resistem, porque não lhes pagam para tanto esforço a desvendar segredos que bem poderiam ser apresentados em formas mais simples, equações de menor grau.
Alberto Manguel, em A Cidade das Palavras (Gradiva), escreve a páginas 71: «precisamos de deixar de lado as sobrevalorizadas virtudes do rápido e fácil e recuperar a percepção positiva de certas qualidades quase perdidas: profundidade de reflexão, lentidão na progressão, dificuldade da empresa.»
Pois, precisamos. Manguel também descreve, sem novidade mas com precisão, como a indústria de encher chouriços publica livros nos dias que correm. Ao gosto do freguês, por ser rei o consumidor. Mesmo que seja um consumidor de papel enlatado.

(Ilustração retirada daqui.)