19.10.11

a Europa e o canto das sereias.



John William Waterhouse, Ulysses and the Sirens (1891)

Uma falha evidente na abordagem do actual governo de Portugal à situação económica e financeira é a miopia em relação ao contexto europeu. Para justificar a política de desmantelar o Estado, entregar as peças aos privados e fazer-nos a todos pagar por isso, com língua de palmo, o governo Passos e Gaspar (por onde Portas passa de vez em quando como cão por vinha vindimada) insiste em que "isto" é tudo culpa nossa: efeito dos erros dos adversários políticos, Sócrates e quem que tenha dormido com ele. A crise internacional, a flutuação louca das expectativas dos mercados, o ataque ao euro por parte de zonas monetárias concorrentes, nada disso existe na cabeça dos nossos ministros do momento. Agora que parece que a Grécia vai ter uma reestruturação parcial da dívida, suportada largamente pelos próprios credores privados, coloca-se a óbvia pergunta: e nós, se pudermos, também queremos? Perguntado, Gaspar responde que não responde, que não se pronuncia sobre cenários ("questões hipotéticas"). Claro que cenários é tudo aquilo com que se trabalha. Não se faz política sem previsões, previsões são cenários, dizer de vez em quando que se não fala de cenários é fugir com o rabo à seringa. Mas Gaspar não se pronuncia, porque, segundo ele, trata-se de cumprir aquilo a que nos comprometemos e já está.
Concordo, contrariamente à esquerda que se regozija com o "não pagamos", concordo que Portugal deve mostrar-se como um país que quererá sempre cumprir com o conteúdo dos seus compromissos internacionais. Não ajudaria nada que fossemos encarados como um bando de gente sem palavra. Só que, e isto importa, cabe termos a noção de quão a "receita" que nos passaram depende do contexto político europeu. Se a Europa passar a agir, não como se a crise fosse coisa de uns pigs isolados, mas como a crise sistémica que é, muita coisa mudará. E mudarão, também, as receitas para os aflitos. E o governo de Portugal, se não tiver um interesse ideológico no "Estado mínimo e pobre", terá de jogar na renegociação. Se os bancos podem querer que o Memorando de Entendimento (MdE) seja renegociado, por que carga de água a renegociação há-de ser tabu para tudo o resto? Na verdade, as condições iniciais de aplicação do MdE já mudaram, com a revisão em baixa da taxa de juro e o prolongamento do prazo dos empréstimos. Outros pontos podem mudar. Se tudo muda no mundo, porque há-de o MdE ser a única peça imutável do puzzle? Para obter isso é preciso jogar no tabuleiro da Europa. Como, aliás, fez Sócrates - apesar de Passos Coelho, com a pressa de "ir ao pote", ter boicotado o que se estava a conseguir por esse lado. O chumbo do chamado "PEC IV" foi o primeiro acto de uma farsa pela qual o actual PM calou Portugal no tabuleiro europeu (excepto para ir a Berlim dizer o que Merkel manda, mesmo contra nós). Antes das eleições, o guião da farsa dizia que tudo se faria sem mais sacrifícios, porque a degradação da situação era exclusiva culpa nossa (de Sócrates). Depois das eleições, a crise é culpa dos outros (a crise internacional afinal existe), mas temos, na mesma, de nos desembaraçar sozinhos. Ou seja: cegueira completa sobre o ponto onde tudo verdadeiramente se joga: a Europa. Por isso Gaspar não mostra interesse nenhum na eventual nova abordagem à Grécia - nem agora, que já todos perceberam que nós também somos a Grécia.
Tudo isto para dizer que o tabuleiro europeu é decisivo. Portugal tem de voltar a ter uma política europeia, em vez de ser o menino surdo, mudo e quedo em que o actual governo nos transformou, como se estivéssemos de castigo no canto. Desse ponto de vista, aquele recente discurso do PR em Florença foi positivo - mas precisamos de mais, com mais consistência. Barroso também tem dito coisas acertadas ultimamente: já não era sem tempo! Temos, contudo, de nos preparar para as complicadas guerras de trincheiras que qualquer episódio europeu sempre implica. O essencial, aí, é sermos capazes de ver o nosso interesse a longo prazo como mais importante do que qualquer interesse de curto prazo. Não se trata de sermos altruístas, trata-se de não sermos míopes e não prejudicarmos os interesses permanentes no altar das conveniências imediatas.
Dou um exemplo: a regra da unanimidade. Muitos "pequenos países" abominam a ideia de deixarem de ter um voto absolutamente decisivo em certas decisões importantes. Raciocínio: em questões fulcrais, temos de poder vetar, como última defesa. Defeito essencial deste raciocínio: qualquer outro também pode vetar o que para nós seria decisivo. Por exemplo, um partido populista na Finlândia pode levar esse Estado-membro a bloquear uma decisão de nos financiar. Afinal, abandonar a regra da unanimidade é uma necessidade para que o calendário interno de qualquer país não aprisione todos os outros. Um governo responsável de um qualquer país, colocado perante uma decisão europeia necessária mas impopular, fica no dilema: ou vota a favor de algo que o seu eleitorado interno não apoia, ou vota contra e impede uma solução (às vezes provocando remendos cosméticos que tornam tudo ainda mais disfuncional). Ora, essa pressão podia ser aligeirada se, precisamente, se eliminasse a possibilidade de um único país (ou um número muito restrito de países) bloquear uma decisão. Em termos de processo de decisão europeia, precisamos de nos libertar da armadilha do excessivo peso das circunstâncias, do aqui e agora de qualquer uma das partes (países), sem que isso signifique qualquer menos respeito por cada parceiro. O ponto é que, visto o conjunto e visto para lá do imediato, às vezes precisamos de nos acautelar contra as más decisões que nós próprios podemos tomar em certos momentos. Trata-se de trocar uma visão simplista dos processos de decisão por uma compreensão mais lata dos seus mecanismos como processo histórico. Ajuda, para compreender isto, ver como Homero, no Canto XII da Odisseia, apresenta o episódio do canto das Sereias.
As Sereias, na sua ilha, atraíam com um canto irresistível os marinheiros que navegavam ao largo, que assim se deixavam conduzir a uma armadilha mortal. Ulisses, avisado por Circe, sabendo que também ele e os seus companheiros não resistiriam à tentação, preparou-se para a ocasião explicando a situação à sua tripulação, tapando com cera os ouvidos dos seus marinheiros e ordenando-lhes que o amarrassem ao mastro do navio e que o prendessem ainda com mais cordas quando ele pedisse para o soltarem. Ulisses não expôs os seus companheiros à tentação e garantiu que ele próprio, concedendo-se a oportunidade de experimentar a situação, seria impedido nessa ocasião de tomar a má decisão que nesse momento haveria de querer tomar: aceder ao armadilhado convite das Sereias. Esta distribuição do processo de decisão revela uma competência sofisticada para, com antecipação, tornar evitável o que de outro modo (e para os que assim não procedessem) era uma inevitabilidade.
Mudar os processos de decisão na União Europeia, para evitar que, em dado momento, este ou aquele país ceda ao canto das sereias, é necessário para tornar mais sábia esta comunidade de destino. Se Portugal perceber onde se joga o seu futuro, entra nesse jogo. Se, como tem sido timbre deste governo, Portugal se distrair desse palco, continuaremos a ter uma governação que pensa que nos safamos, contra o mundo, cortando, cortando, cortando, sem amanhãs. Nem dos que cantam, nem dos outros.