10.9.10

o manifesto dos economistas consternados


Parece-lhe evidente que os mercados financeiros são eficientes? que os mercados financeiros são favoráveis ao crescimento económico? que os mercados são bons juízes da solvabilidade dos Estados? que o aumento da dívida pública resulta de um excesso de despesa? que é preciso reduzir as despesas para reduzir a dívida pública? que a dívida pública atira o custo dos nossos excessos para os nossos netos? que devemos tranquilizar os mercados financeiros para poder financiar a dívida pública? que a União Europeia defende o modelo social europeu? que o euro é um escudo contra a crise? que a crise grega permitiu finalmente avançar para um governo económico europeu e para uma verdadeira solidariedade europeia? Se tudo isto lhe parece evidente, vale a pena dar uma espreitadela ao manifesto dos economistas consternados.

O “Manifesto dos economistas consternados” é uma iniciativa de André Orléan, Philippe Askenazy, Thomas Coutrot e Henri Sterdyniak. Está disponível em linha aqui – mas numa língua que “alguns” não dominam o suficiente para tal leitura. Não cabe dar aqui uma tradução do francês para o português, mas sempre achamos poder dar o sumo: as 10 falsas evidências denunciadas, as 22 medidas propostas para sair do impasse. Pequenas partes dos textos justificativos de cada uma das “ideias feitas” são também parcialmente resumidas. Claro que só o original faz fé.
Não seria preciso dizer: não se suponha que a publicação deste material implica a integral concordância com ele; “apenas” implica a minha concordância com a importância destas questões e com a necessidade de voltar a pensar contra as ideias feitas.

 

Crise e dívida na Europa:
10 falsas evidências, 22 medidas em debate para sair do impasse


Falsa Evidência # 1: os mercados financeiros são eficientes.

A crise encarregou-se de demonstrar que os mercados não são eficientes, que não permitem a alocação eficiente de capital. A competição financeira não produz necessariamente os preços justos. Pior, a competição é muitas vezes causa de desestabilização financeira e leva a evoluções de preços excessivas e irracionais (“bolhas financeiras”).
Para reduzir a ineficiência e a instabilidade dos mercados financeiros, sugerimos quatro medidas:
Medida 1: compartimentar estritamente os mercados financeiros e as actividades dos agentes financeiros, proibir os bancos de especular por conta própria, para evitar a propagação de bolhas e craches.
Medida 2: Reduzir a liquidez e a especulação desestabilizadora com controlo dos movimentos de capitais e taxas sobre operações financeiras.
Medida 3: Restringir as operações financeiras às que se prendem com necessidades da economia real (por exemplo, CDS apenas aos detentores de títulos segurados, etc.).
Medida 4: Plafonamento das remunerações dos traders.

Falsa Evidência # 2: os mercados financeiros são favoráveis ao crescimento económico.

Hoje em dia, globalmente, são as empresas que financiam os accionistas, e não o contrário. A ideia de um interesse comum das diferentes partes envolvidas na empresa desapareceu. Impôs-se uma nova concepção da empresa e da sua gestão, pensados como estando ao serviço exclusivo dos accionistas. As exigências de rentabilidade inibem fortemente o investimento: quanto maior o retorno exigido, maior é difícil encontrar projectos para o satisfazer. A forma de remuneração dos administradores faz com que os seus interesses sejam os mesmos dos accionistas.
Para remediar os efeitos negativos dos mercados financeiros sobre a actividade económica colocamos a debate três medidas:
Medida 5: Reforçar significativamente o equilíbrio de poderes dentro das empresas para forçar a administração a tomar em conta todos os interesses participantes.
Medida 6: Aumentar significativamente os impostos sobre os rendimentos muito elevados para desencorajar a corrida aos rendimentos insustentáveis.
Medida 7: Reduzir a dependência das empresas face aos mercados financeiros, pelo desenvolvimento de uma política pública de crédito (taxas preferenciais para actividades prioritárias na área social e ambiental).

Falsa Evidência # 3: os mercados são bons juízes da solvabilidade dos Estados.

Segundo os defensores da ideia de que os mercados de capitais são eficientes, os participantes do mercado têm em conta a situação objectiva das finanças públicas ao avaliar o risco de comprar um título de dívida pública. Este erro de avaliação resulta da incompreensão da verdadeira natureza da avaliação pelo mercado financeiro, que frequentemente produz preços totalmente dissociados dos fundamentais. Um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é preciso prever o que será o futuro. Não há nenhuma razão para os operadores nas salas de mercado serem bons nesse exercício. Além do mais, a avaliação financeira não é neutra. Baixar as notações de um Estado contribui para aumentar as taxas de juro sobre a dívida desse Estado, constituindo-se como fonte de lucros especulativos, ao mesmo tempo que pioram o cenário que estão a avaliar.
Para reduzir a influência da psicologia de mercado no financiamento do Estado, colocamos a debate duas medidas:
Medida 8: A actividade das agências de notação financeira deve ser regulada no sentido de reduzir a arbitrariedade: a notação deve resultar de um cálculo económico transparente.
Medida 8bis: O BCE, com a compra de títulos públicos, deve proteger os Estados dos mercados financeiros.

Falsa Evidência # 4: o aumento da dívida pública resulta de um excesso de despesa.

A visão propagada pela maioria dos comentadores é a de um Estado que se endivida como um pai alcoólico que bebe o que tem e o que não tem. Contudo, a recente explosão da dívida pública na Europa e no mundo é devida a outra coisa: aos planos de resgate do mercado financeiro e, sobretudo, à recessão causada pela crise bancária e financeira, que começou em 2008. O deficit público médio na zona euro era de apenas 0,6% do PIB em 2007, mas a crise financeira aumentou-o para 7% em 2010. A dívida pública aumentou, ao mesmo tempo, de 66% para 84% do PIB.
Para restaurar um debate público informado sobre a origem da dívida e, portanto, os meios para superá-la, propomos:
Medida 9: Realizar uma iniciativa cidadã de auditoria pública da dívida do Estado, para determinar a sua origem, bem como conhecer a identidade dos principais detentores de títulos de dívida e os montantes detidos.

Falsa Evidência # 5: é preciso reduzir as despesas para reduzir a dívida pública.

Embora o aumento da dívida pública resulte em parte do aumento da despesa pública, cortar na despesa não é necessariamente contribuir para a solução. Porque a dinâmica da dívida pública pouco tem a ver com a de uma economia doméstica. A dinâmica da dívida depende de vários factores: o nível dos deficits primários, mas também da diferença entre as taxas de juros e a taxa de crescimento nominal da economia. Pois, se esta for menor do que a taxa de juros, a dívida vai aumentar mecanicamente apenas pelo efeito “bola de neve": o montante dos juros explode, e o deficit total (incluindo juros de dívida) também. Mas a taxa de crescimento da própria economia não é independente da despesa pública. Se a redução do défice afunda a actividade económica, a dívida aumentará ainda mais. O que, obviamente, esquecem os adeptos do ajustamento estrutural europeu é que os países europeus são os principais clientes e concorrentes de outros países europeus; a redução simultânea e massiva das despesas públicas do conjunto dos países da UE só pode ter como efeito uma recessão e novo agravamento da dívida.
Para evitar que o esforço de recuperação das finanças públicas resulte num desastre social e político, colocamos a debate duas medidas:
Medida 10: Manter, ou melhorar, o nível de protecção social.
Medida 11: Aumentar o esforço orçamental em educação, investigação, reconversão ambiental, …, para estabelecer as condições para um crescimento sustentável, permitindo uma queda acentuada do desemprego.

Falsa Evidência # 6: a dívida pública atira o custo dos nossos excessos para os nossos netos.

É uma outra declaração enganosa, que confunde economia doméstica e macroeconomia: a dívida seria uma transferência de riqueza em detrimento das gerações futuras. A dívida pública é um mecanismo de transferência de riqueza, mas sim da maior parte dos contribuintes comuns para os que vivem de rendas. O aumento da dívida pública na Europa ou nos E.U.A. não é o resultado de políticas expansionistas ou políticas sociais dispendiosas, mas antes de políticas a favor das classes privilegiadas: as baixas de impostos aumentam o rendimento disponível dos que menos precisam, que assim podem aumentar os seus investimentos (nomeadamente em títulos do Tesouro), cujos juros são pagos pelos impostos cobrados sobre todos os contribuintes. Trata-se de um mecanismo de redistribuição ao contrário, das classes mais baixas para as classes superiores, através da dívida pública.
Para recuperar as finanças públicas de forma equitativa, pomos a debate duas medidas:
Medida 12: Voltar a dar um carácter fortemente redistributivo à fiscalidade directa sobre o rendimento (supressão de nichos, criação de novos escalões, aumento das taxas...);
Medida 13: Eliminar as isenções concedidas às empresas sem efeito suficiente em matéria de emprego.


Falsa Evidência # 7: devemos tranquilizar os mercados financeiros para poder financiar a dívida pública.

Resultado de uma escolha doutrinária, o Banco Central Europeu não tem o direito de subscrever directamente títulos de dívida pública dos Estados europeus. Privados da segurança que assim poderiam obter, os países do Sul foram vítimas de ataques especulativos. É certo que, nos últimos meses, o BCE compra obrigações a taxas de juro de mercado para aliviar as tensões no mercado, mas nada diz que isto será suficiente se a crise piorar e as taxas de juro de mercado aumentarem.
Com vista a resolver o problema da dívida, pomos a debate duas medidas:
Medida 14: Autorizar o BCE a financiar directamente os Estados (ou exigir que os bancos comerciais subscrevem emissões de títulos públicos) com baixas taxas de juros, afrouxando assim o espartilho com que os mercados financeiros os apertam.
Medida 15: Se necessário, reestruturar a dívida pública, por exemplo, limitando o serviço da dívida pública a uma determinada % do PIB, e discriminando entre os credores segundo o volume de acções que possuem. Há também que renegociar as taxas de juros exorbitantes dos títulos emitidos por países em dificuldades durante a crise.

Falsa Evidência # 8: a União Europeia defende o modelo social europeu.

A construção europeia aparece como uma experiência ambígua. Duas visões da Europa coexistem, sem ousarem uma confrontação aberta. Para os social-democratas [socialistas], a Europa deveria ter o objectivo de promover o modelo social europeu, fruto do compromisso social do pós-Segunda Guerra Mundial, com a protecção social, os serviços públicos e as políticas industriais. A Europa deveria ter defendido uma visão própria da organização da economia mundial, a globalização regulada por organismos de governança global. Entretanto, a visão que prevalece, em Bruxelas e na maioria dos governos nacionais, é a de uma Europa liberal: a integração europeia é uma oportunidade para minar o modelo social europeu e desregulamentar a economia. Longe de se limitar ao mercado interno, a liberdade de circulação de capitais concedida aos investidores no mundo inteiro tem submetido o tecido produtivo europeu aos constrangimentos de valorização do capital internacional. A organização da política macroeconómica (independência do BCE face às instâncias políticas, o Pacto de Estabilidade) é marcada pela desconfiança face aos governos democraticamente eleitos. Nenhuma política conjuntural comum é implementada ao nível da zona, nenhum objectivo comum é definido em termos de crescimento e emprego. As diferenças de situação entre países não são tidas em conta.
Para que a Europa possa verdadeiramente promover um modelo social europeu, pomos a debate duas medidas:
Medida 16: Voltar a questionar a livre circulação de capitais e mercadorias entre a UE e o resto do mundo, se necessário através da negociação de acordos bilaterais ou multilaterais;
Medida 17: Em vez da política de concorrência, fazer da “harmonização no progresso” o fio condutor da construção europeia. Estabelecer metas comuns com carácter obrigatório em matéria de progresso social, tal como existem em matéria macroeconómica.

Falsa Evidência # 9: o euro é um escudo contra a crise.

O euro deveria ter sido um factor de protecção contra a crise financeira mundial. De facto, a eliminação de incerteza nas taxas de câmbio entre moedas europeias afastou um dos principais factores de instabilidade. No entanto, as coisas não se passaram bem assim: a Europa foi mais duradoura e mais duramente afectada pela crise do que o resto do mundo – e isso deve-se às próprias modalidades de construção da união monetária. A política económica da zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas similares a países em diferentes situações, aprofundou as disparidades de crescimento entre os Estados-Membros. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, permitiu fazer recair o ónus do ajustamento sobre o emprego. Foi promovida a flexibilidade e moderação salariais, reduzida a parte dos salários no rendimento total, aumentadas as desigualdades. A Alemanha aproveitou bem: os seus superavits comerciais existem à custa dos seus parceiros, e dos seus empregados (menor custo de trabalho e benefícios sociais). Os excedentes comerciais alemães pesam sobre o crescimento dos outros países. Os défices orçamentais e comerciais de uns são a contrapartidas dos excedentes de outros – na ausência de uma estratégia coordenada. Quando a crise financeira começou nos Estados Unidos, eles tentaram uma verdadeira política de relançamento, iniciando também um movimento de re-regulação financeira. A Europa, pelo contrário, não conseguiu ainda fazer o suficiente. Ao mesmo tempo, a Comissão tem continuado a lançar os procedimentos de défice excessivo contra os Estados-Membros.
Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos europeus da crise, trazemos a debate duas medidas:
Medida 18: Assegurar uma efectiva coordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus.
Medida 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na Europa por um Banco de Compensações (organizando empréstimos entre países europeus).
Medida 20: Se a crise do euro levar à sua fragmentação, e enquanto se aguarda o orçamento da UE, estabelecer um regime monetário intra-europeu (uma moeda comum do tipo "bancor”) que organize a absorção dos desequilíbrios das balanças comerciais na Europa.

Falsa Evidência # 10: a crise grega permitiu finalmente avançar para um governo económico europeu e para uma verdadeira solidariedade europeia.

Os especuladores perceberam as falhas na organização da área do euro. Enquanto os governos de outros países desenvolvidos continuam a poder ser apoiados pelos seus bancos centrais, os países da zona euro renunciaram a esta opção e são totalmente dependentes dos mercados para financiar os seus deficits. Como resultado, a especulação teve a sua oportunidade atacando os mais vulneráveis da zona. As autoridades europeias e os governos foram lentos a reagir – mas, mesmo assim, fizeram-no obrigando os países ameaçados a políticas recessivas e empurrando-os para a privatização de serviços públicos. Os partidários das políticas orçamentais automáticas e restritivas na Europa foram reforçados. A ideia de avançar para um governo económico europeu está agora associada aos que querem que sejam as políticas sociais a pagar a crise.
Para avançar para um verdadeiro governo económico e uma solidariedade europeia, pomos a debate duas medidas:
Medida 21: Desenvolvimento de uma fiscalidade europeia (taxa sobre o carbono, imposto sobre os lucros, ...) e um verdadeiro orçamento europeu para apoiar a convergência das economias e trabalhar no sentido da igualdade de acesso aos serviços públicos e sociais nos diversos Estados-Membros, com base nas melhores práticas.
Medida 22: Lançamento de um vasto plano europeu, financiado por subscrição pública, com baixas taxas de juros mas com garantia, e/ou emissão do BCE, para iniciar a reconversão ecológica da economia europeia.