9.9.09

pornografia e livres philosophiques

(imagem daqui)

«Robert Darnton chamou a atenção para o corpo rico da literatura do século XVIII que jogou com um pau de dois bicos e desafiou os limites da filosofia e da pornografia. Como ambas foram banidas pelos censores, ambas foram abordadas no vasto mercado de livros ilegais como “livros filosóficos”. (…) Podem imaginar-se as razões mais cínicas para misturar filosofia e pornografia: enquanto um filósofo sem interesse podia desejar vender o seu materialismo palavroso, um pornógrafo manhoso, para fugir ao censor, ocultava as obscenidades entre textos que poucos tinham a paciência de ler até ao fim. (…) Darnton mostra (…) que “o jornalismo de escândalos, o comentário social, as polémicas políticas, o anticlericalismo obsceno, as fantasias utópicas, as especulações teóricas e a pornografia crua – tudo coabitava de forma promíscua sob o mesmo rótulo, livres philosophiques

Susan Neiman, Evil in Modern Thought, 2002 (trad. portuguesa na Gradiva)


Louçã tem feito nas últimas semanas o que constitui o ataque mais cerrado das últimas décadas, vindo de qualquer força política das actualmente em liça, de esquerda ou de direita, ao PS. Deu múltiplas entrevistas e definiu implicitamente o objectivo de desmembrar o PS, para “baralhar e voltar a dar”, tudo embrulhado na sua aspiração de liderança como candidato a primeiro-ministro. O frentismo, misturado com populismo, é o cimento dessa ofensiva: é o que fica à vista na insistência de que o BE não é bem um partido, mas mais um movimento de tipo novo. Piscando o olho, até, ao sentimento anti-partidos.

Ontem, no debate com Sócrates, Louçã teve a ideia (correcta) de que seria contraproducente mostrar essa face de inimigo assanhado do PS ali à frente de toda a gente. E tentou inicialmente moderar ligeiramente o seu discurso. Mas essa postura a-fazer-de-moderado era postiça e não durou.

Primeiro, Louçã prosseguiu a sua tentativa de se mostrar como paladino das novas aventuras à esquerda. Esqueceu-se, contudo, de que algumas das suas ideias, em vez de novas e inovadoras, são velhas demais para esquecermos a sua história. Sou dos que admitem que as nacionalizações podem ser necessárias e úteis e que o Estado não deve em princípio prescindir dessa possibilidade. Mas não é preciso ter memória de elefante para saber que o controlo generalizado da economia (e da sociedade) pelo Estado é um caminho que provou não ser menos problemático que a mão invisível. Louçã fala muito da história recente mas parece ter perdido os primeiros volumes da série. Mostrou, assim, arrogância política – porque imaginou que, invocada a ideologia, as suas propostas não teriam que passar o crivo da análise pragmática e concreta.

Segundo, Louçã continuou a sua cruzada moral. Tentou, de novo, encostar o PS à imagem de um bando de vendilhões do templo que trocam o interesse público pelos favores aos amigos e respectivas empresas. Claro, na base desse raciocínio está a ideia profunda e subliminar de que as empresas são pecaminosas e que “os negócios” e o lucro são coisa do diabo. Desta vez, para isso, foi buscar mais um “caso”. Uma adjudicação inexistente. Mas que Louçã insistia que sim, que estava consumada. Mais uma vez, a chave é a mesma: Louçã, na sua arrogância, achava que a palavra dele contra a de Sócrates tem de ser fatal a Sócrates. Uma mera afirmação de Louçã seria suficiente para desmentir Sócrates, porque – como outras vezes FL fizera antes – o pressuposto era que JS mente sistematicamente. Também nesse ponto este debate foi paradigmático dos últimos anos: o veríssimo Louçã mentia, o seu suspeito do costume falava verdade.

Tudo isto para dizer o quê? Para dizer que não desprezo o contributo do BE para um debate à esquerda. Que acharia um erro monumental se o PS não procurasse compreender, por exemplo, o contributo crítico do que tenho chamado “esquerda académica”, que está a ajudar a falsificar os dogmas neoclássicos em economia e a contrariar os paladinos da mercantilização da sociedade. Para dizer que precisamente os socialistas são aqueles que estão em condições de dar bom uso a essa reflexão, levando-a ao governo do país.

Mas tudo isto também para dizer que o facto de certos dirigentes da “esquerda da esquerda” serem intelectual e politicamente arrogantes – não nos deve convencer de que a arrogância seja uma virtude da esquerda. Bem pelo contrário. Temos é que nos livrar das amálgamas entre arrogância (moral e ideológica) e políticas de esquerda. Por serem ilegítimas essas amálgamas. E porque elas só podem abrir a porta ao regresso do neo-cavaquismo: por causa do carácter essencialmente arrogante do próprio cavaquismo, que assim encontra uma (inesperada?) bênção à esquerda.

E isto também, claro, para não reeditarmos, ao estilo do século XVIII, a amálgama entre livres philosophiques e pornografia.

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