Porfírio Silva, 26 de Novembro de 2025

«O tempo é um dispositivo que impede que tudo aconteça de uma vez.» (Bergson)

A Casa Branca publicou, na segunda-feira, 29 de setembro, um
plano em vinte pontos proposto pelo presidente norte-americano, Donald Trump,
ao primeiro-ministro israelita, Benjamim Netanyahu, durante a visita deste
último a Washington, para pôr fim à guerra no território palestiniano.
Ponto 1. "Gaza será uma zona desradicalizada
e liberta do terrorismo, que não representará uma ameaça para os seus
vizinhos."
A ideia é que o Hamas deixe de assegurar o governo de facto do enclave. Este
ponto é essencial para tranquilizar os israelitas, que ainda vivem em grande
parte sob o trauma do massacre de 7 de outubro. Para além das atrocidades
cometidas nesse dia, os habitantes da periferia de Gaza sofreram, durante vinte
anos, ataques de rockets cada vez mais sofisticados. Muitos deles precisam de ver
uma mudança real na governação do território palestiniano antes de tomarem a
decisão de regressar às suas casas.
Ponto 2. "A Faixa de Gaza será reabilitada no
interesse da população do enclave, que já sofreu o suficiente."
“ Sofrimento” é um eufemismo para os palestinianos de Gaza, cuja identidade
nacional não é mencionada no “plano Trump”. Mais de 65 000 deles foram mortos e
cerca de 170 000 ficaram feridos, segundo números do Ministério da Saúde de
Gaza, controlado pelo Hamas, mas considerados credíveis pelas organizações
internacionais. Aproximadamente 92% das habitações foram destruídas ou
danificadas, de acordo com o Gabinete da Coordenação dos Assuntos Humanitários
das Nações Unidas (OCHA). A ONU declarou, em agosto, estado de fome para 500
000 habitantes de Gaza. Uma crise criada de todas as formas, uma vez que Israel
restringiu drasticamente o fornecimento de alimentos, confiado a uma entidade
opaca, a Gaza Humanitarian Foundation (GHF), que dispõe apenas de quatro
centros de distribuição em toda a faixa. Conjunto de atos que levou muitos
investigadores, juristas e organizações de direitos humanos, tanto israelitas
como internacionais, a concluir que está em curso um genocídio em Gaza.
Ponto 3. "Se as duas partes [Israel e o
Hamas] aceitarem este plano, a guerra terminará imediatamente. As forças
israelitas retirar-se-ão até uma linha acordada para preparar a libertação dos
reféns. Durante esse período, todas as operações militares, incluindo os
bombardeamentos aéreos e de artilharia, serão suspensas, e as linhas da frente
permanecerão fixas até que estejam reunidas as condições para uma retirada
faseada."
O Hamas sempre exigiu que o exército israelita procedesse a
uma retirada total, e não parcial, da Faixa. As forças do Estado hebraico
controlam atualmente 82% dos 360 quilómetros quadrados de Gaza, deixando os 2,1
milhões de habitantes amontoados numa minúscula faixa costeira. Segundo um mapa
divulgado pela Casa Branca, Israel deverá, numa primeira fase, efetuar uma
retirada limitada assim que os reféns sejam libertados. Retirar-se-á um pouco
mais quando uma “força internacional de estabilização” (ISF), ainda de
contornos vagos, assumir o controlo da zona libertada, no caso ainda hipotético
de o Hamas depor as armas. Finalmente, Israel deverá proceder a uma terceira
retirada, em prazo indeterminado, mas manterá o controlo de todas as fronteiras
do enclave, incluindo a que este partilha com o Egito. Trata-se de um ganho
significativo para o Estado hebraico. Pelo contrário, a ausência de um
calendário claro para estas retiradas promete suscitar reservas, ou mesmo uma
contestação aberta, da parte do Hamas.
Ponto 4. "Nas setenta e duas horas seguintes
à aceitação pública deste acordo por Israel, todos os reféns, vivos ou mortos,
serão entregues."
Das 251 pessoas raptadas a 7 de outubro, o Hamas ainda detém
47, das quais cerca de vinte estarão vivas, segundo estimativas do exército
israelita. Os dois anteriores cessar-fogos, em novembro de 2023 e em janeiro,
previam uma libertação gradual dos cativos, o que deu lugar a encenações
macabras por parte do Hamas. Desta vez, o “plano Trump” pressupõe a libertação
da totalidade dos reféns, vivos ou mortos, de uma só vez. O regresso destes
cativos às suas casas, em troca do fim da guerra, é um desejo constante da
maioria dos israelitas — 64,5%, de acordo com uma sondagem realizada em agosto
pelo Instituto Democrático de Israel. Incluindo entre os simpatizantes do
Likud, o partido dirigido pelo primeiro-ministro Benjamim Netanyahu.
Ponto 5. "Uma vez libertados todos os reféns,
Israel soltará 250 prisioneiros condenados a prisão perpétua, bem como 1 700
habitantes de Gaza detidos após 7 de outubro de 2023, incluindo todas as
mulheres e crianças detidas nesse contexto. Por cada refém israelita cujos
restos mortais sejam entregues, Israel libertará os corpos de quinze
palestinianos de Gaza mortos."
Este é um dos poucos pontos relativamente precisos do
acordo. O Hamas, que fez da libertação dos prisioneiros palestinianos uma das
suas prioridades, pode reivindicá-lo como vitória. Mas o facto de o plano não
indicar qualquer calendário para essas libertações pode levar o movimento
islamista a adotar prudência. Do lado israelita, este ponto arrisca-se a
provocar divisões no seio da coligação governamental, podendo mesmo conduzir à
sua queda. Os dois ministros mais radicais de Benjamim Netanyahu, Itamar Ben
Gvir e Bezalel Smotrich, oriundos da extrema-direita nacionalista e religiosa,
terão dificuldade em aceitar a libertação de tantos palestinianos, considerados
de forma uniforme como “terroristas”, além de uma retirada, mesmo que parcial,
da Faixa de Gaza, onde sonham reconstruir colonatos. Em janeiro, uma parte dos
prisioneiros libertados tinha sido expulsa para o Egito, antes de escolher o
exílio entre a Tunísia, a Argélia e a Turquia.
Ponto 6. "Uma vez que todos os reféns tenham
sido entregues, os membros do Hamas que se comprometerem a coexistir
pacificamente e a desarmar-se beneficiarão de uma amnistia. Aqueles que
desejarem deixar Gaza terão direito a uma passagem protegida para os países de
destino."
É pouco provável que esta medida suscite grande adesão. Uma
parte significativa da direção política e militar do Hamas na Faixa de Gaza foi
morta nos bombardeamentos israelitas. Entre os sobreviventes, os que estão
feridos poderão aproveitar esta oportunidade para sair e receber tratamento
médico no estrangeiro. No entanto, no caso de aceitar o plano, o movimento
islamista procurará manter parte dos seus quadros no local. Mesmo tendo
declarado estar disposto a abandonar a governação do enclave, o Hamas não pretende,
por isso, abandonar o terreno.
Ponto 7. "Com a aceitação deste acordo, uma
ajuda [humanitária] completa será imediatamente encaminhada para a Faixa de
Gaza. As quantidades serão, no mínimo, conformes às previstas no acordo de 19
de janeiro de 2025 sobre ajuda humanitária, incluindo a reabilitação das
infraestruturas (água, eletricidade, saneamento), a recuperação dos hospitais e
das padarias, bem como o envio dos equipamentos necessários para remover os
escombros e abrir as estradas."
Para Gaza, a urgência humanitária é absoluta. Colunas de
ajuda, por enquanto bloqueados por Israel, estão prontos a partir, nomeadamente
a partir da cidade de El-Arich, situada no Sinai, no Egito, e do porto de
Ashdod, em Israel. Nos primeiros dias do cessar-fogo de janeiro a março de
2025, entravam diariamente em Gaza entre 500 e 600 camiões. O que correspondia
ao nível do período anterior à guerra, embora as necessidades, em comparação
com essa altura, tenham decuplicado.
Ponto 8. "A entrada da ajuda e a sua
distribuição na Faixa de Gaza serão feitas sem ingerência de nenhuma das
partes, através das Nações Unidas e das suas agências, bem como do Crescente
Vermelho e de outras instituições internacionais não associadas a qualquer dos
lados. A abertura da passagem de Rafah [no sul do enclave], nos dois sentidos,
ficará sujeita ao mesmo mecanismo implementado no âmbito do acordo de 19 de
janeiro de 2025."
As Nações Unidas, criticadas por Donald Trump e
marginalizadas por Israel, regressam ao centro do processo de distribuição da
ajuda humanitária. Trata-se de um ganho importante para os palestinianos de
Gaza. A referência a “outras instituições internacionais” deverá, no entanto,
permitir que a GHF se mantenha no terreno. O destino do posto
fronteiriço de Rafah permanece incerto. Durante o cessar-fogo de janeiro,
Israel tinha mantido tropas nesse local.
Ponto 9. "Gaza será governada ao abrigo da
autoridade transitória temporária de um comité palestiniano tecnocrático e
apolítico (…), sob a supervisão e o controlo de um novo órgão internacional de
transição, o 'Conselho da Paz', que será dirigido e presidido pelo presidente
Donald Trump, com outros membros e chefes de Estado que serão anunciados,
incluindo o antigo primeiro-ministro [britânico] Tony Blair. Este órgão
definirá o quadro e gerirá o financiamento da reconstrução de Gaza até que a
Autoridade Palestiniana tenha concluído o seu programa de reformas."
É este ponto que permitiu a Benjamim Netanyahu vangloriar-se
de que Gaza não seria governada nem pelo Hamas nem pela Autoridade
Palestiniana. Ninguém sabe ainda quem serão as personalidades palestinianas que
aceitarão fazer parte deste comité. E a formulação vaga sobre o programa de
reformas exigido à Autoridade Palestiniana permitirá prolongar o mandato deste
comité ad aeternam.
Ponto 10. "Um plano de desenvolvimento
económico de Donald Trump para reconstruir e dinamizar Gaza, reunindo um painel
de especialistas que contribuíram para o nascimento de algumas das modernas
cidades prósperas do Médio Oriente (…)."
Donald Trump, ainda embalado pelo seu sucesso em ter
conseguido impor um cessar-fogo entre o Hamas e Israel em janeiro, tinha
declarado em fevereiro que os Estados Unidos deveriam assumir o controlo da
Faixa de Gaza e aí construir a “Riviera do Médio Oriente”. Um tal projeto já
não está em cima da mesa. Reconstruir Gaza promete ser uma tarefa gigantesca:
serão necessários mais de vinte anos para remover os 50 milhões de toneladas de
destroços. O genro de Donald Trump, o promotor imobiliário Jared Kushner, próximo
da Arábia Saudita, poderá desempenhar um papel ativo nesta reconstrução.
Ponto 11. "Será criada uma zona económica
especial com direitos aduaneiros preferenciais e taxas de acesso a negociar com
os países participantes."
Ponto 12. "Ninguém será forçado a deixar
Gaza, e aqueles que desejarem partir serão livres de o fazer e de regressar.
Incentivaremos as pessoas a permanecer e ofereceremos a oportunidade de
construir uma Gaza melhor."
Trata-se de um ponto essencial, numa altura em que o governo
israelita deixou várias vezes no ar a possibilidade de uma limpeza étnica do
enclave, seja em massa, expulsando os palestinianos para o Sinai, seja de forma
individual, incentivando as chamadas saídas “voluntárias”. Esta opção,
firmemente recusada pela maioria da comunidade internacional, e em primeiro
lugar pelos países árabes, parece ter sido definitivamente afastada.
Ponto 13. "O Hamas e as outras fações
comprometem-se a não desempenhar qualquer papel na governação de Gaza, direta,
indireta ou sob qualquer forma. Todas as infraestruturas militares, terroristas
e ofensivas, incluindo túneis e instalações de produção de armas, serão
destruídas e não poderão ser reconstruídas. Haverá um processo de
desmilitarização de Gaza sob a supervisão de controladores independentes (…). A
Nova Gaza será inteiramente dedicada à construção de uma economia próspera e à
coexistência pacífica com os seus vizinhos."
A visão de Trump para Gaza consiste numa zona franca,
desmilitarizada e até despolitizada — o modelo de uma “Singapura
mediterrânica”, sonhado já nos anos 1990 por israelitas. Mas Israel terá de
aceitar levantar o bloqueio imposto desde 2007 e a tomada de controlo de Gaza
pelo Hamas, que impede a entrada de muitos materiais e equipamentos.
Ponto 14. "Será fornecida uma garantia por
parte de parceiros regionais para assegurar que o Hamas e as fações respeitam
as suas obrigações e que a Nova Gaza não constitui uma ameaça para os seus
vizinhos ou habitantes."
Ponto 15. "Os Estados Unidos trabalharão com
parceiros árabes e internacionais para desenvolver uma força internacional de
estabilização (ISF) temporária a ser imediatamente destacada no enclave."
Ninguém conhece ainda a composição dessa força. Vários
países já tinham proposto a sua ajuda, da França à Indonésia. Mas será
necessário, antes de mais, que Israel, apegado ao seu controlo sobre o enclave,
aceite deixá-la atuar. Os Emirados Árabes Unidos poderão desempenhar um papel
de primeiro plano.
Ponto 16. "Israel não ocupará nem anexará
Gaza. À medida que a ISF estabelecer o controlo e a estabilidade, o exército
israelita retirar-se-á com base em normas, etapas e prazos ligados à
desmilitarização que serão acordados entre o exército israelita, a ISF, os
garantidores e os Estados Unidos, com o objetivo de uma Gaza segura que já não
represente uma ameaça para Israel, o Egito ou os seus cidadãos. Concretamente,
o exército israelita entregará progressivamente o território de Gaza que ocupa
à ISF segundo um acordo a celebrar com a autoridade de transição até ao seu
completo retiro do enclave, à excepção de uma presença num perímetro de
segurança que permanecerá até que a Faixa de Gaza esteja corretamente
assegurada contra qualquer ressurgência de ameaça terrorista."
Esta posição de princípio é forte, mas deixa muita margem
para interpretação. Quando é que Israel considerará que Gaza está “corretamente
assegurada”? Qual será a dimensão desse “perímetro de segurança”? Onde serão
alojados os habitantes de Gaza enquanto decorre a reconstrução do enclave?
Ponto 17. "No caso de o Hamas atrasar ou
rejeitar esta proposta, os elementos acima, incluindo a importante operação de
ajuda, serão implementados nas zonas libertadas do terrorismo entregues pelo
exército israelita à ISF."
Se o Hamas, ou uma fração do movimento, não capitular, será
confinado a uma área onde Israel estará autorizado a prosseguir a guerra. Mais
uma vez, trata-se de um mecanismo que permite ao governo manter uma forma de
controlo sobre o enclave, em particular nas zonas urbanizadas.
Ponto 18. "Será estabelecido um processo de
diálogo inter-religioso com base nos valores da tolerância e da coexistência
pacífica, a fim de tentar mudar as mentalidades dos palestinianos e dos
israelitas, sublinhando as vantagens que podem advir da paz."
Este ponto, vago na sua formulação, sugere que a
administração americana considera o Hamas como um simples movimento religioso
radical e não como uma fação islamo-nacionalista. Isto comporta o risco de
deixar de lado um processo de reconciliação política, ou até mesmo de justiça
transicional.
Ponto 19. "À medida que o redesenvolvimento
de Gaza progrida e quando o programa de reformas da Autoridade Palestiniana for
fielmente implementado, poderão finalmente estar reunidas as condições para
abrir um caminho credível para a autodeterminação e a criação de um Estado
palestiniano, que reconhecemos como sendo a aspiração do povo
palestiniano."
A menção a um Estado palestiniano era essencial para que os
países árabes de primeira linha — Arábia Saudita, Egito, Jordânia, Qatar —
aceitassem o plano proposto por Donald Trump. Mas o uso do condicional, a
ausência de qualquer referência à Cisjordânia ocupada e o facto de só surgir no
final do texto parecem mostrar que não se trata de uma prioridade para os
americanos.
Ponto 20. "Os Estados Unidos estabelecerão um
diálogo entre Israel e os palestinianos para definir um horizonte político para
uma coexistência pacífica e próspera."
Este ponto, que complementa o anterior, abre a via a uma
possível retoma do processo de paz israelo-palestiniano. Mas não põe em causa —
nem sequer menciona — a colonização e a ocupação israelita, principais
obstáculos a uma solução de paz assente em dois Estados.




Não sou fã da designação desta rubrica - Duelo - , mas trata-se de um espaço tradicional de opiniões contraditórias no Expresso. Na edição de hoje, na habitual página 2, opino quanto ao expediente de criar uma comissão para comemorar o 25 de novembro. Deixo aqui, para registo, o texto.
***
Entre o derrube da ditadura e a institucionalização da
democracia, a liberdade andou à procura dos seus caminhos e essa procura teve
percalços: 28 de setembro de 1974, 11 de março e 25 de novembro de 1975. Comemorar
o 25 de abril é comemorar o resultado: a democracia constitucional vivida em
paz. É sarar feridas entre democratas. Pelo contrário, insistir nos passos em
falso, nas divisões, é salgar as feridas por despudor político.
No 25 de novembro houve duas classes de perdedores. Os que
perderam, porque se achavam os donos da legitimidade revolucionária e queriam
sobrepor a legitimidade revolucionária à legitimidade democrática, aferida pelo
voto popular em eleições livres. Esses perderam, porque no 25 de novembro
prevaleceu a continuidade do processo de construção constitucional e foi
afastado o cenário de o rumo político do país poder ser imposto por correntes minoritárias
apoiadas em sectores militares. Também perderam, por outro lado, aqueles que
queriam aproveitar a oportunidade para mutilar o pluralismo político-partidário
e voltar a atirar para a clandestinidade uma parte da esquerda portuguesa: os
que quiseram ilegalizar o PCP (ou, talvez: começar por ilegalizar o PCP).
Os únicos que saíram vencedores do 25 de novembro foram
aqueles que permaneceram fiéis à ideia de que a democracia representativa é
para todos. Foi o caso do PS, sob a liderança de Mário Soares, entre os civis.
Foi o caso de Melo Antunes e os seus colegas do Grupo dos Nove, entre os
militares. Aí não temos, pois, lições a receber de ninguém.
O país não merece ficar pendente da guerrilha dos que tentam
relativizar a importância histórica singular do 25 de Abril. O 25 de novembro é
um momento do processo aberto a 25 de abril de 1974 e é nesse quadro que o
devemos lembrar e sobre ele refletir. Como, sobre isto, dizia o General Ramalho
Eanes há alguns anos: “Os momentos fraturantes não se comemoram, recordam-se
apenas para refletir sobre eles.”
Mário Soares entregou o bastão de marechal a Spínola e
apoiou a amnistia a Otelo, duas personagens envolvidas com promotores de atividades
terroristas. E explicou que, compreendendo a legítima discordância das vítimas,
“não podemos viver 20 anos a pensar sempre no passado; temos de olhar para a
frente e dar passos no sentido da reconciliação nacional”. Fechar feridas. Tudo
o contrário de criar comissões para confortar politicamente quem se sente
incomodado com o 25 de Abril e quer produzir, artificialmente, alternativas à
sua comemoração, para a diminuir.
Porfírio Silva
(Deputado do PS)


Intróito. Há momentos em que seria mais cómodo estar calado.
É nesses momentos que é preciso falar. Ir ao que dói. Alertar para os perigos.
Deixarmos de tratar com paninhos de lã o que ameaça o essencial. Por isso
escrevo hoje.
***
1. Quando, em 1969, as tropas do Pacto de Varsóvia, sob o comando da União Soviética, invadiram a Checoslováquia para impedir o “socialismo de rosto humano”, o processo de reformas democratizantes que tinha sido lançado pelo Partido Comunista daquele país, essa invasão abalou politicamente a esquerda, em especial os comunistas ocidentais. Por muitas razões políticas que separassem os observadores de esquerda daqueles acontecimentos, a rutura provocada foi uma rutura emocional: havia quem tolerasse a invasão de “um país socialista” por outro “país socialista” e engolisse as “explicações” ortodoxas – e havia quem não encontrasse maneira de tolerar tal ato de violência em nome do “socialismo real”. Foi um trauma para os comunistas ocidentais e mudou muita coisa na história desse movimento. Aconteceu aí um choque de emoções políticas que as razões não conseguiram conter.
O que interessa isto agora? Vejamos.
3. Quando, dentro de um partido, as emoções dividem, esse partido está em risco existencial. A própria viabilidade do coletivo estará em causa se, perante alguma opção séria, deixarmos o terreno das diferenças de opinião e passarmos ao terreno das diferenças de emoção. Quando uns olharem para uma situação real e a sentirem como humanamente insuportável, enquanto outros a consideram apenas um problema a resolver com as ferramentas da gestão legal, temos uma brecha perigosa perante nós. Sentirmo-nos violentados na nossa sensibilidade por qualquer coisa que outros consideram apenas um assunto a ser gerido pelas ferramentas legais que estejam mais à mão, já não é somente uma matéria de debate racional. Sem deixar também de ser isso, passou a ser um choque de emoções. Aí, estaremos noutro patamar. E o patamar das emoções democráticas é indispensável à democracia.
Um coletivo partidário afetado por um choque de emoções, que o divida, é um coletivo partidário em risco existencial. Lembro sempre (faço-o há alguns anos, dentro do meu partido e na praça pública) que os partidos também morrem. Os partidos podem morrer por variadas razões. Algumas dizem respeito apenas ao ecossistema: alguém passa a representar melhor os que eram representados por esse partido. Mas, as razões mais dolorosas para um partido morrer verificam-se quando a sua degenerescência vem de dentro. Quando as emoções de uns deixam de jogar com as emoções de outros.
Atentemos: a existência de um choque de emoções não significa que as razões estejam todas de um lado e o outro lado não tenha razão nenhuma. Raramente, num confronto, um lado tem todas as razões e o outro lado não tem razões nenhumas. Só que isso conta pouco como primeiro patamar de um choque de emoções. O choque de razões pode ser dirimido racionalmente. O choque de emoções pode ser impossível de sanar ou, pelo menos, custar muito suor e lágrimas – e muito tempo – para ser sanado. Podemos fazer marcha atrás num confronto de razões: amainar, arredondar, compor, articular, negociar. Não há, de imediato, nada que remedeie um choque de emoções.
Exemplo prático. Vemos crianças a dormir ao relento por efeito de uma ação de uma autoridade pública. As razões trocadas acerca da situação podem não estar exclusivamente, todas, em qualquer dos lados que se posicionam face à situação. Um debate racional acerca da situação podia ser viável. Só que é impossível juntar no mesmo barco os que se arrepiam por essa situação ter sido causada, os que veem essas crianças como o primordial problema do que está em causa, e os que encontram uma imensa lista de justificações para a ação que causou essa situação. O debate racional acerca da situação podia ser gerível; o choque de emoções básicas envolvidas não é gerível.
O choque de emoções básicas, tal como o tenho vindo a refletir aqui, tem todo o potencial para destruir por dentro uma agremiação política, um coletivo partidário. Este choque de emoções básicas nunca antes tinha acontecido no PS. Está a acontecer agora.
