10.9.25

O que é isso rearmar a Europa?

10:00


1. O território europeu conhece de novo a guerra: convencional, mas envolvendo potências com capacidades nucleares. Guerras próximas, como a do Médio Oriente, mostram a profundidade do duplo padrão (político e moral) da UE e seus Estados-membros. A oscilação dos EUA face à Europa exibe a traços fortes a relação assimétrica que existe entre esses parceiros de longa data e o guarda-chuva atlântico arrisca ser levado pelo vento. A questão da força nas relações internacionais emerge como urgência. A pergunta pelo rearmamento da Europa faz, pois, sentido – mas essa pergunta é cega se não for uma pergunta pelo nosso lugar no mundo.


2. A representação do mundo desejável a que mais frequentemente é exposto um cidadão de um país ocidental é a “ordem internacional liberal”.

A “ordem internacional liberal” consiste num conjunto de organizações internacionais (de perfil político, como a ONU, com ramificações importantes como a OMS, a OIT ou a FAO; económico-financeiro, como o FMI ou a OMC; jurisdicional, como o Tribunal Internacional de Justiça ou o Tribunal Penal Internacional) e num conjunto de tratados e convenções internacionais (como a Carta das Nações Unidas, a Convenção de Genebra sobre direito humanitário, o Tratado de Não Proliferação Nuclear, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e muitos outros). Este sistema foi sendo construído ao longo dos anos, com base no impulso original dos EUA após duas guerras basicamente europeias (mas chamadas mundiais) de que esse país emergiu com o estatuto de potência mundial aspirante à hegemonia global.

A esta “ordem” os EUA gostam agora de chamar “ordem internacional baseada em regras”, para a associar a uma narrativa de uma certa superioridade moral das democracias no plano das relações internacionais. Essa narrativa tem os seus problemas.

Um desses problemas é que a pretensão de superioridade moral resiste mal à tentativa de justificar porque é que (por exemplo) a China tem um problema com os direitos humanos (mas não interessava quando Nixon se aproximou do presidente Mao) e a Arábia Saudita serve perfeitamente como aliado. Porque é que o autoritarismo da Rússia é condenável e o da Turquia de Erdogan serve perfeitamente os critérios da NATO, tal como serviram as ditaduras espanhola, portuguesa e grega. Ou porque é que a Rússia deve ser condenada pela invasão da Ucrânia (e deve) e Israel merece compreensão enquanto comete genocídio na Palestina. Ou porque é que o Irão deve respeitar a não proliferação nuclear e Israel nem por isso. 

Outro problema é que a invocação da legalidade internacional se mostra demasiado moldável às oportunidades, como se exemplifica pela intervenção da NATO no Kosovo (1999) e pela invasão do Iraque (2003), qualquer delas sem qualquer cobertura no direito internacional. Ou pelo facto de nenhum dos cinco Estados mais populosos do mundo e nenhuma das “grandes” potências atuais fazer parte do Tribunal Penal Internacional, significando que a sua jurisdição não abrange os nacionais da China, Índia, EUA, Indonésia, Paquistão e Rússia, resultando em que praticamente só africanos são perseguidos por esse tribunal e as suas decisões são repetida e frequentemente desrespeitadas. 

Há ainda o problema de os EUA, a partir de um dado momento, terem desacreditado de que o livre-comércio servia os seus interesses (cf. a adesão da China à OMC) e desertado (com estrondo) das teses que andaram tanto tempo a promover. Se Montesquieu convenceu muitos de que “o efeito natural do comércio é conduzir à paz” [1], outros entendem hoje que os fatores de conectividade global (longas redes de abastecimento, finanças, migrações, Internet, pandemias, alterações climáticas) são, em si mesmos, razões e vetores de conflitualidade distribuída [2] . Não é de estranhar que novos atores globais, capazes de explorar novos vetores de competição proporcionados pelas novas conectividades, os usem para compensar vantagens tradicionais que favorecem potências mais antigas – como o benefício desproporcionado que o papel do dólar como reserva e moeda dominante nas transações comerciais internacionais, designadamente do petróleo, e nos mercados cambiais, confere aos EUA, que o transforma em arma pelo recurso às sanções financeiras como instrumento de política internacional (e foi explorando esse benefício que chegaram aos défices comerciais crónicos de que agora se queixam).
Nestes termos, a crença numa globalização benevolente constitui uma ingenuidade perigosa. Já que a globalização não é uma casa acolhedora, precisamos de amigos – pelo menos, de aliados – se não queremos, simplesmente, acatar a ordem imposta pelos mais poderosos. Pertencer, e ter uma palavra, numa região do mundo dotada de organização, é a possibilidade que nos resta de usarmos a nossa soberania em algo mais do que exercícios proclamatórios. A questão é a de saber em que lugar do mundo pertencemos. 


3. Concretizada, a questão é esta: “é um equívoco falar do Ocidente como se fosse uma entidade política unificada e com interesses inteiramente convergentes. (…) O que faz mover os norte-americanos é o seu interesse nacional e a manutenção da hegemonia global. Esses não são exatamente os interesses e as motivações dos europeus.” [3]

Exemplos rápidos, ao tempo desta avaliação: os EUA retiram do Afeganistão sem coordenação com os aliados, ignoram os interesses da UE com o acordo AUKUS para fornecer (com o Reino Unido) submarinos nucleares à Austrália, adotam uma lei de redução da inflação desfavorável a indústrias europeias… e podíamos acrescentar todas as demonstrações recentes do segundo mandato de Trump.

De qualquer modo, convém ter presente que esta situação não é episódica, nem recente. A Guerra Fria, que funcionou como uma neblina que só deixava ver os grandes vultos e disfarçava as nuances e as gradações, conduziu os aliados europeus dos EUA a uma certa insensibilidade ao facto de sermos apenas uma das peças do jogo global dos EUA. Mas isso foi sempre desse modo desde o fim da segunda guerra mundial. A NATO foi criada em 1949,  cobrindo a Europa e a América do Norte, mas os EUA envolveram-se em outras alianças de segurança com outros países em diferentes regiões do mundo: no Pacífico, a ANZUS (com a Austrália e a Nova Zelândia, 1951); no Sudeste Asiático, a SEATO – Southeast Asia Treaty Organization (com Austrália, França, Nova Zelândia, Paquistão, Filipinas, Tailândia e Grã-Bretanha, de 1954 a 1977); no Médio Oriente, com o Pacto de Bagdad, o CENTO – Central Treaty Organization (com Reino Unido, Turquia, Irão, Paquistão e Iraque, os EUA eram observadores, de 1955 a 1979); nas Américas, o TIAR – Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, também chamado "Tratado do Rio" (envolvendo muitos países das Américas, com dissidências ao longo do tempo, 1947). Além de uma série de tratados de segurança bilaterais, com o Japão (1951), com a Coreia do Sul (1953), com as Filipinas (1951), com a Tailândia (1962), e com Israel (vários, especialmente após 1973). Para além dos SOFA (Status of Forces Agreements), espalhados pelo mundo, que garantem presença militar, mesmo fora de grandes tratados.

Esta ocupação global do terreno da segurança pode ser lida a par da formulação sucessiva de uma série de doutrinas de política externa dos EUA, todas elas cumprindo o papel de afirmar o alcance planetário dos interesses vitais desse país, por via do qual se justificaria qualquer intervenção que viesse a ser decidida em qualquer ponto do globo, segundo a perceção que os EUA fizessem em cada momento da melhor forma de prosseguir os seus interesses.

A Doutrina Truman (de Harry S. Truman), 1947, anunciada no contexto das crises na Grécia (guerra civil, com uma possível vitória comunista, parte importante da resistência contra os alemães, sobre os partidários da monarquia) e na Turquia (soviéticos exigindo bases militares nos estreitos de Bósforo e Dardanelos, na rota estratégica entre o Mar Negro e o Mediterrâneo, e um ajuste de fronteiras no leste da Anatólia), justifica a ajuda económica e militar a países considerados alvos da expansão do comunismo, inaugurando a ideia da política de contenção.

A Doutrina Eisenhower (de Dwight D. Eisenhower), 1957, é formulada após a crise do Suez, num contexto que se pode resumir como segue. Depois de, em 1956, o Egipto de Nasser nacionalizar o canal do Suez, antes controlado por uma empresa anglo-francesa, e Israel atacar o Egipto, seguido por Reino Unido e França,  merecendo a condenação de EUA e URSS, que forçaram a retirada dos atacantes, torna-se claro que as potências ocidentais (França e Reino Unido) não estavam em condições de controlar o Médio Oriente, enquanto a URSS oferece apoio económico e militar ao Egipto e dispõe-se a apoiar outros países árabes, um caminho de mais influência na região. No início de 1957, Eisenhower apresentou ao Congresso a sua doutrina, que consistia em oferecer assistência económica e militar a qualquer país do Médio Oriente que a solicitasse com o objetivo de resistir a potências favoráveis ao comunismo, incluindo a possível implicação direta de forças militares americanas na região. A primeira intervenção no quadro desta doutrina ocorreu no Líbano, em 1958: tendo o Egipto e a Síria formado a República Árabe Unida (RAU), fortalecendo a influência de Nasser na região, parte da população muçulmana do Líbano reivindicava maior alinhamento com o bloco árabe, a que se opunha o presidente pró-ocidental Camille Chamoun, o qual, após confrontos armados entre fações, acusou a RAU de conspiração para o derrubar e pediu ajuda aos EUA, que enviaram cerca de 14 mil marines e paraquedistas para Beirute (retirados alguns meses depois, resolvida a crise com a eleição de um novo presidente menos envolvido no confronto entre fações). 

Embora sem uma proclamação formal, pode falar-se da Doutrina Johnson (de Lyndon B. Johnson), nos anos 1960, que, por outro lado, pode ser vista apenas como um desdobramento da Doutrina Truman para a América Latina. Na prática, está em causa o episódio de 1965 na República Dominicana: um presidente eleito democraticamente (em 1962) é deposto por um golpe militar (1963), provocando (em 1965) um movimento para repor o presidente legítimo, algo que os EUA consideravam perigoso, porque podia incorporar influências comunistas – desencadeando o envio de 20 mil soldados para impedir a reposição do presidente democraticamente eleito. No seu discurso transmitido pela televisão a 2 de maio de 1965, e depois de, anteriormente, ter justificado o envio de tropas para a República Dominicana com a informação de que as autoridades militares desse país se consideravam incapazes de proteger as vidas dos cidadãos norte-americanos aí residentes,  o presidente Lyndon B. Johnson avança uma justificação de outro nível político: citando uma frase do presidente John F. Kennedy, proferida “menos de uma semana antes de sua morte”, enuncia [4] : “Nós, neste hemisfério, devemos também usar todos os recursos ao nosso alcance para impedir o estabelecimento de outra Cuba neste hemisfério.” A ação foi legitimada posteriormente por uma força interamericana enviada pela OEA.

A Doutrina Nixon (Richard Nixon), 1969, enuncia a transição de uma política de contenção por intervenções militares diretas dos EUA para a procura de distribuição do esforço com aliados regionais em cada caso, permitindo, em tese, uma maior seletividade do intervencionismo (o envolvimento direto deixava de ser a regra). A aplicação imediata foi a vietnamização da guerra do Vietnam, que era impopular, cara e sem garantias de vitória, mas foi tendo outras aplicações noutras regiões (como a apoio militar massivo ao Irão de Reza Pahlavi e à Arábia Saudita como aliados no Golfo Pérsico ou o reforço do apoio à Coreia do Sul, Taiwan e outros aliados asiáticos).

A Doutrina Reagan (anos 1980), quando, após um período de reveses dos EUA e avanços da URSS em conflitos externos, a influência da União Soviética está ameaçada pela estagnação económica, os EUA vão pressionar: de política de contenção à política de reversão (derrubar governos amigos dos soviéticos), intervindo em vários países (como Afeganistão, Angola, Nicarágua, Camboja) com base numa retórica forte (“Império do Mal”) e recurso a todo o tipo de meios, legais e ilegais. Sob esta doutrina, os EUA conseguiram aumentar a pressão militar, económica e política sobre a URSS, agravando os grandes problemas internos, a todos os níveis, que essa potência enfrentava, em parte devido ao imobilismo induzido pela própria natureza burocrática e repressiva do regime. A que preço? Ações que violaram a soberania de outros países. Apoio a grupos implicados em violações de direitos humanos. Escândalos como o Irã-Contras, quando servidores do governo norte-americano venderam armas secretamente ao Irão e desviaram os recursos assim obtidos para financiar ilegalmente os Contras. Tudo em nome do “Ocidente”. 


4. Deveria, hoje, ser claro que a Europa nunca teve, para os EUA, a centralidade em que os europeus quiseram acreditar. A centralidade da Europa no interesse global americano era contingente às circunstâncias estratégicas globais (designadamente, a proximidade ao território da URSS) e, adicionalmente, à facilidade de lidar com parceiros com regimes políticos comparáveis (mas sem recusar incluir ditaduras entre os aliados).

O ponto do equívoco de “falar do Ocidente como se fosse uma entidade política unificada e com interesses inteiramente convergentes” não está apenas no tabuleiro dos interesses de segurança. Há uma visão do mundo, como civilização global, onde as marcas diferenciadoras são nítidas e relevantes.

Podemos observar um aspeto importante dessa questão comparando os posicionamentos da UE e dos EUA no que toca a um conjunto de tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos [5] . Vejamos:
- Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, 1966. Os EUA nunca ratificaram. Todos os EM da UE ratificaram.
- Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,1979. Os EUA nunca ratificaram. Todos os EM da UE ratificaram.
- Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989. Todos os EM da UE ratificaram. Os EUA são o único país do mundo que não ratificou esta convenção. 
- Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2006. Todos EM da UE ratificaram. Os EUA não ratificaram.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos reporta a adesão dos países a 18 tratados internacionais de direitos humanos. Distingue quatro grupos de países, quanto ao número desses instrumentos que cada um ratificou. Dos 27 membros da UE, 19 estão no grupo de topo (são parte de 15 a 18 instrumentos), os outros 8 estão lá perto (nenhum EM da UE ratificou menos de 13 desses instrumentos). Os EUA ratificaram 5. 

Observemos ainda este aspeto da ordem mundial, de outro ângulo: convenções internacionais sobre meio ambiente e sustentabilidade, uma dimensão vital para o futuro da humanidade [6] :
- Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, 1982. Só o Egito, o Sudão e os EUA nunca ratificaram. Todos os EM da UE são partes. 
- Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica, 1992. Com a exceção dos EUA, todos os Estados‑Membros da ONU são partes.
- Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes, 2001. As suas disposições foram integralmente assumidas no direito da UE, por Regulamento, em 2004, com atualizações posteriores. Os EUA não ratificaram.
- Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e o seu Depósito,1989. A UE (então, CEE), enquanto tal, aprovou a convenção em 1993 e todos os EM são partes. Os EUA não ratificaram.

Neste âmbito, vejamos o que se passa quanto ao processo que enquadra a dinâmica mais visível no momento, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, de 1992, que foi o primeiro tratado global a lidar explicitamente com a mudança climática e deu origem a vários acordos climáticos subsequentes, como o Protocolo de Quito, de 1997 (primeiro tratado climático juridicamente vinculativo, incluía compromissos de redução de emissões para os países desenvolvidos, mas não para grandes emissores como a China ou a Índia) e o Acordo de Paris, de 2015 (prevê que todos os países definam as suas metas de redução de emissões, com o objetivo de impedir a temperatura média global de ultrapassar certos limites e de alcançar a neutralidade carbónica na segunda metade do século).

Os EUA ratificaram o instrumento de 1992, não ratificaram o Protocolo de Quioto e têm andado dentro e fora do Acordo de Paris. Quer dizer: os EUA aderiram ao Acordo de Paris por procedimento executivo (ato apenas do Presidente, sem passar pelo Senado), com Obama (em 2016); Trump revogou a decisão (anunciou a decisão de retirada em 2017 e a retirada tornou-se efetiva em 2020), Biden voltou a aderir (em 2021 assinou a ordem executiva para voltar a integrar o Acordo e a reintegração tornou-se efetiva em pouco tempo) e Trump (2025) voltou a iniciar o processo de retirada (que se tornará efetiva em 2026). A UE, os Estados-Membros, ratificaram Quioto e Paris, cumprem os acordos em bloco e de forma coordenada, participam nas conferências de partes como dinamizadores de mais ambição, contrastando com o frequente papel de travão dos EUA.

O presidente da comissão de defesa do parlamento dinamarquês já opinou publicamente que comprar sistemas de armas aos EUA é um risco de segurança [7] . E outros responsáveis de países da NATO deram sinais no mesmo sentido [8]. O “Ocidente” é um cobertor demasiado largo para cobrir as diferenças de segurança, mas também as diferenças de perceção do mundo (como vimos com os tratados sobre direitos humanos e sobre ambiente) entre os EUA e a UE. 


5. A questão das armas, quer elas cheguem a ser usadas ou não, não é irrelevante. Uma fonte [9] estima: para defender a Europa (face à Rússia) sem os EUA precisamos de mais 300 mil soldados (apenas guerra terrestre). E alerta: um cenário de acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia seria muito desafiador para a Europa, porque a Rússia acumularia a sua produção que agora gasta com a Ucrânia. Há qualquer coisa de trágico neste raciocínio, onde um acordo de paz surge como ameaçador.

Contudo, a máquina não tem estado parada. De acordo com o SIPRI [10], a despesa militar mundial atingiu 2 718 mil milhões de dólares em 2024, um aumento de 9,4 % em termos reais face a 2023, o décimo ano consecutivo de subidas e a subida anual mais acentuada desde, pelo menos, o final da Guerra Fria. Os gastos militares aumentaram em todas as regiões do mundo (em mais de 100 países), com um crescimento particularmente rápido quer na Europa quer no Médio Oriente.

Na UE [11] , as despesas totais dos Estados-Membros com a defesa aumentaram mais de 30% entre 2021 e 2024. De 2023 para 2024, os investimentos no domínio da defesa aumentaram 17 %, alcançando um máximo histórico de 72 mil milhões de euros, e o volume de negócios gerado pela indústria europeia de defesa aumentou 16,9%.

Debater a segurança na Europa focando principalmente a questão dos níveis de despesa militar dos Estados (que terá efeitos não negligenciáveis no financiamento de outros sectores económicos e sociais) esconde muitos outros obstáculos reais. Fragmentação: por exemplo, os países da UE operam 12 tipos de grandes carros de combate, enquanto os Estados Unidos têm apenas um. Proteção das indústrias nacionais: os EM com indústrias de defesa fazem o possível para que as encomendas fiquem no seu território, os números da produção são baixos e isso ajuda a manter altos os custos unitários (e um aumento de procura neste ambiente de competição limitada aumentaria ainda mais os preços e as rendas das empresas). Atraso tecnológico: tecnologias decisivas não estão ao alcance da produção europeia ou estão muito atrasadas em relação aos EUA (aviões de combate mais avançados, certos sistemas de defesa aérea, comunicações por satélite, informações, recurso a IA e a sistemas de robôs autónomos).

Um estudo [12] sublinha as lacunas da Europa no que toca a capacidades estratégicas requeridas pelas formas de guerra contemporânea, tecnologicamente avançadas, complexas, exigindo investimento elevado e planeamento, e que, em alguns casos, são necessariamente transnacionais, tais como capacidades conjuntas de comando e controlo, redes de inteligência e comunicações baseadas em satélites, sistemas de armas para uso integrado por vários países como defesa aérea estratégica, transporte aéreo em larga escala e logística marítima, mísseis e dissuasão nuclear.

Não será fácil, sequer, falando no contexto da EU, encontrar, sem colisão com as regras atuais dos tratados, os métodos e os montantes de financiamento necessários para produzir grandes sistemas partilhados. E, neste contexto, é evidente que a Europa é mais do que a UE. Sem complicar muito, considere-se o interesse da cooperação com o Reino Unido, a Suíça ou a Noruega – o que tem suscitado propostas para a criação de novas instituições, incluindo ressuscitar a Comunidade Europeia de Defesa, de 1952, que nunca funcionou porque dois fundadores da CEE (França e Itália) não ratificaram o respetivo tratado [13] .

De qualquer modo, mesmo dentro do atual quadro institucional, os esforços de integração produzirão, possivelmente, novos perdedores. Por exemplo, novos sistemas de armas podem não gozar de interoperabilidade com alguns dos sistemas existentes, que se tornariam obsoletos, o que provavelmente afetaria de forma assimétrica diferentes países. Ora, é difícil partilhar um “interesse comum” se ele chocar assimetricamente com interesses das partes.

Se quisermos enunciar brevemente os riscos que as democracias correm em consequência desta situação, num clima de nova guerra fria e onde frequentemente se desvaloriza a via negocial como forma de resolver conflitos, devemos considerar o perigo de reduzir os fatores de segurança às questões de defesa. Num relatório [14], encomendado para estudar como melhorar a preparação e prontidão civil e militar da UE, a curto, médio e longo prazo, o antigo presidente da Finlândia, Sauli Niinistö, identifica um conjunto de desafios que a região enfrenta, nomeadamente: a erosão das instituições globais, ameaçando a efetividade da cooperação multilateral; as alterações climáticas e os fenómenos meteorológicos extremos; a instabilidade geopolítica, destacando a ameaça russa; as ameaças híbridas (ciberataques, manipulação de informação, interferências estrangeiras com recurso a tecnologias de informação e comunicação); a competição estratégica crescente por matérias-primas críticas e por tecnologias disruptivas; os fluxos migratórios e o controlo de fronteiras; os riscos de novas pandemias, designadamente decorrentes de inovação biotecnológica para desenvolver patogénicos sintéticos. Para falar sensatamente de segurança, na situação atual da Europa e dos europeus, este leque de preocupações não pode ser encurtado.

A desconsideração do carácter multifacetado da segurança, desligando as questões da defesa de outras questões fulcrais para as pessoas e para a humanidade, pode originar novos e desafiantes conflitos democráticos. Exemplifiquemos.

O discurso de Donald Tusk ao Parlamento Europeu, para apresentar as prioridades da presidência polaca no primeiro semestre de 2025, destaca o apelo a uma Europa armada capaz de se defender, o que não espanta, mas inclui também um forte ataque ao Pacto Ecológico, a estratégia europeia para alcançar a neutralidade carbónica até 2050. Assim, num quadro marcado pela retirada dos EUA do Acordo de Paris, por ação de Trump, Tusk dá voz aos sectores da direita europeia que tentam desmantelar a regulamentação ambiental introduzida nos últimos anos, culpando-a pela falta de competitividade da região e pelos preços da energia (cuja subida foi impulsionada pelas consequências da invasão da Ucrânia). Qualificando o Pacto Ecológico na caixa das “ideias ingénuas” e das “doutrinas rígidas e ideologias”, Tusk, falando em nome da presidência de turno, esquece o peso da dependência dos combustíveis fósseis importados, bem como a lenta adoção de sistema de energias renováveis em muitas regiões europeias [15]. Opor segurança e sustentabilidade ambiental é caminho seguro para um conflito democrático.

Outro exemplo: um estudo já aqui citado [16], falando de “regulamentos nacionais e europeus que dificultam o aumento das capacidades de produção de defesa”, dá como exemplo que “as regras nacionais podem dar aos eleitores locais poder de veto sobre a expansão das unidades de produção” e ilustra com a notícia da empresa de armamento Diehl que demorou um ano de negociações a conseguir das autoridades da cidade alemã de Troisdorf o acordo que lhe permitiu expandir a produção local de munições. Os poderes locais democráticos e os direitos de participação dos cidadãos podem ser encarados como um entrave ao esforço de defesa?

O mesmo estudo aponta conflitos com outras políticas públicas. Insiste na questão ambiental: as regras ambientais podem tornar mais dispendiosos materiais críticos, como o “aço verde” (aço produzido com métodos e tecnologias amigas do ambiente). E passa à Inteligência Artificial: as regras da UE sobre IA podem, lê-se, prejudicar o desenvolvimento de sistemas de armas, por exemplo relacionados com inteligência e com sistemas de comunicações imunes à guerra eletrónica. A sugestão, implícita, é que essas regras não deveriam manter-se, por serem obstáculos ao esforço de defesa. Esta visão desalinha e prejudica as tentativas de posicionar a UE como a única região do mundo que pretende liderar em normas globais para a IA que não sacrifiquem a ética, a transparência, a responsabilidade e os direitos humanos à promessa de rapidez do avanço tecnológico [17]. Numa matéria de grande impacto civilizacional, é preocupante que os opositores de sempre a uma IA responsável como tarefa da UE usem, agora, a questão da defesa para tentar reverter o caminho (lento, incipiente) que se tem feito nesta região do mundo como em nenhuma outra.


6. Quando os EUA se viram mais claramente para a região Ásia-Pacífico, a Europa sente que lhe viram as costas. Se, como europeus, acreditamos que vale a pena lutar pelo nosso modelo de sociedade e pela nossa ideia de relações internacionais – mesmo que nada disso seja perfeito e avaliemos apenas em termos diferenciais –, é tempo de perguntarmos pelo nosso lugar no mundo. Para que valha a pena procurar e encontrar uma resposta a essa questão, importar reforçar os fatores de autonomia desta região. Para isso, a Europa, e a União Europeia, precisa de encontrar o rumo político que nos permita sair da falsa narrativa moral da “ordem internacional liberal”, abandonar o vergonhoso duplo padrão em relações internacionais, investir em reverter a desagregação das organizações internacionais multilaterais e trabalhar para que a via negocial se torne o caminho real para resolver situações de conflito, sob o princípio de que só há verdadeira segurança na vigência de um sistema de segurança comum acreditado por todas as partes.

Para podermos escolher o nosso lugar no mundo, não devemos cair na ilusão liberal da ordem espontânea (de que a crença em que o comércio traz a paz é apenas uma instância). Também na ordem internacional, o poder conta. E a força é também fator de poder. E, se a força não é redutível ao poderio militar, passa também por aí. Desde que o poderio militar continue a ser, exatamente, um instrumento. Desejavelmente, instrumento de um caminho justo. O que, claro, não está garantido. Por isso permanece como tarefa política a exigir compromisso.



NOTAS

[1]  Cf. Montesquieu, De l’Esprit des Lois, 1748, Livro XX, primeira frase do capítulo 2 (disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9737646k)

[2] Cf. José Pedro Teixeira Fernandes, O Fim da Paz Perpétua, Lisboa, Zigurate, pp.92ss

[3] Idem, ibidem, pp. 69-70







[9] Alexandr Burilkov e Guntram Wolf, “Defending Europe Without the US: First  Estimates of What is Needed”, Kiel Policy Brief 183, Kiel Institute for the World Economy, fevereiro 2025, pp.4-5

[10] Stockholm International Peace Research Institute, “Trends in World Military Expenditure, 2024”,  SIPRI Fact Sheet, abril 2025, https://doi.org/10.55163/AVEC8366

[11] A política de defesa da UE em números, https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/defence-numbers

[12] Wolff, G., A. Steinbach and J. Zettelmeyer (2025) ‘The governance and funding of European rearmament’,  Policy Brief 15/2025, Bruegel, abril 2025

[13] Federico Fabbrini, Sylvie Goulard et al (2025), “Getting Serious about Defense Integration: the European Defence Community Precedent”, Dublin European Law Institute, Dublin, 2025

[14] Sauli Niinistö, “Safer Together. Strengthening Europe’s Civilian and Military Preparedness and Readiness”, (Report to the President of the European Commission), 2024


[16] Bruegel Policy Brief 15/2025

[17] Cf. Porfírio Silva, “Entre a Democracia e a Oligarquia”, in Finisterra, 96 (maio 2025), pp.51-64




Azenhas do Mar, 13 de agosto de 2025
Porfírio Silva


* * *


Porfírio Silva, 10 de setembro de 2025
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6.9.25

Mini-podcast 6 - Uma comissão para o 25 de novembro?

10:00




Regresso do mini-podcast Machina Speculatrix após a pausa estival. 

O mini-podcast do blogue Machina Speculatrix tem uma linha geral simples: textos publicados são objeto de curtas conversas que exploram o seu conteúdo.

O número 6 debruça-se sobre o texto de opinião da autoria de Porfírio Silva, publicado na rubrica “Duelo” do Expresso de 5 de setembro de 2025, em resposta à questão: "É preciso uma comissão para os 50 anos do 25 de novembro?".

Desta vez, uma variante: um texto meu é discutido com uma voz favorável e uma voz desfavorável aos meus argumentos. 





Porfírio Silva, 6 de setembro de 2025
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5.9.25

É preciso uma comissão para os 50 anos do 25 de novembro?

11:23

Não sou fã da designação desta rubrica - Duelo - , mas trata-se de um espaço tradicional de opiniões contraditórias no Expresso. Na edição de hoje, na habitual página 2, opino quanto ao expediente de criar uma comissão para comemorar o 25 de novembro. Deixo aqui, para registo, o texto.


***


Entre o derrube da ditadura e a institucionalização da democracia, a liberdade andou à procura dos seus caminhos e essa procura teve percalços: 28 de setembro de 1974, 11 de março e 25 de novembro de 1975. Comemorar o 25 de abril é comemorar o resultado: a democracia constitucional vivida em paz. É sarar feridas entre democratas. Pelo contrário, insistir nos passos em falso, nas divisões, é salgar as feridas por despudor político.


No 25 de novembro houve duas classes de perdedores. Os que perderam, porque se achavam os donos da legitimidade revolucionária e queriam sobrepor a legitimidade revolucionária à legitimidade democrática, aferida pelo voto popular em eleições livres. Esses perderam, porque no 25 de novembro prevaleceu a continuidade do processo de construção constitucional e foi afastado o cenário de o rumo político do país poder ser imposto por correntes minoritárias apoiadas em sectores militares. Também perderam, por outro lado, aqueles que queriam aproveitar a oportunidade para mutilar o pluralismo político-partidário e voltar a atirar para a clandestinidade uma parte da esquerda portuguesa: os que quiseram ilegalizar o PCP (ou, talvez: começar por ilegalizar o PCP).


Os únicos que saíram vencedores do 25 de novembro foram aqueles que permaneceram fiéis à ideia de que a democracia representativa é para todos. Foi o caso do PS, sob a liderança de Mário Soares, entre os civis. Foi o caso de Melo Antunes e os seus colegas do Grupo dos Nove, entre os militares. Aí não temos, pois, lições a receber de ninguém.


O país não merece ficar pendente da guerrilha dos que tentam relativizar a importância histórica singular do 25 de Abril. O 25 de novembro é um momento do processo aberto a 25 de abril de 1974 e é nesse quadro que o devemos lembrar e sobre ele refletir. Como, sobre isto, dizia o General Ramalho Eanes há alguns anos: “Os momentos fraturantes não se comemoram, recordam-se apenas para refletir sobre eles.”


Mário Soares entregou o bastão de marechal a Spínola e apoiou a amnistia a Otelo, duas personagens envolvidas com promotores de atividades terroristas. E explicou que, compreendendo a legítima discordância das vítimas, “não podemos viver 20 anos a pensar sempre no passado; temos de olhar para a frente e dar passos no sentido da reconciliação nacional”. Fechar feridas. Tudo o contrário de criar comissões para confortar politicamente quem se sente incomodado com o 25 de Abril e quer produzir, artificialmente, alternativas à sua comemoração, para a diminuir.


Porfírio Silva

(Deputado do PS)



Porfírio Silva, 5 de setembro de 2025
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20.7.25

Imigração: assumir esta reforma estrutural

13:01


Em política não podemos andar sempre à defesa. O que fazemos de positivo tem muitas vezes a oposição dos que se limitam a andar à boleia das perceções, mesmo que as perceções sejam fruto da manipulação dos demagogos. Este texto é sobre Portugal e a imigração. E a atitude afirmativa que o PS deve prosseguir.

José António Vieira da Silva, várias vezes ministro em áreas sociais e dirigente nacional do PS, deu (19/07) uma entrevista ao Negócios e à Antena 1 (programa Conversa Capital), onde faz afirmações que merecem cuidada atenção. Destacarei, aqui, um dos aspetos cruciais do seu pronunciamento.

José António Vieira da Silva vê, quanto ao crescimento da imigração em Portugal, dois caminhos: diabolizar os problemas ou encarar o fenómeno como uma oportunidade.

A referência à diabolização dos problemas que podem resultar do crescimento (acentuado) da imigração é, apenas, ser realista. É evidente que, se andamos há décadas a falar da “crise do Estado-Providência”, e, mesmo assim, ainda dele não desistimos, é porque temos consciência das suas dificuldades e sabemos que elas residem em dinâmicas profundas que tornam mais fáceis (no imediatismo) as receitas do capitalismo selvagem do que as receitas da coesão social.

Se temos dificuldades nos serviços públicos essenciais, como a saúde e a educação, e temos uma enorme crise na habitação, está bem de ver que um influxo rápido e substantivo de residentes no território nacional constitui um desafio de grandeza significativa, desafio ao qual temos de responder e que não tem resposta fácil. Nem sempre fomos capazes de ver a tempo o significado desse aumento populacional, nem sempre fomos suficientemente rápidos a responder – e confiámos demais no “espírito acolhedor” dos portugueses.

Quando escrevo “nem sempre fomos capazes…”, o sujeito é Portugal, no seu conjunto – mas não exclui o PS e os seus governos. É que nem sempre há respostas ótimas e céleres para grandes problemas – e só os demagogos esquecem isso. Lembram-se da pandemia, lembram-se do choque de inflação causado pela guerra na Ucrânia – dois fenómenos brutais que a antiga presidente do PSD, Manuela Ferreira Leite, afirmou terem sido “bênçãos caídas do céu para os governos do PS”? Tamanha crueldade não é só fruto de corações secos; é pura falta de noção da responsabilidade cívica e política. De qualquer modo, apesar desses irresponsáveis, que só pensam em explorar eleitoralmente as dificuldades do país para mero proveito próprio imediato, é verdade que um aumento significativo da população residente traz novas questões a resolver e exige novas respostas.

Esse é o ponto: há problemas e precisamos ser mais eficientes a resolvê-los. É isso que devemos fazer. Outros escolhem “diabolizar” os problemas – e, mesmo, diabolizar as pessoas que trabalham entre nós e por nós. A escolha da extrema-direita sempre foi diabolizar. Problemas e pessoas. No Portugal de hoje, a escolha de um partido central do regime democrático, que ainda se designa “social-democrata”, é, agora, fazer o mesmo caminho da extrema-direita. O sucesso que a extrema-direita alcança ao enredar o PSD nessa armadilha estimula-a, aliás, a tentar estender a sua rede a outros sectores. E por aí avançam os que optam pela diabolização. Funciona na refrega mediática, pelo menos no imediato. Pode, até, dar uns votos. Mas não resolve problema nenhum e é irresponsável face ao real interesse nacional.

É aí que entra o outro ramo da alternativa: encarar a imigração como oportunidade. José António Vieira da Silva diz o mais visível quando se refere aos bloqueios no mercado de trabalho, e aos danos em setores de atividade como a agricultura, como consequências das restrições à imigração que a AD introduz com a muleta do CH. Mas poderíamos citar, também, embora a mais longo prazo, a demografia: não estamos a ter filhos na quantidade que o país precisa para continuar a ter a população necessária para se desenvolver social e economicamente – e a imigração é um extraordinário contributo para reverter essa situação.

Vieira da Silva diz isto de forma muito poderosa quando, lembrando aos esquecidos que entre 2014 e 2024 o número de trabalhadores dependentes a descontar para a Segurança Social cresceu mais um milhão de pessoas, em parte graças à imigração, afirma que, com o seu contributo para o emprego e para o crescimento económico, esta é "a segunda maior mudança estrutural", a seguir ao aumento das qualificações. A direita já teve o seu tempo de desprezar a importância do aumento das qualificações (quando dizia que havia doutores a mais e que isso não acrescentava nada de decisivo à economia); agora, está no tempo de desprezar a possibilidade da viragem estrutural que nos pode retirar da decadência demográfica.

O ponto é este: a questão da imigração é uma questão de humanidade, mas não é só. Alguns terão dificuldade em entender o alcance do artigo primeiro da Constituição da República Portuguesa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Mas, mesmo os que têm dificuldade em acompanhar o significado dessa definição de Portugal, poderiam, pensando um pouco mais em tempos longos e um pouco menos em interesses eleitorais imediatos, compreender que o progresso da comunidade nacional precisa dos imigrantes.

Em vez de andarmos em guerrilhas defensivas a tentar paliativos para a popularidade do discurso racista e xenófobo da extrema-direita, devíamos assumir, com frontalidade, que Portugal precisa dos imigrantes, precisa de muitos imigrantes, precisa dos trabalhadores imigrantes para que a economia não estiole. Portugal precisa dos homens e das mulheres que trabalham nos nossos campos, nos nossos serviços, nas nossas casas. Portugal precisa dos homens e das mulheres jovens que nos procuram para melhorar o seu futuro – e que também melhoram o nosso presente e o nosso futuro. Portugal precisa dos filhos dos imigrantes para vencermos o desafio demográfico. Portugal enriquece culturalmente com essa gente com tantas línguas diferentes, com tantas gastronomias diferentes, com tantas músicas diferentes. Portugal não pode ser um vulgar imitador de Trump, violentando aqueles que, connosco, podem fazer uma terra melhor para todos – como tantos portugueses fizemos em outros países, no passado.

Dará trabalho concretizar as políticas para que isto seja uma realidade. Nem todas as respostas são evidentes e podemos não acertar sempre à primeira com a melhor maneira de fazer as coisas. Mas vamos fazer o que seja preciso fazer para que a imigração concretize as suas potencialidades para dar um novo alento ao progresso social e económico de Portugal.

Vamos afastar-nos do caminho dos que escolheram diabolizar. Vamos trilhar o caminho desta grande reforma estrutural, social, económica, demográfica e cultural. Portugal precisa dos imigrantes. Quem diaboliza os imigrantes e os problemas que estão por resolver no seu acolhimento, esses é que fazem mal a Portugal. Vamos continuar a trabalhar para concretizar esta reforma estrutural, em vez de acompanhar os que só pensam na sobrevivência política imediata e esquecem os interesses reais de Portugal e dos portugueses.

E mais: cá estaremos para pedir responsabilidades pela violência na sociedade que resulte do discurso de ódio promovido pela extrema-direita e protegido por quem lhes devia fazer frente. 



Porfírio Silva, 20 de julho de 2025
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18.7.25

Um risco existencial ameaça o PS

17:03


Intróito. Há momentos em que seria mais cómodo estar calado. É nesses momentos que é preciso falar. Ir ao que dói. Alertar para os perigos. Deixarmos de tratar com paninhos de lã o que ameaça o essencial. Por isso escrevo hoje.

 

***


1. Quando, em 1969, as tropas do Pacto de Varsóvia, sob o comando da União Soviética, invadiram a Checoslováquia para impedir o “socialismo de rosto humano”, o processo de reformas democratizantes que tinha sido lançado pelo Partido Comunista daquele país, essa invasão abalou politicamente a esquerda, em especial os comunistas ocidentais. Por muitas razões políticas que separassem os observadores de esquerda daqueles acontecimentos, a rutura provocada foi uma rutura emocional: havia quem tolerasse a invasão de “um país socialista” por outro “país socialista” e engolisse as “explicações” ortodoxas – e havia quem não encontrasse maneira de tolerar tal ato de violência em nome do “socialismo real”. Foi um trauma para os comunistas ocidentais e mudou muita coisa na história desse movimento. Aconteceu aí um choque de emoções políticas que as razões não conseguiram conter.

O que interessa isto agora? Vejamos. 



2. Em parte, os partidos políticos são tribos.

Quer dizer: a política não é só (e às vezes não é fundamentalmente) uma questão de argumento e uma questão de razão. Muitas pessoas não serão capazes de explicar detalhadamente porque são de direita ou porque são de esquerda. Mas são, afirmam-se, identificam-se como de esquerda ou de direita. Sentem-se de direita ou de esquerda. (Sim, “sentem-se”, para escândalo dos hiper-racionalistas.) 

Isto não ignora que ser apoiante da democracia como sistema político incorpora um sólido fundamento na razão, na adesão raciocinada. A adesão a uma democracia constitucional está escorada num longo percurso de construção racional, de procura, de dissecação de alternativas. Tudo isso existe. Mas nada disso vive sem o cimento, sem a base das emoções democráticas. As pessoas não são de direita ou de esquerda por causa de terem absorvido cursos de filosofia política. As pessoas são de direita ou de esquerda porque têm certas emoções, certas paixões. Essas emoções podem ter sido formadas por hábito familiar, por educação, por impacto de um acontecimento da vida que criou uma certa dor ou uma certa raiva ou uma certa atenção especial a determinados fenómenos, por admiração (ou por detestação) da ação de certa pessoa ou certo grupo, … Por isto ou por aquilo, há no mundo coisas que a certas pessoas repugnam, outras coisas que as entristecem, causas que as entusiasmam, situações que as mobilizam e outras situações que as deixam impassíveis. Havendo sobreposições (o mundo não é a preto e branco), as pessoas de esquerda e as pessoas de direita sentem certos fenómenos no mundo de modo diferente.
 
Tanto as pessoas de direita como as pessoas de esquerda têm, às vezes, a convicção de que são puramente racionais e se determinam apenas pelos argumentos. Mas isso não existe. Partidos profundamente democráticos e plurais (como é o PS) resistem bem a diferenças de opinião sobre políticas públicas. No PS sempre houve 7 opiniões diferentes sobre qualquer assunto em que sejamos chamados a decidir. Isso, no PS, nunca foi verdadeiramente crítico. Já tivemos várias eleições presidenciais em que se apresentava mais do que um candidato socialista ou apoiado por socialistas. Isso não matou o PS. Já tivemos o grupo parlamentar profundamente divido sobre questões essenciais da revisão constitucional. E isso foi absorvido. Já tivemos dirigentes destacados que saíram, formaram outros partidos, concorreram a eleições contra o PS, e depois voltaram. Isso não matou o PS. Já tivemos momentos de enorme tensão interna, acusações de falta de democracia e de falta de lealdade, e alguns desses momentos tiveram de ser resolvidos com acordos escritos entre maioria e minoria. E tudo sarou. Há argumentos para tudo, bendita seja a liberdade! Hoje as opiniões agrupam-se de um certo modo, para a semana agrupar-se-ão de modo diferente. Não costuma haver fações, correntes organizadas, embora já tenham existido sótãos. Mas até isso foi digerido. Não é por argumentações intensas que um partido tão plural como o PS se perde. Pelo contrário: reforça-se. 

(É verdade que alguns só gostam dessa liberdade quando é para serem os próprios a dela fazer uso, ficando muito incomodados quando estão em maioria e detestam que os que discordam digam qualquer coisa. Mas isso são apenas destroços de um grande navio de pluralismo.)

Em partidos monolíticos, onde todos têm de fazer de conta que concordam com tudo e a divergência é percepcionada como uma fraqueza, a diferença de opinião prejudica. Pelo contrário, a diferença de opinião não mata partidos democráticos. Plano muito diferente: a diferença de emoções pode matar qualquer agremiação política.


3. Quando, dentro de um partido, as emoções dividem, esse partido está em risco existencial. A própria viabilidade do coletivo estará em causa se, perante alguma opção séria, deixarmos o terreno das diferenças de opinião e passarmos ao terreno das diferenças de emoção. Quando uns olharem para uma situação real e a sentirem como humanamente insuportável, enquanto outros a consideram apenas um problema a resolver com as ferramentas da gestão legal, temos uma brecha perigosa perante nós. Sentirmo-nos violentados na nossa sensibilidade por qualquer coisa que outros consideram apenas um assunto a ser gerido pelas ferramentas legais que estejam mais à mão, já não é somente uma matéria de debate racional. Sem deixar também de ser isso, passou a ser um choque de emoções. Aí, estaremos noutro patamar. E o patamar das emoções democráticas é indispensável à democracia. 


Um coletivo partidário afetado por um choque de emoções, que o divida, é um coletivo partidário em risco existencial. Lembro sempre (faço-o há alguns anos, dentro do meu partido e na praça pública) que os partidos também morrem. Os partidos podem morrer por variadas razões. Algumas dizem respeito apenas ao ecossistema: alguém passa a representar melhor os que eram representados por esse partido. Mas, as razões mais dolorosas para um partido morrer verificam-se quando a sua degenerescência vem de dentro. Quando as emoções de uns deixam de jogar com as emoções de outros. 


Atentemos: a existência de um choque de emoções não significa que as razões estejam todas de um lado e o outro lado não tenha razão nenhuma. Raramente, num confronto, um lado tem todas as razões e o outro lado não tem razões nenhumas. Só que isso conta pouco como primeiro patamar de um choque de emoções. O choque de razões pode ser dirimido racionalmente. O choque de emoções pode ser impossível de sanar ou, pelo menos, custar muito suor e lágrimas – e muito tempo – para ser sanado. Podemos fazer marcha atrás num confronto de razões: amainar, arredondar, compor, articular, negociar. Não há, de imediato, nada que remedeie um choque de emoções.


Exemplo prático. Vemos crianças a dormir ao relento por efeito de uma ação de uma autoridade pública. As razões trocadas acerca da situação podem não estar exclusivamente, todas, em qualquer dos lados que se posicionam face à situação. Um debate racional acerca da situação podia ser viável. Só que é impossível juntar no mesmo barco os que se arrepiam por essa situação ter sido causada, os que veem essas crianças como o primordial problema do que está em causa, e os que encontram uma imensa lista de justificações para a ação que causou essa situação. O debate racional acerca da situação podia ser gerível; o choque de emoções básicas envolvidas não é gerível.


O choque de emoções básicas, tal como o tenho vindo a refletir aqui, tem todo o potencial para destruir por dentro uma agremiação política, um coletivo partidário. Este choque de emoções básicas nunca antes tinha acontecido no PS. Está a acontecer agora.



4. O processo da destruição por dentro pode ser travado? Pode. Mas essa travagem só é viável se compreendermos que esse risco existe e assumirmos a tarefa de o travar. Contudo, essa cura necessária nunca chegará a acontecer se prevalecer a lógica das tropas de choque.

As tropas de choque são os ativistas organizados de uma posição que querem que, em lugar do debate, haja combate. Num debate, usamos argumentos e deixamos que se sedimente uma conclusão, a qual, provavelmente, será uma mistura das diferentes posições de partida. Num combate, há sempre um lado (pelo menos um lado) que quer a destruição do outro. Na prática, dentro de um partido aberto, normalmente esperamos ter tranquilidade de espírito para poder dar livremente a nossa opinião. Só que, quando entram em campo as tropas de choque, quem quer que tenha a veleidade de dizer algo que não agrade ao sector que tem essas tropas de choque… terá de contar com um bombardeamento! Sabemos como funciona o exército dos soldadinhos do partido protofascista português: atacam com ferocidade qualquer voz discordante nas “redes sociais”, que são pouco sociais, mas são, mesmo, redes. Infelizmente, a técnica de usar as redes “sociais” para tentar vilipendiar quem não concorde com A ou com B… está bastante espalhada para além do partido protofascista português. Há, hoje, práticas organizadas de perseguição política a quem não suporte certo tipo de comportamentos. Essas práticas vão desde os ataques nas redes sociais até à tentativa de vetar nomes para o exercício de funções de representação política do partido. O objetivo é amedrontar os temerosos: "vejam o que pode acontecer se discordarem de mim!" Objetivamente, estas são práticas antidemocráticas, versões moles de um estalinismo que sabemos ter existido noutros tempos e/ou noutras formações políticas, uma espécie de estalinismo paroquial que deveria parecer abjeto a um militante de um partido democrático. Mas que existe, hoje, onde devia ser impensável.

5. Há algo de inevitável nisto? Não há. Pode ser travado? Pode. O que precisamos é de ter consciência do que está a acontecer e ser capaz de encontrar uma saída para a deriva.

Por isso alerto, outra vez: os partidos também morrem.

E, depois de morrer, ressuscitar não é garantido e, de qualquer modo, dá um imenso trabalho.



Porfírio Silva, 18 de Julho de 2025
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14.7.25

A democracia não é um mercado

23:30


Em 2002, nas eleições de 17 de março, o PS teve uma das suas derrotas tangenciais: Ferro Rodrigues, numa situação de partida muito desfavorável, acabou por perder para Durão Barroso por cerca de 130 mil votos.

(Nota à margem: O país perceberia, depois, que Durão Barroso não estava nada interessado na governação do país e abalaria para "mais altos voos" abandonando o seu mandato de primeiro-ministro. Antes de abalar, Barroso encheu-se de vaidade por um daqueles momentos em que a direita tem sempre todas as certezas do mundo, faz todos os atropelos em nome dessas certezas, e depois sacode a água do capote quando as supostas certezas se revelam um embuste monumental. Falo do episódio da invasão do Iraque, em que Barroso, acompanhando o inefável Blair, mandou às malvas o direito internacional, viu - provavelmente numa manhã de nevoeiro - as "provas" das armas de destruição maciça que nunca ninguém encontrou, mesmo depois de estar no terreno, e só não nos enterrou mais naquela guerra porque o Presidente Jorge Sampaio travou a fundo. Mas a vergonha estava feita.)

Ora, depois dessa derrota tangencial, Ferro Rodrigues promoveu uma atualização da Declaração de Princípios do PS (e, também, dos Estatutos, mas não é disso que me ocupo aqui), o que propiciou uns largos meses de debates públicos, incluindo artigos na imprensa, de vários camaradas. (Estudo, também, esse processo no meu livro História das Declarações de Princípios do Partido Socialista.)

Um dos artigos que deixaram marca nesse debate é da autoria de Carlos Zorrinho, que escreve na qualidade de Secretário Nacional do PS, e é publicado no Público a 17 de abril desse ano. O título é sugestivo: "Virar o país à esquerda".

A tese de Carlos Zorrinho é basicamente a seguinte: tanto a pretensão de afirmar o PS ao centro para nos "ajustarmos aos tempos" (expressão minha, não dele) como a ideia de uma “clara e frontal viragem à esquerda” são estratégias erradas para levar o partido de novo ao poder. A razão para estarem erradas é que essas estratégias, quer uma quer outra, assentam no raciocínio de que os partidos correm atrás de “nichos de mercado eleitoral”, enquanto, a seu ver “o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam”. Assim, o que importa ao PS é “conquistar o centro não ideológico para as vantagens das suas políticas e das suas propostas”, que compatibilizam políticas sociais ousadas com responsabilidade orçamental. Isto seria, então, “virar o país à esquerda” – coisa que distingue de “virar o PS à esquerda”.

O raciocínio desenvolvido por Zorrinho nesse artigo de 2002 volta a ser muito atual. Estando o PS, nessa altura, num debate claramente ideológico (revisão da Declaração de Princípios), muitos camaradas lamentavam que se arriscava descaracterizar o PS (porque se correria o risco de "virar à direita") e outros queriam mesmo "virar ao centro" para ser agradável ao que pensavam que o eleitorado queria. Ora, com clareza, Zorrinho explicava que correr atrás do que se pensava ser a "procura eleitoral" e ajustar a nossa "oferta política" a esse "mercado dos votos" era uma atitude estranha à nossa função e à seriedade do nosso compromisso político. Escrevia o meu camarada, nessa altura: "Sem prejuízo dos necessários processos de modernização, o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam. O esquecimento recorrente desta ideia simples tem contribuído mais para o desprestígio da política do que muitos outros fenómenos de desgaste, mais mediáticos, mas também mais voláteis e ocasionais." 

Isto é muito atual porque, sendo certo que a posição atual do PS exige reflexão acerca dos caminhos a seguir, há quem julgue que vale tudo para recuperar votos. Vale tudo por recuperar votos poderia, até, passar por dar pão aos piores instintos que vão contra as nossas emoções democráticas: humanismo, consideração pelos mais vulneráveis (mesmo quando não tenham razão em certas conjunturas concretas), ver no Outro um Igual que é Diferente mas tem tanta dignidade como nós, não tentar resolver problemas sociais esmagando os que já estão na mó de baixo, ... Enfim, atitudes que os socialistas tendem a tomar espontaneamente, mesmo sem excessiva racionalização e sem excessivas considerações táticas. São "emoções democráticas" que, creio, nos honram. 

Se entramos numa "mercearia eleitoral" e começamos a fazer aquilo que parece que o eleitorado gosta, mesmo quando há eleitorado que gosta de coisas detestáveis, estamos a vender a alma em troco de uma via rápida para ganhar uns votos. Essa via rápida pode até dar algum resultado no imediato, mas torna-nos dispensáveis a prazo: se nós prescindimos da nossa diferença, se abandonamos aquilo que consolidou o nosso papel específico na sociedade portuguesa, não tarda deixará de haver motivo para sermos escolhidos. A única alternativa decente é fazer como escrevia Carlos Zorrinho: trabalhar nas nossas propostas e convencer as pessoas de que elas são as necessárias. A solução não será, em caso nenhum, deixarmos de ser quem somos e irmos na onda. A não ser que a escolha seja sermos engolidos pela onda. 

Porque, repito Carlos Zorrinho, "o papel dos partidos não é seguir os eleitores, mas fazer com que os eleitores os sigam" e "o esquecimento recorrente desta ideia simples tem contribuído mais para o desprestígio da política do que muitos outros fenómenos de desgaste, mais mediáticos".



Porfírio Silva, 14 de Julho de 2025

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9.7.25

"Sempre que um homem sonha"




No passado sábado (5 de julho 2025) deixei de ser Diretor do Acção Socialista, um dos órgãos informativos do PS. (Continuo a ser Diretor da revista de reflexão política Portugal Socialista.)
Para a edição de ontem do Acção Socialista digital diário, o novo Diretor, Pedro Cegonho, propôs-me que escrevesse um "Editorial Convidado" (ali, o editorial costuma estar reservado ao diretor - daí o "convidado").
Aceitei e aproveitei para clarificar, um pouco, o meu entendimento do que deve a imprensa partidária de um partido profundamente plural como é o PS.
Deixo aqui, para registo, esse texto. No fim, o link para a publicação original.


***

"SEMPRE QUE UM HOMEM SONHA" (Editorial Convidado)


A crença central de um revolucionário é a possibilidade de mudar o mundo da noite para o dia, com um golpe de asa decidido e decisivo. Às vezes é preciso que seja assim, quando a obstinação dos reacionários (dos que puxam para trás) insiste em travar o processo da liberdade, seja das liberdades ditas formais (sem as quais não há liberdade de espécie nenhuma), seja das liberdades concretas no mundo das pessoas comuns. Foi o que fez o povo português com o 25 de Abril. Contudo, a crença central de um socialista democrático é que as transformações profundas e duradouras, sustentáveis, orientadas para melhorar estruturalmente a vida de quem vive do seu trabalho, são processos incrementais, passo a passo, de procura contínua de respostas, corrigindo quando necessário, fazendo e aprendendo com o fazer.

Essa via “melhorista” – a estratégia de acumular melhorias incrementais – requer diálogo democrático, ação e interação, pluralidade de vozes, procura de respostas sem certezas absolutas (porque estas dificultam a construção coletiva de um caminho), capacidade para ouvir. É nesse elemento de democracia e de pluralismo que o Partido Socialista se afirma como força de transformação progressista da sociedade portuguesa. Somos assim, fomos criados assim (nem a decisão de fundar o Partido em 1973 foi unânime!) e é aí que vamos, uma e outra vez, buscar forças para recomeçar percursos e construir novos avanços, novas vitórias.

Os órgãos de imprensa do Partido são uma peça dessa forma de ser PS. Falando, neste caso, especificamente, do Ação Socialista: a sua missão, além de lhe competir espelhar a orientação oficial traçada pelos órgãos próprios de decisão política, inclui também a necessidade de expressar a riqueza institucional deste Partido, que (felizmente) não é monolítico.

Por isso, durante o meu mandato como diretor (um período complexo, com umas eleições europeias, duas eleições legislativas, crise política, eleições internas), procurámos criar espaço de expressão dessa nossa riqueza institucional. Além de refletirmos diariamente a atividade dos Grupos Parlamentares do PS na Assembleia da República, na Assembleia Legislativa Regional dos Açores (e, em geral, do PS/Açores) e na Assembleia Legislativa Regional da Madeira (e, em geral, do PS/Madeira), tivemos a participação regular (semanal) da Associação Nacional de Autarcas do PS, do Jovem Socialista, da nossa Delegação no Parlamento Europeu, da Tendência Sindical Socialista (que engloba a Tendência Sindical Socialista da UGT e a Corrente Sindical Socialista da CGTP) e das Mulheres Socialistas (MS-ID). Por ocasião das eleições internas (Federações), demos voz às diferentes candidaturas, incluindo nas estruturas onde havia disputa. Procurámos, também, alargar a atenção do Ação Socialista à ação dos nossos camaradas ativos na Diáspora (embora, aí, não tenhamos feito tanto caminho como desejámos).

Além dessa diversidade assente na riqueza institucional do PS (em cada uma das rubricas acima mencionadas, de estruturas dos socialistas, nunca interferi editorialmente no respetivo conteúdo), tenho a honra de poder afirmar que nunca recusei qualquer texto de opinião que me tenha sido proposto para publicação, por qualquer camarada, em qualquer tema. Quem compreenda a natureza plural do PS, compreende a importância de que o órgão central de imprensa traduza essa realidade profunda e constitutiva do nosso modo de ser partido.

Os partidos enraizados na vida de um povo são partidos com história e que trazem consigo as aprendizagens passadas. Os partidos com futuro são coletivos vivos, em movimento, em mudança. O PS é tudo isso: um partido enraizado, com memória, que não esquece nem oblitera os seus valores fundacionais, e um partido sempre a caminho de novos futuros. O Ação Socialista faz parte desse caminho. É, assim, com naturalidade, que muda, agora (no passado sábado, 5 de julho) de diretor. Desejo ao novo diretor, camarada Pedro Cegonho, o que estou certo acontecerá: que vá mais longe do que eu consegui fazer. E agradeço-lhe a oportunidade deste último editorial, que, pela minha parte, marca a normalidade de um passo que se segue a outro: é assim que se faz caminho. Caminhando e sonhando: “sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança”. Só que nós, socialistas, acreditamos que sonhamos melhor quando sonhamos acompanhados: sempre que muitos homens e muitas mulheres sonham, o mundo pula e avança!


(Publicação original aqui: "Sempre que um homem sonha".)



Porfírio Silva, 9 de julho de 2025
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7.7.25

Mini-podcast 4 - Entre a Democracia e a Oligarquia

09:07




O texto discutido neste episódio do mini-podcast pode ser lido aqui: Entre a Democracia e a Oligarquia.


Porfírio Silva, 7 de julho de 2025
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30.6.25

Entre a Democracia e a Oligarquia

14:35


No número mais recente da revista FINISTERRA (nº 96), fundada por Eduardo Lourenço, atualmente dirigida por Fernando Pereira Marques e publicada pela Fundação Res Publica, no âmbito de um dossier sobre os EUA nesta era Trump, tive oportunidade de publicar um artigo intitulado "Entre a Democracia e a Oligarquia". Para registo, deixo aqui o texto correspondente.

***

ENTRE A DEMOCRACIA E A OLIGARQUIA




O PIB anual de países como a França ou o Reino Unido tem um valor inferior ao valor de mercado da Microsoft. Aliás, se a Microsoft fosse um país, estaria entre as quatro maiores economias do mundo, apenas atrás dos EUA, da China e do Japão. Pela mesma comparação, países como o Brasil ou a Itália estão atrás da Amazon, a Rússia ou a Coreia do Sul atrás da Google (Alphabet), a Espanha ou o México atrás do Facebook (Meta), a Irlanda ou a África do Sul atrás da Tesla e a Islândia ou o Chipre atrás da “pequena” X (ex-Twitter). Se compararmos, já não com o valor em bolsa das empresas, mas com as fortunas pessoais dos seus fundadores ou principais líderes, temos que o PIB anual de países como a Hungria ou Angola é inferior à fortuna pessoal de Bill Gates (Microsoft), que o PIB anual de Portugal é similar à fortuna pessoal de Jeff Bezos (Amazon) e que a Suécia ou a Bélgica estão na mesma ordem de grandeza da fortuna pessoal de Elon Musk (Tesla, SpaceX e X). [1]

De qualquer modo, os patrões das grandes tecnológicas não são – não são sempre – os mais ricos dos ricos nestas classificações. A questão mais relevante, aqui, não é a riqueza em si mesma, mas o poder numa determinada configuração. A jornalista francesa autora de “Mais Poderosos do que Estados”, obra recentemente traduzida para português, Christine Kerdellant, ao focar-se na questão do poder sistémico, escolhe seis figuras e respetivas empresas: Elon Musk (Tesla, SpaceX, X), Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Meta/Facebook), Bill Gates (Microsoft), Sergey Brin e Larry Page (Google) [2] . A Apple não consta, porque não está numa situação de monopólio e, portanto, não teria esse poder sistémico. 

Logo no início do livro, os indicadores de “poder sistémico” (capacidades que estão nas mãos destas empresas e destes empresários e que os Estados não têm, ou nunca tiveram, e que permitem contornar, suplantar ou derrotar as escolhas dos países – sejam as escolhas democráticas dos países onde isso é possível ou as escolhas de “ditaduras esclarecidas”) são mencionados.

Escapam aos impostos, em prejuízo dos países onde operam.

Usam toda a sua influência para levar o enquadramento legislativo para longe das suas atividades: os fundadores da Google tiveram o projeto de instalar a empresa numa plataforma ao largo da costa americana para funcionar numa espécie de extraterritorialidade.

Dominam sectores onde a sua presença mina a soberania estatal tradicional, por exemplo na defesa e no espaço: Musk detém uma parte muito significativa dos satélites de comunicações que estão em órbita da Terra; os seus satélites Starlink, às centenas, e as estações com que operam, são essenciais à Ucrânia para conseguir comandar as suas forças e meios na guerra que se segue à invasão russa – e, em contrapartida, tem livre acesso a todos os dados dos cidadãos ucranianos.

Transformam instituições públicas em instrumentos dos seus projetos próprios. O fundador da Microsoft é o segundo maior doador da Organização Mundial de Saúde e sem o seu financiamento – e sem a capacidade de influenciar a forma como se gastam as suas doações – a luta contra a poliomielite e o paludismo em África não teria os sucessos que tem tido: mas vale a pena pensar se é normal que um financiador privado determine e imponha a uma organização como a OMS qual é a vacina mais urgente, em que país é que se vai aplicar, como se selecionam as crianças a vacinar, sem ter de deliberar com ninguém acerca dos seus planos e critérios, apenas porque é ele que financia e escolhe para onde vão as suas doações. Parece mais estar a usar a estrutura da OMS para os seus planos do que a financiar a OMS, mas só se poderia evitar essa situação se os Estados dessem à OMS os meios necessários para as suas missões. É essa mesma “liberdade do doador” que justifica que os fundadores da Google prefiram tentar “matar a velhice e a morte” (prolongar a vida ao absurdo) e não se interessarem por investir nos tratamentos contra o cancro.

Roubam a privacidade e vendem-na sem respeito. O patrão do Facebook e do Instagram detém dados pessoais sobre um terço dos habitantes do planeta (aproximadamente, o terço com mais poder de compra) e usa essa informação para moldar as massas, como mostrou o caso Cambridge Analytica como operação de manipulação eleitoral e de boicote aos mecanismos democráticos (como participar na tentativa de deslegitimar o resultado de uma eleição democrática).

Minam ferramentas essenciais de uma sociedade aberta. As “redes sociais” tratam de destruir a comunicação social tradicional, cujos critérios deontológicos lhe asseguravam um lugar essencial no ecossistema democrático – ao mesmo tempo que tratam com negligência os efeitos massivamente nocivos sobre a saúde mental de crianças e adolescentes.

E os Estados, voluntariamente ou tentando apaziguar o monstro, hesitam e dão sinais de contemporização: em 2017, a Dinamarca nomeou um “embaixador” junto dos gigantes do Silicon Valley…

Tomar o Estado por dentro e minar a sociedade são processos que vão par a par.

Os bilionários criticam muito o Estado, mas usam-no intensamente para fazer avançar os seus negócios. No domínio das tecnológicas, em particular, os negócios mais gigantescos assentam diretamente em inovações criadas com base em intenso investimento público em investigação científica. Não é por ignorarem isso que os bilionários criticam o Estado: criticam-no como parte da sua operação ideológica. A prova de que não ignoram a realidade é que continuam a procurar e a obter fundos públicos. Recentemente, o Washington Post tornou pública a saga de Elon Musk para, ao longo de vinte anos, por meio de mais de 400 contratos com a Administração federal, 90 subvenções federais e locais, 20 créditos fiscais ou reduções de impostos sobre a propriedade, e seis empréstimos, extrair dinheiro público a todos os níveis do Estado: “Elon Musk business empire is built on $38 billion on government funding. Government infusions at key moments helped Tesla and SpaceX flourish, boosting Musk’s wealth”  [3].

Os satélites em órbita baixa, onde Musk tem uma presença crescente – não pediu licença a ninguém, simplesmente lançou-os –, proporcionam um nível de controlo das comunicações e dos dados ao nível planetário que constitui uma ferramenta de domínio global, ameaçando a soberania mesmo de uma potência como os EUA. O que está em causa são sistemas que permitem fornecer internet rápida, mesmo em áreas remotas sem infraestrutura alternativa, com maior eficiência do que os satélites geoestacionários (posicionados a muito maior altitude), com latência muito mais favorável (estando mais baixo, mais perto, os dados demoram muito menos tempo a ir e voltar); que servem propósitos de vigilância e reconhecimento (desastres naturais, movimentações militares, atividades ilegais transfronteiriças, apoio à navegação) e respostas de emergência face a catástrofes onde as redes terrestres se tornaram inoperacionais; e que são tipicamente mais baratos, requerem menos energia e são mais fáceis de lançar e substituir.

Mesmo que as modalidades de recurso de Musk ao dinheiro dos contribuintes possam parecer, em certos casos, tortuosas, é sabido que a conjugação de esforços entre o público e o privado faz parte de uma estratégia vencedora para as economias – mas a hipocrisia ideológica, que parece inata nestes atores, essa não contribui em nada para o desenvolvimento das sociedades. Por outro lado, há, também, uma responsabilidade do Estado em não entregar aos privados vetores estratégicos de controlo que podem capturar o futuro. A NASA e o governo americano entregaram-se nas mãos da SpaceX e de Musk para atividades espaciais – mas a União Europeia também recorreu à SpaceX para lançar satélites do sistema Galileo, concorrente do americano GPS.

De qualquer modo, não se trata só de dinheiro. Há também a legislação. O Tratado sobre o Espaço Exterior, de 1967, celebrado no quadro da ONU, proíbe a apropriação territorial sobre corpos celestes. Mas, o legislador americano, através do Space Act (U.S. Commercial Space Launch Competitiveness Act), de 2015 (Administração Obama), abre uma via para contornar esse tratado, a proveito das empresas privadas, na medida em que as autoriza a explorarem e lucrarem com recursos obtidos no espaço, como minérios de asteroides ou água em corpos celestes. O argumento é que não se trata de apropriação territorial, mas de apropriação, pelas empresas, de recursos extraídos. É por esta porta que entram empresas como a SpaceX, a Blue Origin, a Planet Labs ou a Amazon, no lançamento de satélites e no desenvolvimento de tecnologias espaciais. O desafio ao resto do mundo é do tipo de conquista do faroeste: quem chegar primeiro…

Outro exemplo de como o legislador americano pode ajudar as gigantes tecnológicas a estenderem os seus braços à volta do planeta tem a ver com a economia da nuvem (cloud) e é o Cloud Act, de 2018. De sua designação completa Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act, esta é uma lei segundo a qual todas as entidades ou pessoas que, em qualquer lugar do mundo, usem os serviços de empresas americanas de “cloud computing”, estarão obrigadas a dar acesso aos seus dados às autoridades dos EUA quando estas o exijam segundo os procedimentos legais americanos, mesmo que esses dados estejam localizados em servidores fora dos Estados Unidos (por exemplo, na Europa). Isto é, qualquer cliente da “nuvem” de uma empresa americana, usando serviços de armazenamento e processamento de dados à distância, aceita efetivamente a extraterritorialidade do direito americano, isto é, a aplicação do direito americano fora do seu território. O poder das tecnológicas vai a par com o poder político dos EUA, também neste caso. Num certo sentido, o Cloud Act facilitou a relação entre jurisdições nacionais diferentes quanto ao acesso a dados, mas o envolvimento de atores globais nesse campo, dominado pelos EUA, confere outra dimensão a essa cooperação que devia ser mutuamente benéfica para os diferentes Estados envolvidos [4].

Nada disto impede estes bilionários de continuarem a fazer discursos ideológicos contra o Estado. Clamar contra o Estado não é incompatível com a tentativa de usar esse mesmo Estado para fins particulares. Agora, como governante ao lado de Donald Trump, Elon Musk usa o seu poder no DOGE (Department of Government Efficiency) para perseguir agências e departamentos estatais que regularam ou investigaram as suas atividades. O Los Angeles Times denuncia esta situação e dá uma lista de exemplos de altos funcionários do serviço público que estão na mira desta equipa [5] . No mesmo sentido, a Public Citizen, um grupo de defesa dos consumidores, publicou recentemente um relatório sobre “como Trump está a suspender a aplicação da lei contra os infratores empresariais” [6] . A mistura entre o poder económico e o poder político está a ser promovida no topo do Estado, sendo que, nestas manobras, o poder político está a ignorar totalmente o bem comum e a tratar apenas dos interesses dos seus aliados.

Áreas sensíveis do funcionamento das sociedades podem ser perturbadas pelas atividades destes gigantes, afetando diretamente os direitos de muitos milhões de pessoas comuns. Jeff Bezos (Amazon) tem vindo a tentar penetrar massivamente no sector da saúde, no qual o acesso aos dados dos utilizadores os expõe a riscos elevados. Se as companhias de seguros tiverem acesso aos dados de saúde das pessoas (num sentido lato, permitindo traçar perfis a partir de dados sobre doenças crónicas, antecedentes familiares, consumos, hábitos, …) e puderem selecionar quem seguram e quem não seguram – ou puderem diferenciar os preços em função desse conhecimento muito aprofundado dos fatores de risco; se as empresas puderem comprar informação desse tipo acerca dos candidatos aos seus postos de trabalho; se as escolas dispuserem dessa informação quando procedem à seleção dos seus estudantes – a oportunidade de aumentar os lucros das empresas desses sectores económicos à custa de um tsunami de discriminação será um risco real.



Por trás da Grande Barreira de Fogo


A China também tem as suas big techs [7]: Baidu (buscas online, carros autónomos, IA), Alibaba (comércio eletrónico, pagamentos digitais, cloud) e as suas subsidiárias (Taobao, Tmall, Alipay, Alibaba Cloud), Tencent (redes sociais, jogos online, fintech), Xiaomi (smartphones, Internet das Coisas, eletrónica de consumo), … Só que, no Império do Meio, a política prevalece sobre a economia, o que, na prática daquele regime, implica que os multimilionários não podem ser mais poderosos do que o Estado (ou o Partido).

A dimensão da China faz com que seja compatível fechar a sua internet dentro das fronteiras nacionais sem perder a dimensão necessária para desenvolver as suas grandes empresas e sem deixar de ter acesso a dados em quantidade suficiente para competir com os gigantes ocidentais (por exemplo, para treinar os Large Language Models que estão no centro da IA Generativa). A China não deixa de ter interesse pelos mercados globais (a Alibaba entrou em Wall Street em 2014, acabando o primeiro dia de capitalização bolsista acima do Facebook e da Amazon), mas fechará as portas que tiver de fechar para preservar o que considera ser a sua segurança nacional. A “Grande Barreira de Fogo” (Great Firewall), a lembrar a Grande Muralha da China, é uma combinação de legislação, tecnologia e vigilância estatal, que monitoriza os fornecedores de acesso à internet e filtra a entrada e saída de dados, bloqueando conteúdos que o governo considera sensíveis, impede o acesso a sites estrangeiros de grande utilização no Ocidente,  impede buscas ou mensagens com termos como "Tiananmen", "Taiwan independente", ou "Falun Gong", vigia publicações e mensagens online, obriga as empresas a colaborar com esta “barreira” e promove as alternativas chinesas aos serviços mais populares em outras regiões do mundo [8].

O caso do criador da Alibaba serve como paradigma daquilo que a China pode fazer para travar os gigantes tecnológicos. Jack Ma veio de longe e de baixo e chegou ao topo. A Alibaba é, originalmente (para encurtar razões) uma espécie de Amazon chinesa, mas vai incorporar outras empresas e diversificar o negócio, designadamente: a Alipay (uma espécie de PayPal), a Taobao (tipo eBay) ou a Tmall (venda de produtos de luxo). A aplicação de pagamentos móveis Alipay terá um papel fulcral na evolução do projeto. A Alipay era usada por mais de mil milhões de chineses para pequenos pagamentos, compras a crédito e constituir poupanças. Os dados dos seus clientes eram vendidos para lhes serem propostos produtos financeiros, minando o mercado de depósitos da banca oficial, enquanto outra plataforma os usava para conceder massivamente créditos de consumo em montantes superiores ao rendimento mensal médio na maioria das províncias do país. 

Em outubro de 2020, no fórum financeiro de Xangai, num discurso escrito (portanto, que não foi um erro de improvisação), Jack Ma atacou o sistema financeiro chinês, completamente estatal, considerado pelo poder como um vetor da segurança nacional, descrevendo-o como ultrapassado, conservador, anacrónico, cujo excesso de controlo asfixiaria a própria economia. Dias depois, o grupo de Jack Ma, o Ant Group, deveria estrear-se simultaneamente na bolsa de Hong Kong e na de Xangai. O valor estimado para a capitalização inicial era de 37 mil milhões de dólares. Mas Xi Jinping mandou proibir a operação. 

Jack Ma foi chamado às autoridades financeiras e começou um processo de “retificação”: separação das atividades do grupo, combinação de controlo privado com controlo público das várias empresas, em formatos variáveis consoante o segmento, sujeição das atividades a licenciamento – e silenciamento pessoal (mediático) do empresário, acompanhado de reclusão não oficial e não legal (um método repressivo que Xi Jinping fez usar muitas vezes, tanto para adversários políticos como para empresários inconvenientes). 

Depois de dominado Jack Ma e o seu império, e de se ter aplicado o mesmo remédio a várias dezenas de outros empresários (incluindo a inclusão nos conselhos de administração de representantes das autoridades), e depois de Xi Jinping ter anunciado (em março de 2021) que, entre as suas prioridades, estavam (1) a necessidade de acabar com o abuso de posição dominante e das práticas anticoncorrenciais que prejudicavam os consumidores e as pequenas empresas e (2) controlar a exploração abusiva dos dados pessoais, o processo de controlo das grandes tecnológicas chinesas tornou-se sistemático. O controlo e utilização abusiva dos dados pessoais passou a ser assegurado pelo Estado, de acordo com os interesses do partido único, com uma vigilância brutal dos cidadãos com recurso a meios tecnológicos sofisticados [9] . Isto não significa que o governo chinês prescinda de criar um “ambiente de negócios” dinâmico [10] , mesmo por detrás de uma “Grande Barreira de Fogo”, tirando partido da dimensão humana da China, que viabiliza uma escala indispensável para vencer neste domínio.

Na via americana – poder político desviado para servir o poder económico – a democracia pode permanecer na forma, mas perde a sua substância. E, assim enfraquecida, fica mais permeável aos que possam querer dinamitar mesmo os seus procedimentos básicos, acabando por perder a forma e a substância (o Estado de direito depende muito da forma, apesar da cegueira dos que falam da “democracia meramente formal”).

Na via chinesa – rígido controlo autoritário da sociedade e esmagamento dos direitos dos cidadãos, reforçados com a utilização das novas tecnologias – o controlo político do poder económico fecha, do mesmo passo, qualquer caminho à democracia. É suposto o aumento do rendimento comprar e anular o desejo de liberdade.

No essencial, este problema não é novo, embora tenha novas roupagens e novos instrumentos – agudizando-se passo a passo. Os alertas não têm faltado, mas questionamo-nos se os nossos processos de decisão coletiva são capazes de lidar com estes desafios. Vejamos…

No seu discurso de despedida, no termo do seu mandato de Presidente dos EUA, pronunciado a 15 de janeiro de 2025, a partir da Sala Oval, Joe Biden deixou a seguinte mensagem: 

“Quero alertar o país para algumas coisas que me preocupam muito. Trata-se da perigosa concentração de poder nas mãos de um número muito reduzido de pessoas muito ricas e das consequências perigosas se o seu abuso de poder não for contrariado. Atualmente, está a tomar forma na América uma oligarquia de extrema riqueza, poder e influência que ameaça literalmente toda a nossa democracia, os nossos direitos e liberdades básicos e uma oportunidade justa para todos progredirem.”  [11]

Muitos, escutando-o, ter-se-ão recordado do discurso de despedida do Presidente Dwight Eisenhower, no mesmo local e circunstância similar, a 17 de janeiro de 1961. Nessa altura, quem esperava que o chefe militar e herói da Segunda Guerra Mundial pronunciasse um discurso de despedida nostálgico, ficou surpreendido com o alerta vigoroso que o Presidente de saída fez acerca do “complexo militar-industrial”, nestes termos:

“Esta combinação de um imenso estabelecimento militar e de uma grande indústria de armamento é nova na experiência americana. No entanto, não podemos deixar de compreender as suas graves implicações. Nos conselhos de governo, devemos precaver-nos contra a aquisição de influência injustificada, procurada ou não, pelo complexo militar-industrial. O potencial para a ascensão desastrosa de um poder mal colocado existe e persistirá.” [12]

Dois discursos de dois presidentes, enunciando riscos sistémicos para a democracia americana, pronunciados depois de terem exercido o poder durante anos… e mostrando que tais problemas não puderam por eles ser resolvidos, nem mesmo a partir do topo do poder executivo. O discurso de Eisenhower, lido na íntegra, equaciona a complexidade do problema, ciente do que explicava a evolução registada, mas sem deixar de assinalar os riscos. 

É nessa ciência da complexidade do problema que a Europa tem de colocar-se, procurando uma resposta própria, que não seja nem a via americana nem a via chinesa. Para isso temos de, face ao mundo em que vivemos, saber colocar-nos face às nossas forças e às nossas fraquezas em função dos nossos valores – se os queremos preservar.


A Europa tem de escolher um caminho


Lenine, o líder soviético original, dizia em 1920: “O comunismo é o Poder Soviético mais a eletrificação de todo o país” [13]. 

Vladimir Putin, em 2017, avisou: o país que liderar no domínio da IA governará o mundo [14].

Xi Jinping poderia, por seu lado, declarar: “O capitalismo de Estado é o Partido Comunista mais a inteligência artificial” – mas não costuma ser imprudente.

Em todo o caso, o que importa é que diferentes regiões do mundo estão a preparar-se para o impacto de mais uma possível vaga de mudança social proporcionada por inovações tecnológicas. A IA é mais uma das “tecnologias de uso geral” (tecnologias que transformam o conjunto da vida doméstica e a forma como trabalham as empresas) que têm marcado as ondas de mudança tecnológica desde o século XIX, sendo quatro as mais importantes:  a máquina a vapor, a eletricidade, as tecnologias da informação (TI) e a inteligência artificial (IA). De acordo com Indermit Gill , estudando as lições das anteriores vagas de “tecnologias de uso geral” e as tendências dos últimos anos, o receio dominante (de que a IA substituirá os trabalhadores por máquinas inteligentes) deveria dar lugar a outra preocupação mais realista: a de que a distribuição do rendimento se desequilibre, outra vez, ainda e cada vez mais em favor do capital e em detrimento do trabalho. Assim, o alerta é este: “Isto significa que os países que dispõem de mecanismos eficazes para resolver os problemas de distribuição têm uma vantagem sobre os que não dispõem.”

Este analista da The Brookings Institution avançava uma comparação entre as forças e as fraquezas dos grandes blocos quanto à tecnologia da IA: “A liderança tecnológica exigirá grandes investimentos digitais, uma rápida inovação dos processos empresariais e sistemas fiscais e de transferências eficientes. A China parece estar em vantagem no primeiro domínio, os EUA no segundo e a Europa Ocidental no terceiro. Um destes três fatores apenas não será suficiente, e mesmo dois dos três não serão suficientes; quem fizer melhor nos três dominará os restantes.” [15]  No mesmo texto, olhando, já não do lado das forças comparadas, mas das fraquezas relativas, identificava-as assim: a China tem de incentivar o empreendedorismo e reduzir as grandes disparidades em termos de educação e de riqueza; a Europa precisa de mobilizar grandes quantidades de dinheiro e atrair investimento em inovação; os EUA precisam de rapidamente restabelecer a concorrência nos sectores da tecnologia, das finanças, da saúde e da educação pública, para evitar a sobrecarga dos seus sistemas de redistribuição. (Aqui, a Europa está melhor do que os EUA e isso pode ser importante para enfrentar as consequências desta nova vaga de inovação.) 

Uma outra análise das abordagens à Inteligência Artificial que são características de diferentes atores na cena mundial [16] apontou o seguinte cenário: 

- EUA, a liderança pela inovação e o investimento: é expetável que os EUA continuem a liderar em termos tecnológicos, contando com as empresas mais influentes a nível mundial (incluindo a Google, a Microsoft e a OpenAI) para concretizar a inovação, atraindo talento de todos os cantos do planeta (embora seja preciso esperar para ver os efeitos dos ataques às instituições académicas e de investigação que a segunda Administração Trump tem lançado), com o governo a aumentar o investimento público, convicto da importância estratégica do sector, na linha de uma tradição onde a capacidade de segurança e defesa está interligada com o investimento em ciência;

- China, a superpotência em ascensão, visão estratégica e apoio governamental: a China anunciou a ambição de se tornar líder mundial em IA até 2030 e o governo definiu um roteiro para essa meta, incluindo investimentos maciços em investigação, educação e infraestruturas; as gigantes tecnológicas do país são a guarda avançada dessa estratégia e têm demonstrado capacidade para serem competitivas nos seus domínios, contando com a sua vasta população e um ambiente rico em dados como vantagem decisiva quando toca ao treino de modelos de IA; a China conseguirá o que estiver ao alcance da sua abordagem nitidamente centralizada e do empenhamento claro do poder político – e o que for compatível com o seu modelo político, como exemplifica o desenvolvimento da tecnologia de reconhecimento facial, muito apropriada para as suas políticas de vigilância e controlo social; 

- União Europeia, equilíbrio entre inovação e ética, o desafio da regulação: enquanto os EUA e a China se posicionam pela tecnologia, a UE adotou uma abordagem proactiva à regulamentação da IA, focada na transparência, na responsabilidade e nos direitos humanos, que já vinha do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) e que continua com a Lei da IA, de julho de 2024; alguns críticos, adeptos do “devemos fazer tudo o que conseguirmos fazer”, defendem que a regulação prejudicará a inovação, mas, de momento, mesmo que com hesitações, a UE é a única região do mundo que pretende apostar em liderar no estabelecimento de normas globais para a IA que não sacrifiquem a ética à rapidez do avanço tecnológico, na esperança de que, quando aumentar a consciência cidadã acerca do que está em causa, esta linha de preservação da ética pela regulação seja uma vantagem comparativa;

- Rússia, prioridade à defesa, a IA como ativo militar estratégico: focada na importância da IA na guerra moderna, a Rússia encara-a no contexto da sua estratégia militar; o investimento em I&D é percecionado como necessário para manter competitivas as suas capacidades militares, incluindo o desenvolvimento de sistemas de armas autónomos e de veículos não tripulados (como drones e tanques autónomos) e de ferramentas de ciberguerra baseadas em IA; a IA é entendida como uma possibilidade de remodelar a dinâmica do poder militar global, onde a Rússia acredita que tem caminho a recuperar.

Estas avaliações comparativas, assim a grosso ou refinadas, podem alimentar uma reflexão verdadeiramente orientada para o futuro. Mas qual futuro? Qual o futuro que queremos? Queremos o futuro americano? Queremos o futuro russo? Queremos o futuro chinês? Parece urgente um debate ao nível da União Europeia, desassombrado, que faça do projeto de prosperidade partilhada, o cerne do sonho europeu, a grande alavanca das nossas forças próprias, por uma região europeia que não desista do seu contributo civilizacional para este mundo em mutação. O modelo social europeu, revisitado para o ressuscitar dos escombros para que foi atirado pelo neoliberalismo dominante há demasiado tempo, pode ser um vetor da necessária construção de uma resposta propriamente europeia ao avanço dos inimigos da democracia, venham eles pelo lado da política ou pelo lado da economia.


A política, não o determinismo tecnológico

Em relação com as questões que temos vindo a refletir, autores de várias tendências, mas muitos deles empenhados na teorização do fim do capitalismo, falam agora de um “feudalismo” em novos moldes ou de um “tecnofeudalismo” [17] . 

Argumentam, em geral, considerando a posição privilegiada dos atores do sector tecnológico na economia global. Alguns consideram que a chave dos lucros desse sector está numa nova forma de extração de rendas (designadamente, as rendas da cloud), derivada do controlo monopolista das plataformas digitais, cujo produto já não é o tradicional “lucro” [18] . Outros vêm como uma nova classe dominante, entre os próprios capitalistas, não os que detêm a terra ou as fábricas, mas os que detêm os vetores através dos quais a informação é canalizada e utilizada [19]. 

Outros ainda, numa perspetiva mais cultural, falam de um poder neomedieval (dos senhores feudais digitais) sustentado, já não na força bruta, mas principalmente na persuasão e na dependência, quer económica quer emocional, onde os “servos” participam alegremente (feudalismo participativo e persuasivo). Viveríamos numa espécie de nova aldeia medieval, saturada de superstições, de uma vigilância social distribuída (vigilância mútua generalizada) e onde funcionam pelourinhos virtuais (onde a vergonha serve o controlo social e o respetivo castigo reputacional) [20] .

Stone e Kuttner falam de neofeudalismo ainda noutro sentido [21] . Quando a banca minou o sistema de regulação financeira que o New Deal criara para proteger os pequenos aforradores, os investidores, os credores hipotecários – e para proteger o interesse público; quando o sector financeiro criou terrenos de ação privados, escondidos da regulação pública, onde montantes massivos de transações estavam longe de quaisquer regras e onde cada pequeno agente só contava com o seu próprio conhecimento e a sua própria prudência para perceber a intrincada maquinaria de títulos derivados que tinha sido montada precisamente para que ele não percebesse o esquema; quando o legislador protegeu esse mundo de opacidade, substituindo a regulação pública por regulação privada a cargo dos próprios interessados, dita autorregulação, também no domínio das normas contabilísticas, também no domínio do registo de propriedade (onde foi montado um sistema paralelo sem qualquer base legal que resultou em inúmeros abusos contra envolvidos em hipotecas); quando a arbitragem obrigatória, em domínios como as relações laborais e os direitos do consumidor, serve para criar verdadeiros condomínios fechados de direito privado, onde se reduz a transparência processual e se limitam os direitos da parte mais fraca de cada relação, por exemplo tratando de impedir ações coletivas, cerceando o direito de recurso, impondo cláusulas de confidencialidade que impedem a partilha de provas – tudo isto, escrevem Stone e Kuttner, mostra a ascensão de novos “feudos” de direito privado, o que explica que falem de um neofeudalismo.

Embora estas reflexões contribuam, em muitos casos, para uma compreensão mais fina do que está realmente a mudar no terreno (talvez independentemente do valor das teorizações de alto nível que lhes estão associadas), corremos o risco, no caso dos muitos que insistem no “tecnofeudalismo”, de cairmos num determinismo tecnológico – na ideia, falsa, de que as tecnologias nos impõem determinadas formas de organização da sociedade.

Nem sempre vale a pena procurar explicações mais sofisticadas, para certos posicionamentos dos magnatas, para além do seu próprio interesse particular. Em 2014, o poderoso bilionário da tecnologia norte-americano Peter Thiel defendia que “o capitalismo e a concorrência são opostos”. Dario Amodei, CEO da Anthropic, defendeu, recentemente, mais sanções à China, maior controlo das exportações tecnológicas com esse destino, impedindo-os de obter semicondutores avançados – como caminho para “um mundo unipolar, onde só os Estados Unidos e os seus aliados tenham esses modelos”. Atenção: a referência ao “mundo unipolar” era uma expressão de preferência, era uma defesa desse tipo de mundo [22].

É claro que o susto do DeepSeek, o susto do sistema chinês que parecia fazer melhor do que os sistemas americanos de IA Generativa, com muito menos dispêndio de energia para o respetivo treino, fez soar muitos alarmes. Contudo, o que há a sublinhar é a necessidade democrática de não reduzir as considerações e as condicionantes políticas e sociais às condicionantes tecnológicas. Estamos em presença de uma batalha pela democracia, é tão cru e tão direto como isto. Robert Reich escrevia há pouco tempo [23]: “A maior divisão na América de hoje não é entre ‘direita’ e ‘esquerda’, ou entre Republicanos e Democratas. É entre a democracia e a oligarquia. Os velhos rótulos – ‘direita’ e ‘esquerda’ - impedem que a maioria das pessoas se aperceba de que estão a ser enganadas.” Não será preciso esquecer as diferenças entre direita e esquerda, até porque as direitas não são todas iguais, nem as esquerdas são todas iguais. Felizmente. Será preciso, contudo, ter noção das prioridades. Por alguma razão os socialistas democráticos seguimos a máxima: pode haver democracia sem socialismo, não pode é haver socialismo sem democracia. E isso marca as prioridades. Derrotar a oligarquia é prioritário. E a oligarquia, hoje, em lugares importantes do mundo, é, antes de mais, oligarquia dos donos das empresas tecnológicas.

A nova vaga de promessas da Inteligência Artificial – que, há décadas, geração após geração, promete o que não pode dar, sem prejuízo dos sucessos que tem obtido – apressa a necessidade de decisões políticas fundamentadas quanto ao papel destas tecnologias nas nossas sociedades.

Uma democracia não continuará a ser uma democracia se ficar dependente, ou puder ser facilmente manipulada, por meia dúzia de agentes económicos, tornando irrelevantes os mecanismos de deliberação livre próprios de uma sociedade onde o povo é soberano. E “o povo” não são indivíduos isolados, fechados em casa ou fechados em bolhas de concordância consigo mesmos em redes “sociais”, à distância de um ecrã. Só há povo para uma democracia se as pessoas se puderem juntar, conhecer os problemas, debater as soluções imaginadas e deliberar acerca do que fazer – e ter meios para concretizar, mesmo que imperfeitamente, o que se deliberou. No mesmo sentido, também não haverá democracia, nem liberdades, se o Estado se substituir aos oligarcas da tecnologia no comando de meios eletrónicos invasivos da privacidade e da autonomia dos indivíduos.

As escolhas de sociedade não são determinadas pelas tecnologias. Quando novas tecnologias viabilizam novos comportamentos ou formas de organização social, podemos não estar imediatamente preparados para avaliar os fatores em presença e deliberar quanto aos caminhos a seguir. Por exemplo, alguns aspetos da influência das redes “sociais” no comportamento de crianças e adolescentes, e no funcionamento das famílias, e até nas dinâmicas de agrupamentos sociais mais complexos, como as escolas, levam tempo a compreender, a estudar, a avaliar. Mas temos de construir saídas. Talvez transformar as escolas de ensino não superior em espaços livres de ecrãs, como resposta às inúmeras disfunções do convívio social que tais ecrãs potenciam, não seja uma decisão fácil: nunca poderá descurar os matizes de aplicação face a cada realidade concreta. Mas temos de agir. Não se trata de des-inventar as máquinas, mas de regular os espaços de sociabilidade em função dos valores centrais da nossa civilidade e não das máquinas que aterraram nos pátios das nossas escolas. Isso significa assumir as nossas responsabilidades, entre todos, sem ceder às ilusões do determinismo tecnológico. O que pode, e deve, ir a par com o combate pela democracia e contra a oligarquia tecnológica.


NOTAS

[1] Estes dados variam, mais rapidamente quando dizem respeito às empresas do que quando dizem respeito a países. Os dados sobre a economia dos países podem ser pesquisados, por exemplo, em https://datosmacro.expansion.com/ . Os dados sobre as empresas podem ser pesquisados, por exemplo, em https://finance.yahoo.com/ , em https://www.bloomberg.com/ ou em https://companiesmarketcap.com/ . Os dados sobre as grandes fortunas (que podem variar devido a variações de metodologia) podem ser consultados, por exemplo, em https://www.forbes.com/billionaires/ ou, para variações em tempo curto, em https://www.forbes.com/real-time-billionaires/ .


[2] Christine Kerdellant, Mais Poderosos do que Estados, Coimbra, Edições 70, 2025


[3] É necessária subscrição, mas pode ser lido aqui: https://www.washingtonpost.com/technology/interactive/2025/elon-musk-business-government-contracts-funding/ . Por cá, Bárbara Reis chamou a atenção para este trabalho, no Público:  https://www.publico.pt/2025/03/01/opiniao/opiniao/musk-estado-historia-bela-amizade-2124348


[4] Informação sobre o Cloud Act no sítio do Departamento de Justiça dos EUA: https://www.justice.gov/criminal/cloud-act-resources . Do lado europeu, pode consultar-se a informação sobre o Cloud Act no sítio do Eurojust: https://www.eurojust.europa.eu/publication/cloud-act 



[7] Para dados básicos sobre os gigantes tecnológicos chineses: https://www.registrationchina.com/articles/top-10-technology-companies-in-china/ . Para informação e análise, vale a pena ter em conta o sítio do projeto Mapping China’s Tech Giants, em https://chinatechmap.aspi.org.au/ 


[8] Para saber mais sobre o funcionamento desta “barreira”, cf. “Como contornar a Grande Firewall na China” em https://pt.proxyscrape.com/blog/how-to-bypass-the-great-firewall-in-china ou “ A Grande Muralha de Fogo da China controla a Internet, e os chineses pouco se importam” em https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2018/10/21/a-grande-muralha-de-fogo-da-china-controla-a-internet-e-os-chineses-pouco-se-importam/


[9] Cf. o capítulo 6 de Mais Poderosos do que Estados




[11] Pode ver e ouvir o vídeo do discurso de despedida do Presidente Biden, ou ler uma transcrição, nesta ligação: https://www.rev.com/transcripts/joe-biden-s-farewell-address 


[12] Uma transcrição do discurso de despedida do Presidente Eisenhower pode ser lida aqui: https://www.eisenhowerlibrary.gov/sites/default/files/research/online-documents/farewell-address/1961-01-17-press-release.pdf 


[13] Vladimir Ilitch Lénine, discurso ao VIII Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, realizado de 22 a 29 de dezembro de 1920, tradução constante das Obras Escolhidas de V.I. Lénine em 3 Tomos,
Editorial Avante, Tomo 3, pp. 409-432






[16] Cf. The AI Arms Race: Who Will Dominate the Future? (26/08/2024), consultável em  https://medium.com/@aitechdaily/the-ai-arms-race-who-will-dominate-the-future-8cf4a4d72ebf


[17] Para uma visão de conjunto de alguns destes autores, cf. Jeremy Gilbert, “Techno-feudalism or platform capitalism? Conceptualising the digital society”, in European Journal of Social Theory, 27/4 (2024), pp. 561-578


[18] Cf., por exemplo, Yanis Varoufakis, Technofeudalism: What killed capitalism, Brooklyn, Melville House, 2024


[19]  Cf., por exemplo, Mckenzie Wark, Capital is Dead, Londres, Verso, 2019


[20]  Cf. Jakob Linaa Jensen, The Medieval Internet: Power, Politics and Participation in the Digital Age, Bingley: UK, Emerald Group Publishing, 2020


[21] Katherine V.W. Stone e Robert Kuttner, "The Rise of Neo-Feudalism", in The American Prospect, 08/04/2020, https://prospect.org/economy/rise-of-neo-feudalism/




[23]  Robert Reich, “The American oligarchy is back, and it’s out of control”, em https://robertreich.substack.com/p/the-american-oligarchy-is-out-of



Porfírio Silva
in Finisterra, nº 96 (maio 2025), pp. 51-64



Porfírio Silva, 30 de junho de 2025
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