30.9.25

O plano de Trump para Gaza



Dada a importância e a sensibilidade da matéria, deixo aqui uma versão em português do texto "Gaza: les 20 points du plan de Donald Trump pour mettre fin à la guerre détaillés et décryptés", publicado hoje no quotidiano francês Le Monde (que, como é norma neste jornal, é datado do dia de amanhã, 1 de outubro de 2025). O texto é da autoria de Samuel Forey. Espero que seja útil para a compreensão de todas as armadilhas contidas neste plano - mas quem sabe o que pode sair daqui... 

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A Casa Branca publicou, na segunda-feira, 29 de setembro, um plano em vinte pontos proposto pelo presidente norte-americano, Donald Trump, ao primeiro-ministro israelita, Benjamim Netanyahu, durante a visita deste último a Washington, para pôr fim à guerra no território palestiniano.


Ponto 1. "Gaza será uma zona desradicalizada e liberta do terrorismo, que não representará uma ameaça para os seus vizinhos."
A ideia é que o Hamas deixe de assegurar o governo de facto do enclave. Este ponto é essencial para tranquilizar os israelitas, que ainda vivem em grande parte sob o trauma do massacre de 7 de outubro. Para além das atrocidades cometidas nesse dia, os habitantes da periferia de Gaza sofreram, durante vinte anos, ataques de rockets cada vez mais sofisticados. Muitos deles precisam de ver uma mudança real na governação do território palestiniano antes de tomarem a decisão de regressar às suas casas.


Ponto 2. "A Faixa de Gaza será reabilitada no interesse da população do enclave, que já sofreu o suficiente."
“ Sofrimento” é um eufemismo para os palestinianos de Gaza, cuja identidade nacional não é mencionada no “plano Trump”. Mais de 65 000 deles foram mortos e cerca de 170 000 ficaram feridos, segundo números do Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, mas considerados credíveis pelas organizações internacionais. Aproximadamente 92% das habitações foram destruídas ou danificadas, de acordo com o Gabinete da Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA). A ONU declarou, em agosto, estado de fome para 500 000 habitantes de Gaza. Uma crise criada de todas as formas, uma vez que Israel restringiu drasticamente o fornecimento de alimentos, confiado a uma entidade opaca, a Gaza Humanitarian Foundation (GHF), que dispõe apenas de quatro centros de distribuição em toda a faixa. Conjunto de atos que levou muitos investigadores, juristas e organizações de direitos humanos, tanto israelitas como internacionais, a concluir que está em curso um genocídio em Gaza.


Ponto 3. "Se as duas partes [Israel e o Hamas] aceitarem este plano, a guerra terminará imediatamente. As forças israelitas retirar-se-ão até uma linha acordada para preparar a libertação dos reféns. Durante esse período, todas as operações militares, incluindo os bombardeamentos aéreos e de artilharia, serão suspensas, e as linhas da frente permanecerão fixas até que estejam reunidas as condições para uma retirada faseada."

O Hamas sempre exigiu que o exército israelita procedesse a uma retirada total, e não parcial, da Faixa. As forças do Estado hebraico controlam atualmente 82% dos 360 quilómetros quadrados de Gaza, deixando os 2,1 milhões de habitantes amontoados numa minúscula faixa costeira. Segundo um mapa divulgado pela Casa Branca, Israel deverá, numa primeira fase, efetuar uma retirada limitada assim que os reféns sejam libertados. Retirar-se-á um pouco mais quando uma “força internacional de estabilização” (ISF), ainda de contornos vagos, assumir o controlo da zona libertada, no caso ainda hipotético de o Hamas depor as armas. Finalmente, Israel deverá proceder a uma terceira retirada, em prazo indeterminado, mas manterá o controlo de todas as fronteiras do enclave, incluindo a que este partilha com o Egito. Trata-se de um ganho significativo para o Estado hebraico. Pelo contrário, a ausência de um calendário claro para estas retiradas promete suscitar reservas, ou mesmo uma contestação aberta, da parte do Hamas.


Ponto 4. "Nas setenta e duas horas seguintes à aceitação pública deste acordo por Israel, todos os reféns, vivos ou mortos, serão entregues."

Das 251 pessoas raptadas a 7 de outubro, o Hamas ainda detém 47, das quais cerca de vinte estarão vivas, segundo estimativas do exército israelita. Os dois anteriores cessar-fogos, em novembro de 2023 e em janeiro, previam uma libertação gradual dos cativos, o que deu lugar a encenações macabras por parte do Hamas. Desta vez, o “plano Trump” pressupõe a libertação da totalidade dos reféns, vivos ou mortos, de uma só vez. O regresso destes cativos às suas casas, em troca do fim da guerra, é um desejo constante da maioria dos israelitas — 64,5%, de acordo com uma sondagem realizada em agosto pelo Instituto Democrático de Israel. Incluindo entre os simpatizantes do Likud, o partido dirigido pelo primeiro-ministro Benjamim Netanyahu.


Ponto 5. "Uma vez libertados todos os reféns, Israel soltará 250 prisioneiros condenados a prisão perpétua, bem como 1 700 habitantes de Gaza detidos após 7 de outubro de 2023, incluindo todas as mulheres e crianças detidas nesse contexto. Por cada refém israelita cujos restos mortais sejam entregues, Israel libertará os corpos de quinze palestinianos de Gaza mortos."

Este é um dos poucos pontos relativamente precisos do acordo. O Hamas, que fez da libertação dos prisioneiros palestinianos uma das suas prioridades, pode reivindicá-lo como vitória. Mas o facto de o plano não indicar qualquer calendário para essas libertações pode levar o movimento islamista a adotar prudência. Do lado israelita, este ponto arrisca-se a provocar divisões no seio da coligação governamental, podendo mesmo conduzir à sua queda. Os dois ministros mais radicais de Benjamim Netanyahu, Itamar Ben Gvir e Bezalel Smotrich, oriundos da extrema-direita nacionalista e religiosa, terão dificuldade em aceitar a libertação de tantos palestinianos, considerados de forma uniforme como “terroristas”, além de uma retirada, mesmo que parcial, da Faixa de Gaza, onde sonham reconstruir colonatos. Em janeiro, uma parte dos prisioneiros libertados tinha sido expulsa para o Egito, antes de escolher o exílio entre a Tunísia, a Argélia e a Turquia.


Ponto 6. "Uma vez que todos os reféns tenham sido entregues, os membros do Hamas que se comprometerem a coexistir pacificamente e a desarmar-se beneficiarão de uma amnistia. Aqueles que desejarem deixar Gaza terão direito a uma passagem protegida para os países de destino."

É pouco provável que esta medida suscite grande adesão. Uma parte significativa da direção política e militar do Hamas na Faixa de Gaza foi morta nos bombardeamentos israelitas. Entre os sobreviventes, os que estão feridos poderão aproveitar esta oportunidade para sair e receber tratamento médico no estrangeiro. No entanto, no caso de aceitar o plano, o movimento islamista procurará manter parte dos seus quadros no local. Mesmo tendo declarado estar disposto a abandonar a governação do enclave, o Hamas não pretende, por isso, abandonar o terreno.


Ponto 7. "Com a aceitação deste acordo, uma ajuda [humanitária] completa será imediatamente encaminhada para a Faixa de Gaza. As quantidades serão, no mínimo, conformes às previstas no acordo de 19 de janeiro de 2025 sobre ajuda humanitária, incluindo a reabilitação das infraestruturas (água, eletricidade, saneamento), a recuperação dos hospitais e das padarias, bem como o envio dos equipamentos necessários para remover os escombros e abrir as estradas."

Para Gaza, a urgência humanitária é absoluta. Colunas de ajuda, por enquanto bloqueados por Israel, estão prontos a partir, nomeadamente a partir da cidade de El-Arich, situada no Sinai, no Egito, e do porto de Ashdod, em Israel. Nos primeiros dias do cessar-fogo de janeiro a março de 2025, entravam diariamente em Gaza entre 500 e 600 camiões. O que correspondia ao nível do período anterior à guerra, embora as necessidades, em comparação com essa altura, tenham decuplicado.


Ponto 8. "A entrada da ajuda e a sua distribuição na Faixa de Gaza serão feitas sem ingerência de nenhuma das partes, através das Nações Unidas e das suas agências, bem como do Crescente Vermelho e de outras instituições internacionais não associadas a qualquer dos lados. A abertura da passagem de Rafah [no sul do enclave], nos dois sentidos, ficará sujeita ao mesmo mecanismo implementado no âmbito do acordo de 19 de janeiro de 2025."

As Nações Unidas, criticadas por Donald Trump e marginalizadas por Israel, regressam ao centro do processo de distribuição da ajuda humanitária. Trata-se de um ganho importante para os palestinianos de Gaza. A referência a “outras instituições internacionais” deverá, no entanto, permitir que a GHF se mantenha no terreno. O destino do posto fronteiriço de Rafah permanece incerto. Durante o cessar-fogo de janeiro, Israel tinha mantido tropas nesse local.


Ponto 9. "Gaza será governada ao abrigo da autoridade transitória temporária de um comité palestiniano tecnocrático e apolítico (…), sob a supervisão e o controlo de um novo órgão internacional de transição, o 'Conselho da Paz', que será dirigido e presidido pelo presidente Donald Trump, com outros membros e chefes de Estado que serão anunciados, incluindo o antigo primeiro-ministro [britânico] Tony Blair. Este órgão definirá o quadro e gerirá o financiamento da reconstrução de Gaza até que a Autoridade Palestiniana tenha concluído o seu programa de reformas."

É este ponto que permitiu a Benjamim Netanyahu vangloriar-se de que Gaza não seria governada nem pelo Hamas nem pela Autoridade Palestiniana. Ninguém sabe ainda quem serão as personalidades palestinianas que aceitarão fazer parte deste comité. E a formulação vaga sobre o programa de reformas exigido à Autoridade Palestiniana permitirá prolongar o mandato deste comité ad aeternam.


Ponto 10. "Um plano de desenvolvimento económico de Donald Trump para reconstruir e dinamizar Gaza, reunindo um painel de especialistas que contribuíram para o nascimento de algumas das modernas cidades prósperas do Médio Oriente (…)."

Donald Trump, ainda embalado pelo seu sucesso em ter conseguido impor um cessar-fogo entre o Hamas e Israel em janeiro, tinha declarado em fevereiro que os Estados Unidos deveriam assumir o controlo da Faixa de Gaza e aí construir a “Riviera do Médio Oriente”. Um tal projeto já não está em cima da mesa. Reconstruir Gaza promete ser uma tarefa gigantesca: serão necessários mais de vinte anos para remover os 50 milhões de toneladas de destroços. O genro de Donald Trump, o promotor imobiliário Jared Kushner, próximo da Arábia Saudita, poderá desempenhar um papel ativo nesta reconstrução.

 

Ponto 11. "Será criada uma zona económica especial com direitos aduaneiros preferenciais e taxas de acesso a negociar com os países participantes."

 

Ponto 12. "Ninguém será forçado a deixar Gaza, e aqueles que desejarem partir serão livres de o fazer e de regressar. Incentivaremos as pessoas a permanecer e ofereceremos a oportunidade de construir uma Gaza melhor."

Trata-se de um ponto essencial, numa altura em que o governo israelita deixou várias vezes no ar a possibilidade de uma limpeza étnica do enclave, seja em massa, expulsando os palestinianos para o Sinai, seja de forma individual, incentivando as chamadas saídas “voluntárias”. Esta opção, firmemente recusada pela maioria da comunidade internacional, e em primeiro lugar pelos países árabes, parece ter sido definitivamente afastada.

 

Ponto 13. "O Hamas e as outras fações comprometem-se a não desempenhar qualquer papel na governação de Gaza, direta, indireta ou sob qualquer forma. Todas as infraestruturas militares, terroristas e ofensivas, incluindo túneis e instalações de produção de armas, serão destruídas e não poderão ser reconstruídas. Haverá um processo de desmilitarização de Gaza sob a supervisão de controladores independentes (…). A Nova Gaza será inteiramente dedicada à construção de uma economia próspera e à coexistência pacífica com os seus vizinhos."

A visão de Trump para Gaza consiste numa zona franca, desmilitarizada e até despolitizada — o modelo de uma “Singapura mediterrânica”, sonhado já nos anos 1990 por israelitas. Mas Israel terá de aceitar levantar o bloqueio imposto desde 2007 e a tomada de controlo de Gaza pelo Hamas, que impede a entrada de muitos materiais e equipamentos.


Ponto 14. "Será fornecida uma garantia por parte de parceiros regionais para assegurar que o Hamas e as fações respeitam as suas obrigações e que a Nova Gaza não constitui uma ameaça para os seus vizinhos ou habitantes."

 

Ponto 15. "Os Estados Unidos trabalharão com parceiros árabes e internacionais para desenvolver uma força internacional de estabilização (ISF) temporária a ser imediatamente destacada no enclave."

Ninguém conhece ainda a composição dessa força. Vários países já tinham proposto a sua ajuda, da França à Indonésia. Mas será necessário, antes de mais, que Israel, apegado ao seu controlo sobre o enclave, aceite deixá-la atuar. Os Emirados Árabes Unidos poderão desempenhar um papel de primeiro plano.

 

Ponto 16. "Israel não ocupará nem anexará Gaza. À medida que a ISF estabelecer o controlo e a estabilidade, o exército israelita retirar-se-á com base em normas, etapas e prazos ligados à desmilitarização que serão acordados entre o exército israelita, a ISF, os garantidores e os Estados Unidos, com o objetivo de uma Gaza segura que já não represente uma ameaça para Israel, o Egito ou os seus cidadãos. Concretamente, o exército israelita entregará progressivamente o território de Gaza que ocupa à ISF segundo um acordo a celebrar com a autoridade de transição até ao seu completo retiro do enclave, à excepção de uma presença num perímetro de segurança que permanecerá até que a Faixa de Gaza esteja corretamente assegurada contra qualquer ressurgência de ameaça terrorista."

Esta posição de princípio é forte, mas deixa muita margem para interpretação. Quando é que Israel considerará que Gaza está “corretamente assegurada”? Qual será a dimensão desse “perímetro de segurança”? Onde serão alojados os habitantes de Gaza enquanto decorre a reconstrução do enclave?


Ponto 17. "No caso de o Hamas atrasar ou rejeitar esta proposta, os elementos acima, incluindo a importante operação de ajuda, serão implementados nas zonas libertadas do terrorismo entregues pelo exército israelita à ISF."

Se o Hamas, ou uma fração do movimento, não capitular, será confinado a uma área onde Israel estará autorizado a prosseguir a guerra. Mais uma vez, trata-se de um mecanismo que permite ao governo manter uma forma de controlo sobre o enclave, em particular nas zonas urbanizadas.


Ponto 18. "Será estabelecido um processo de diálogo inter-religioso com base nos valores da tolerância e da coexistência pacífica, a fim de tentar mudar as mentalidades dos palestinianos e dos israelitas, sublinhando as vantagens que podem advir da paz."

Este ponto, vago na sua formulação, sugere que a administração americana considera o Hamas como um simples movimento religioso radical e não como uma fação islamo-nacionalista. Isto comporta o risco de deixar de lado um processo de reconciliação política, ou até mesmo de justiça transicional.


Ponto 19. "À medida que o redesenvolvimento de Gaza progrida e quando o programa de reformas da Autoridade Palestiniana for fielmente implementado, poderão finalmente estar reunidas as condições para abrir um caminho credível para a autodeterminação e a criação de um Estado palestiniano, que reconhecemos como sendo a aspiração do povo palestiniano."

A menção a um Estado palestiniano era essencial para que os países árabes de primeira linha — Arábia Saudita, Egito, Jordânia, Qatar — aceitassem o plano proposto por Donald Trump. Mas o uso do condicional, a ausência de qualquer referência à Cisjordânia ocupada e o facto de só surgir no final do texto parecem mostrar que não se trata de uma prioridade para os americanos.


Ponto 20. "Os Estados Unidos estabelecerão um diálogo entre Israel e os palestinianos para definir um horizonte político para uma coexistência pacífica e próspera."

Este ponto, que complementa o anterior, abre a via a uma possível retoma do processo de paz israelo-palestiniano. Mas não põe em causa — nem sequer menciona — a colonização e a ocupação israelita, principais obstáculos a uma solução de paz assente em dois Estados.


Porfírio Silva, 30 de Setembro de 2025
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