18.7.25

Um risco existencial ameaça o PS



Intróito. Há momentos em que seria mais cómodo estar calado. É nesses momentos que é preciso falar. Ir ao que dói. Alertar para os perigos. Deixarmos de tratar com paninhos de lã o que ameaça o essencial. Por isso escrevo hoje.

 

***


1. Quando, em 1969, as tropas do Pacto de Varsóvia, sob o comando da União Soviética, invadiram a Checoslováquia para impedir o “socialismo de rosto humano”, o processo de reformas democratizantes que tinha sido lançado pelo Partido Comunista daquele país, essa invasão abalou politicamente a esquerda, em especial os comunistas ocidentais. Por muitas razões políticas que separassem os observadores de esquerda daqueles acontecimentos, a rutura provocada foi uma rutura emocional: havia quem tolerasse a invasão de “um país socialista” por outro “país socialista” e engolisse as “explicações” ortodoxas – e havia quem não encontrasse maneira de tolerar tal ato de violência em nome do “socialismo real”. Foi um trauma para os comunistas ocidentais e mudou muita coisa na história desse movimento. Aconteceu aí um choque de emoções políticas que as razões não conseguiram conter.

O que interessa isto agora? Vejamos. 



2. Em parte, os partidos políticos são tribos.

Quer dizer: a política não é só (e às vezes não é fundamentalmente) uma questão de argumento e uma questão de razão. Muitas pessoas não serão capazes de explicar detalhadamente porque são de direita ou porque são de esquerda. Mas são, afirmam-se, identificam-se como de esquerda ou de direita. Sentem-se de direita ou de esquerda. (Sim, “sentem-se”, para escândalo dos hiper-racionalistas.) 

Isto não ignora que ser apoiante da democracia como sistema político incorpora um sólido fundamento na razão, na adesão raciocinada. A adesão a uma democracia constitucional está escorada num longo percurso de construção racional, de procura, de dissecação de alternativas. Tudo isso existe. Mas nada disso vive sem o cimento, sem a base das emoções democráticas. As pessoas não são de direita ou de esquerda por causa de terem absorvido cursos de filosofia política. As pessoas são de direita ou de esquerda porque têm certas emoções, certas paixões. Essas emoções podem ter sido formadas por hábito familiar, por educação, por impacto de um acontecimento da vida que criou uma certa dor ou uma certa raiva ou uma certa atenção especial a determinados fenómenos, por admiração (ou por detestação) da ação de certa pessoa ou certo grupo, … Por isto ou por aquilo, há no mundo coisas que a certas pessoas repugnam, outras coisas que as entristecem, causas que as entusiasmam, situações que as mobilizam e outras situações que as deixam impassíveis. Havendo sobreposições (o mundo não é a preto e branco), as pessoas de esquerda e as pessoas de direita sentem certos fenómenos no mundo de modo diferente.
 
Tanto as pessoas de direita como as pessoas de esquerda têm, às vezes, a convicção de que são puramente racionais e se determinam apenas pelos argumentos. Mas isso não existe. Partidos profundamente democráticos e plurais (como é o PS) resistem bem a diferenças de opinião sobre políticas públicas. No PS sempre houve 7 opiniões diferentes sobre qualquer assunto em que sejamos chamados a decidir. Isso, no PS, nunca foi verdadeiramente crítico. Já tivemos várias eleições presidenciais em que se apresentava mais do que um candidato socialista ou apoiado por socialistas. Isso não matou o PS. Já tivemos o grupo parlamentar profundamente divido sobre questões essenciais da revisão constitucional. E isso foi absorvido. Já tivemos dirigentes destacados que saíram, formaram outros partidos, concorreram a eleições contra o PS, e depois voltaram. Isso não matou o PS. Já tivemos momentos de enorme tensão interna, acusações de falta de democracia e de falta de lealdade, e alguns desses momentos tiveram de ser resolvidos com acordos escritos entre maioria e minoria. E tudo sarou. Há argumentos para tudo, bendita seja a liberdade! Hoje as opiniões agrupam-se de um certo modo, para a semana agrupar-se-ão de modo diferente. Não costuma haver fações, correntes organizadas, embora já tenham existido sótãos. Mas até isso foi digerido. Não é por argumentações intensas que um partido tão plural como o PS se perde. Pelo contrário: reforça-se. 

(É verdade que alguns só gostam dessa liberdade quando é para serem os próprios a dela fazer uso, ficando muito incomodados quando estão em maioria e detestam que os que discordam digam qualquer coisa. Mas isso são apenas destroços de um grande navio de pluralismo.)

Em partidos monolíticos, onde todos têm de fazer de conta que concordam com tudo e a divergência é percepcionada como uma fraqueza, a diferença de opinião prejudica. Pelo contrário, a diferença de opinião não mata partidos democráticos. Plano muito diferente: a diferença de emoções pode matar qualquer agremiação política.


3. Quando, dentro de um partido, as emoções dividem, esse partido está em risco existencial. A própria viabilidade do coletivo estará em causa se, perante alguma opção séria, deixarmos o terreno das diferenças de opinião e passarmos ao terreno das diferenças de emoção. Quando uns olharem para uma situação real e a sentirem como humanamente insuportável, enquanto outros a consideram apenas um problema a resolver com as ferramentas da gestão legal, temos uma brecha perigosa perante nós. Sentirmo-nos violentados na nossa sensibilidade por qualquer coisa que outros consideram apenas um assunto a ser gerido pelas ferramentas legais que estejam mais à mão, já não é somente uma matéria de debate racional. Sem deixar também de ser isso, passou a ser um choque de emoções. Aí, estaremos noutro patamar. E o patamar das emoções democráticas é indispensável à democracia. 


Um coletivo partidário afetado por um choque de emoções, que o divida, é um coletivo partidário em risco existencial. Lembro sempre (faço-o há alguns anos, dentro do meu partido e na praça pública) que os partidos também morrem. Os partidos podem morrer por variadas razões. Algumas dizem respeito apenas ao ecossistema: alguém passa a representar melhor os que eram representados por esse partido. Mas, as razões mais dolorosas para um partido morrer verificam-se quando a sua degenerescência vem de dentro. Quando as emoções de uns deixam de jogar com as emoções de outros. 


Atentemos: a existência de um choque de emoções não significa que as razões estejam todas de um lado e o outro lado não tenha razão nenhuma. Raramente, num confronto, um lado tem todas as razões e o outro lado não tem razões nenhumas. Só que isso conta pouco como primeiro patamar de um choque de emoções. O choque de razões pode ser dirimido racionalmente. O choque de emoções pode ser impossível de sanar ou, pelo menos, custar muito suor e lágrimas – e muito tempo – para ser sanado. Podemos fazer marcha atrás num confronto de razões: amainar, arredondar, compor, articular, negociar. Não há, de imediato, nada que remedeie um choque de emoções.


Exemplo prático. Vemos crianças a dormir ao relento por efeito de uma ação de uma autoridade pública. As razões trocadas acerca da situação podem não estar exclusivamente, todas, em qualquer dos lados que se posicionam face à situação. Um debate racional acerca da situação podia ser viável. Só que é impossível juntar no mesmo barco os que se arrepiam por essa situação ter sido causada, os que veem essas crianças como o primordial problema do que está em causa, e os que encontram uma imensa lista de justificações para a ação que causou essa situação. O debate racional acerca da situação podia ser gerível; o choque de emoções básicas envolvidas não é gerível.


O choque de emoções básicas, tal como o tenho vindo a refletir aqui, tem todo o potencial para destruir por dentro uma agremiação política, um coletivo partidário. Este choque de emoções básicas nunca antes tinha acontecido no PS. Está a acontecer agora.



4. O processo da destruição por dentro pode ser travado? Pode. Mas essa travagem só é viável se compreendermos que esse risco existe e assumirmos a tarefa de o travar. Contudo, essa cura necessária nunca chegará a acontecer se prevalecer a lógica das tropas de choque.

As tropas de choque são os ativistas organizados de uma posição que querem que, em lugar do debate, haja combate. Num debate, usamos argumentos e deixamos que se sedimente uma conclusão, a qual, provavelmente, será uma mistura das diferentes posições de partida. Num combate, há sempre um lado (pelo menos um lado) que quer a destruição do outro. Na prática, dentro de um partido aberto, normalmente esperamos ter tranquilidade de espírito para poder dar livremente a nossa opinião. Só que, quando entram em campo as tropas de choque, quem quer que tenha a veleidade de dizer algo que não agrade ao sector que tem essas tropas de choque… terá de contar com um bombardeamento! Sabemos como funciona o exército dos soldadinhos do partido protofascista português: atacam com ferocidade qualquer voz discordante nas “redes sociais”, que são pouco sociais, mas são, mesmo, redes. Infelizmente, a técnica de usar as redes “sociais” para tentar vilipendiar quem não concorde com A ou com B… está bastante espalhada para além do partido protofascista português. Há, hoje, práticas organizadas de perseguição política a quem não suporte certo tipo de comportamentos. Essas práticas vão desde os ataques nas redes sociais até à tentativa de vetar nomes para o exercício de funções de representação política do partido. O objetivo é amedrontar os temerosos: "vejam o que pode acontecer se discordarem de mim!" Objetivamente, estas são práticas antidemocráticas, versões moles de um estalinismo que sabemos ter existido noutros tempos e/ou noutras formações políticas, uma espécie de estalinismo paroquial que deveria parecer abjeto a um militante de um partido democrático. Mas que existe, hoje, onde devia ser impensável.

5. Há algo de inevitável nisto? Não há. Pode ser travado? Pode. O que precisamos é de ter consciência do que está a acontecer e ser capaz de encontrar uma saída para a deriva.

Por isso alerto, outra vez: os partidos também morrem.

E, depois de morrer, ressuscitar não é garantido e, de qualquer modo, dá um imenso trabalho.



Porfírio Silva, 18 de Julho de 2025
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