23.11.13

passagem rápida por uma biografia política.


Sou um leitor lento. Atento, mas lento: nunca leio a direito, faço frequentemente pesquisa paralela ao que estou a ler, comparo, anoto - e tudo isso leva tempo.
Sendo lento, tenho de ser selectivo. Por isso, entro em menos livros do que aqueles que gostaria.
Há, entretanto, a tentação. Nesses casos, manuseio e bisbilhoto até me decidir. A mais recente tentação resolveu-se depressa.
Anda cá por casa a biografia não autorizada de António Guterres. Hoje de manhã abri-a ao acaso e topei, numa dúzia de páginas lidas de seguida, além de repetições e redundâncias que não se entendem, com pérolas suficientes para tomar uma decisão.

Primeira pérola, p. 186: «No meio deste pesadelo, Balsemão consegue a sua grande vitória: aprovar com Soares uma importante revisão constitucional que substitui o militarista Conselho da Revolução pelo civilista Conselho de Estado. Termina o período de vigilância revolucionária (...).» Não vou agora ponderar se o relato é suficiente ou apressado para a importância política da matéria. Limito-me a notar que o Conselho da Revolução não é substituído nas suas funções (civis) apenas pelo Conselho de Estado, mas também pelo Tribunal Constitucional. Enquanto o Conselho de Estado não tem, em geral, qualquer papel central na condução do país, o Tribunal Constitucional é um órgão da maior relevância no nosso ambiente institucional. E a Comissão Constitucional do Conselho da Revolução (parte integrante do Conselho da Revolução, Comissão conduzida por Melo Antunes) foi o "braço" politicamente mais relevante de toda a acção do Conselho da Revolução, quer na óptica dos apoiantes quer na óptica dos críticos. Assim, esta "imprecisão" parece-me grave no contexto de uma biografia política tão ambiciosa.

Já na página 197, quando se fala da aprovação da lei sobre o aborto ao tempo do Bloco Central, com o PSD muito zangado pela iniciativa legislativa do PS, lê-se a segunda pérola: «O governo acabou por abster-se na votação parlamentar.» Francamente, não imagino o que isto possa querer dizer. Desconheço que em algum momento da nossa democracia alguém, que não os deputados, tenha tido direito a voto. O governo apresenta-se no parlamento, fala e ouve, mas não vota, ponto final. E o autor de uma biografia política nem pode ignorar isso, nem pode fazer de conta que isso é de outro modo. Nem pode plantar frase tão enigmática.

Neste ponto, parei. Está tomada a decisão sobre a leitura. Acredito, talvez exageradamente, nos méritos da amostragem aleatória: comecei na página 186 e à página 197 tinha uma decisão tomada.

(O livro em causa é de Adelino Cunha, António Guterres - Os segredos do poder, Alêtheia, 2013)