9.11.13

Laura, um retrato.



Senhora Directora, o táxi já chegou. Desço já. Não desceu. Entrou em espera. Já estava desligado o computador, arrumada a carteira, ajeitado o cabelo ruivo selvagem sofisticado a dizer bem com os olhos verdes e a dar luz aos seios pequenos bem colocados numa figura alta e rendilhada como um monumento manuelino. Há minutos que, apesar da azáfama no gabinete, estava pronta para descer, mas não desceu. Entrara na fase um daquele ritual de espera que chegava sempre com dia marcado. A longa espera pelo fim de uma batalha. Senhora Directora, o táxi diz que se vai embora. Oh, homem, os táxis não falam; diga ao taxista que pago a espera. Estou a descer. Desceu. Os dois andares pelas escadas, apesar do elevador. Apesar do ligeiro descaimento do ombro esquerdo e, por ele, de todo o corpo, que lhe ficou, estrutural, da lesão na perna. A vontade de Laura manda mais do que a perna e a lesão juntas. Avançando bem direita, uma linha da terra ao céu, e não o contrário, mostra a vontade e esconde o descaimento do ombro. Até amanhã, Senhor João. Até amanhã, Senhora Directora.
Boa tarde, o senhor desculpe a demora. A espera paga-se, minha senhora. E já é boa noite. Seja. É para Santa Catarina, se faz favor. Sim, senhora. Olha pela janela e vê o cenário. Tanto trabalho aqui. E a Joana à espera. Que maçada: parece que vir a minha casa é passar férias e eu que nem férias tenho. Pronto, senhor, cinco euros a mais pela espera. Disse cinco mas deu dez. Com propósito. Obrigado, senhora, e boa noite. Boa noite.
Olá Joana, minha querida, está tão bonita, mas que é isso, está cheia de pêlo no casaco. Trouxe a Olívia, foi a Olívia. A Olívia? A gata? A Joana trouxe a gata? Atira a pasta para o sofá. Quer dizer: por cima do sofá, quase atingindo a Olívia. A Olívia, a Olívia, não lhe faças mal. Foi sem querer, querida. Eu ia lá fazer mal à Olívia, querida. Pois, pois, pois. Estava já tão cedo a começar a batalha. Vamos fazer o jantar, querida. É num já que se atira à tarefa, ninguém pode saber que Laura teve uma lesão na perna, Laura a super mulher já está a abrir o frigorífico, uma embalagem metalizada com abertura fácil, três embalagens plastificadas encetadas, dois boiões, tudo em cima da bancada, Laura abre as embalagens, as mãos fazem todos os gestos à velocidade e com a precisão de uma linha de montagem, como se Laura fosse uma máquina de preparar pratos rápidos, tempera rigorosamente o conteúdo das embalagens com o conteúdo dos boiões e com mais uma boa meia dúzia de pós e pequenos grãos que estão ali dispostos e que fazem a bancada de cozinha parecer um toucador requintado de uma dama complexa. Que ela é. Requintada e complexa. Tudo para o micro-ondas, uma mulher com sete mãos e olhos que chegam para tudo, sete minutos isto, três minutos aquilo, a setecentos e oitenta isto, a quatrocentos e cinquenta aquilo, está pronto, querida, vamos para a mesa, a Deolinda deixou a mesa preparada, vamos comer, temos fome as duas, não temos, querida. Tenho, sim. Não comemos bife com batatas fritas, pois não. Não, querida, aqui não se comem essas coisas. Comemos terrine de figos com chèvre fresco e chèvre meio curado, amaciado com iogurte natural, e depois comemos lentilhas com ovas de salmão e azeite de trufas. Mas eu não sei gostar de nada disso. Mas aprende, querida. É isso mesmo, aprende. É como dizem os franceses “je ne sais pas aimer ça”, “eu não sei gostar disso” quer dizer “eu não sou capaz de gostar disso”, quem não sabe não pode, quem sabe pode, e eu quero que a querida possa, por isso a querida tem de saber, a querida tem de aprender. Coma para aprender a gostar. Se o seu pai não lhe mostra o mundo, alguém tem de lho mostrar, não é querida.
Pronto, critiquei o pai e tive o prémio: não disse palavra o resto do jantar, e eu a perguntar-lhe pela escola, e pela amiga Maria, e pela Rosa, e pelo ballet, e que obrigação tenho eu de aturar esta miúda, e contra todos os meus princípios a perguntar-lhe pelos namoradinhos, e eu a ir buscar o melhor bolo de chocolate do mundo em fatia grande, e ela nada, tinha desligado, e eu a ligar a televisão connosco ainda à mesa, coisa que eu detesto e ela adora, e ela não cedeu, ela não cederia de maneira nenhuma, e estava decidido: eu tinha perdido mais uma batalha, tinha-lhe criticado o pai e ela castigava-me como sempre fazia não falando mais o resto do dia ou da noite. Não valia a pena. Desisti, pedi-lhe que se deitasse e fui lá dar-lhe um beijo de boas noites. Ela retribuiu, sempre em silêncio, com uns olhos zangados, que não tristes. Tem agora oito anos e desde os quatro que faz isto. Se fosse assim fácil calar toda a gente…
Vodka negra o resto da noite, isto é, até à uma, espalhada no chão da sala a mexer apenas as convoluções cerebrais, a ouvir a quinta sinfonia de Mahler interpretada pelo Uri Caine, uma magnífica gravação, moderadamente surrealista, que ouviu três ou quatro vezes, até desistir de permanecer acordada, de pensar na Joana e no pai dela. O que vale a espera quando não se está à espera de nada. Dormiu mal, dentro da cama mas fora de si, e acordou às oito horas do dia seguinte, quinta-feira, dia de reunião da administração do banco com todos os directores, usualmente às oito e trinta da manhã, acordou às oito da manhã com a Deolinda a chamar: Senhora Doutora, a menina vai sair, está lá em baixo o pai para a levar à escola, ela quer despedir-se. Anda cá, minha querida. Estou atrasada. Também eu, querida, tanto. Adeus, mãe, até para o ano. Esta espera acabou por ora.