20.6.10

Saramago, um espelho


Quando morre um grande, de repente todo um exército de outros mortais se lembra de o terem conhecido, admirado, ouvido, lido. Meio mundo, de um momento para o outro, tinha, com os seus próprios ouvidos moucos, escutado umas palavras muito sábias da sua própria boca. Outro meio mundo, também de um momento para o outro, descobre que o agora falecido tinha esta e aquela mancha nos bastidores da história pequena, paredes meias com a história grande. Há sempre uns funcionários do ódio que pensam aproveitar a ocasião para tentar ter a última palavra na conversa. Ridiculamente, não percebem que, empurrando na memória dos outros, apenas ficam mais enterrados na sua própria armadilha maniqueísta, uma heresia que há muitos séculos a própria ortodoxia católica teve de expurgar. E, indispensavelmente, há um cardume de peixes a ajeitar a gravata e a chegar-se à frente para ficar na fotografia, do velório ou do funeral. Este é o teatro da morte dos grandes, cuja parte invisível são os funcionários do protocolo a tratar do aspecto das coisas que devem menos ao aspecto do que a nossa cara barbeada em cada manhã. Para tudo isso os grandes foram - e são - grandes: para terem de suportar o nosso teatrinho.

A morte tem a grande vantagem de coar. Pelo pano da morte poucas cousas resistem a passar. Saramago, tão apenas por ter escrito dois ou três grandes livros, deixa umas pepitas que não passarão facilmente pelo pano de coar com esquecimento. Claro que, como cidadão, Saramago pertencia à cidade e, aí, o aplaudimos, citámos, criticámos, gozámos (como se pode ver neste blogue). Isso não nos impede, agora, de perceber que a morte depura, modifica o horizonte, entorna os líquidos e as areias ao ponto de misturar o nosso universo de outra maneira.

Saramago esteve exposto em câmara ardente - com óculos. Li que ouve quem estranhasse isso: "nunca vi um morto com óculos". Mas, afinal, para quem sem óculos não consegue ler nem escrever (como é o meu caso, a única coisa em que eu era parecido com Saramago), isso é o mais natural. E o mais humano, pois seria crueldade imensa aproveitar que Saramago esteja morto para, tirando-lhe os óculos, o impedir de ler e de escrever.

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últimos posts com referências a Saramago, antes da sua morte, neste blogue:
as lágrimas, Galileu e Saramago, Saramago e os monstros, outro Lara?, devem andar mal as finanças de Saramago, para não esquecer a unidade de esquerda, again, as guerras são dos homens, avaliação contínua, palavras, Ibéria, Saramago, Cavaco.