Aventámos anteriormente, aqui, a possibilidade de uma experiência de pensamento consistente em imaginar o que aconteceria se, durante quinze dias, não consultássemos o correio electrónico. (Acrescentámos aqui alguns ingredientes.) Essa experiência, na forma considerada, supunha um carácter temporário: depois desses quinze dias, tudo voltaria ao normal. Lidemos agora com uma variante mais fantástica: de hoje em diante, apenas consultarei o meu correio electrónico de quinze em quinze dias. De hoje em diante. E faço saber dessa minha intenção. (Não interessa a quem faço saber essa intenção: só estarão nesta versão da experiência aqueles que tiverem sido notificados.)
O que podemos imaginar que aconteceria neste caso?
Passaria a receber mensagens muito extensas, antecipando para meu putativo proveito todas as notícias deste mundo e do outro que deveriam normalmente ser-me comunicadas a conta-gotas nos quinze dias seguintes, ou se calhar num prazo alargado até ao mês por precaução contra as dificuldades das previsões a largo prazo?
Passariam a telefonar-me mais, como medida de contenção dos efeitos daquela decisão?
Colocariam bilhetinhos debaixo da porta do meu gabinete com versões impressas de mensagens electrónicas entretanto enviadas mas (supostamente) não recebidas?
Enviariam cartas pelo correio interno para o meu cacifo que eu só verifico casualmente?
Convidar-me-iam mais vezes para tomar café (ou para almoços simpáticos mas rápidos), podendo aí dizer algumas das coisas que não entravam agora no caminho electrónico?
E para não dirigir interrogações apenas aos outros, mas questionar também a mecânica interna do meu próprio agir e intencionar: quanto tempo duraria este comportamento, esta determinação? Quanto tempo poderia eu razoavelmente fazer durar esta experiência?
Até ao fim da minha vida?
Até deixar de haver correio electrónico?
Até à reforma (prazo, quem sabe, mais alargado do que o anterior)?
Até ao próximo terramoto em Las Palmas, altura em que quebro a minha regra para saber se o escritor português que se preparava para regressar de avião à pátria tinha ou não sido afectado e estava moribundo, morto ou a escrever?
Até ao próximo terramoto em Lisboa, quando a destruição quase completa das infra-estruturas retira objecto à minha determinação concernente ao correio electrónico?
Ou até ao dia de uma grande solidão, quando se revela imensamente refrescante poder oferecer um ramo de rosas a um quase desconhecido na rua por pura ternura pela humanidade, poder comunicar com toda a gente, especialmente com os que dizem coisas que importa ouvir, a ver se os entendemos, sem regras inventadas, impostas, ou herdadas?