26.3.07

"Olhares sobre a Filosofia"



A Jornada “Olhares sobre a Filosofia. A Filosofia na Escola, na Cidade e na Cultura”, organizada por Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Isabel Matos Dias e Adelino Cardoso, todos da comunidade filosófica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, teve lugar na passada sexta-feira, com sala apinhada todo o dia no Centro Nacional de Cultura.

Ideias sobre a filosofia que por cá temos.
Foram lá ditas muitas coisas interessantes e importantes. Não podendo reter todas, lembramos algumas. Adriano Moreira, questionando-se sobre o papel da filosofia no modelo político ocidental, pronunciou-se contra a “mercadorização” da cultura e defendeu que a sociedade do conhecimento tem de ser também a sociedade da sabedoria. Aí, citou Gandhi como tendo escrito “Lembro-me da minha ignorante e muito sábia Mãe”. João Maria André, filósofo da academia de Coimbra, falou como homem do teatro e de como as suas experiências de animação cultural (tais como teatro feito por e com pessoas sem abrigo) seriam outra coisa completamente diferente (e mais pobre) sem a capacidade de filosofar nessas vivências. Diogo Pires Aurélio lembrou os pecados que nos cercam culturalmente: a ideia de que a ciência (positivista) é a única forma de saber (a que chamou “modernismo”), a ideia de que tudo são pontos de vista e narrativas (a que chamou “pós-modernismo”), a ideia de que o saber só interessa se tiver utilidade imediata (a que chamou “utilitarismo”). José Manuel Curado, da Universidade do Minho, criticou o facilitismo e perguntou: porque é que a engenharia e a medicina (por exemplo) não sentem que a época esteja a ser injusta com elas e a filosofia se queixa tanto da sua cidade? E respondeu: porque se calhar não está a fazer o trabalho de casa.

Os filósofos desertaram da cidade?
Numa mesa com engenheiros e médicos (“Filosofia e Inteligibilidade Científica”) ficou a amostra de como poderia ser útil a filosofia frequentar mais as casas das suas filhas (as faculdades das ciências). Nesse contexto, o médico e filósofo Miguel Oliveira da Silva suscitou uma das questões mais candentes para a comunidade filosófica, se ela ainda tiver capacidade para se questionar: porque é que a filosofia não desce à cidade? Por exemplo, onde estiveram os filósofos no recente debate sobre o aborto? Onde estão os filósofos agora que se segue a questão da regulamentação da objecção de consciência?

A ferida na comunidade filosófica portuguesa.
Na sessão da manhã, Fernanda Henriques, da Universidade de Évora, pessoa com experiência dos meandros do Ministério e com memórias das guerras passadas, disse algo que todos os filósofos (ou, pelo menos, todos os professores de filosofia) têm de escutar com ouvidos de ouvir. Concorde-se ou não com tudo o que disse (e nós não concordamos), expôs o bezerro de ouro à fúria da multidão quando lembrou de forma muito tempestiva: há uma profunda cisão na comunidade filosófica portuguesa. E, acrescentamos nós, essa cisão, entre “analíticos” e “continentais”, é uma ferida que tem sangrado muito à volta dos programas do secundário. Fernanda Henriques teve a coragem de mostrar, pelo exemplo, que não podemos baixar o nível da discussão ao ponto de tratarmos os “outros” como incompetentes só por não concordarmos com eles.

A amálgama voraz.
Na sessão de abertura o secretário de estado Jorge Pedreira disse três coisas simples. Primeiro: contrariamente ao que tinha dito o representante do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, não há nenhum desinvestimento em filosofia do ponto de vista do seu peso disciplinar no currículo do secundário; nem esse peso é menor cá do que noutros países europeus. Segundo: o secundário é um grau de ensino com missões próprias, não serve apenas para aceder ao superior; assim sendo, não é razoável exigir que a filosofia seja disciplina obrigatória para todos os alunos como condição de conclusão do secundário; isso não acontece em nenhum país europeu. Terceiro: o ministério está aberto a que possa haver exame de filosofia para efeitos de acesso ao ensino superior. Pois bem: ninguém se deu ao trabalho de ripostar às questões levantadas pelo governante. Alguém repetiu acusações já sabidas, mas responder ao que ele disse, ninguém. Pior: ninguém teve o bom senso de dizer logo ali, claramente, à frente do governante e do público, que ele tinha manifestado abertura e essa abertura não seria desperdiçada. Porquê?
O pior do dia, que teve voz principalmente durante a manhã, foi a amálgama entre os problemas de um grupo profissional (professores de filosofia) e os problemas da filosofia na cidade. Quando um jovem, que jovem é, perguntou: “e estão os professores aptos a ensinar filosofia?”, mandaram-no perguntar a quem soubesse. Ora toma. Toma? Mas essa questão não interessa aos professores de filosofia?
Os professores de filosofia, e os filósofos, estarão sempre mal enquanto não descerem à cidade como filósofos para meter as mãos nas coisas difíceis, para se sujarem e perderam a candura académica. Enquanto estiverem mais preocupados com a quantidade de trabalho disponível para a classe docente não servem para ajudar a encontrar respostas àqueles desafios que lançaram, por exemplo, Adriano Moreira, Diogo Pires Aurélio ou José Manuel Curado. O que consome é essa amálgama voraz entre a corporação e o amor à sabedoria.