29.9.10

os cortes e as cicatrizes


Esta noite, o governo anunciou mais um pacote. Aumentar os impostos a que se não escapa e cortar na despesa em fatias que vão até ao osso. Claro que todos achamos tudo isto péssimo. Individualmente, ninguém aspira a receber menos e pagar mais. A esquerda que se reivindica ser mais esquerda do que as outras esquerdas já apontou a receita: vamos "resistir". Sem se aperceber de que andamos há décadas, precisamente, a resistir - coisa bastante mais fácil do que construir. A direita que andava a pedir cortes balbuciou (a que balbuciou) coisas ininteligíveis, talvez por saber que nunca teria coragem de fazer o que este governo agora fez: a máxima coragem que teve foi mandar cortar nos ordenados de alguns gabinetes de órgãos de soberania, mas tentando esquecer-se de outros gabinetes mais perto de "casa". As pessoas que pensam na sua vida começam a fazer contas: algumas centenas de milhares estão a calcular o corte, directo ou por via do efeito que isto terá no emprego do sector privado.
Não tenho competência para fazer uma análise ao que foi anunciado, mas não posso deixar de sublinhar alguns pontos.
Primeiro, nem sempre temos como resistir ao que consideramos iníquo: que "os mercados" sejam uns exploradores tiranos não nos safa de termos de contar com eles para ir tendo dinheiro para gastar. A menos que os portugueses prefiram que o Estado deixe de contrair dívida no mercado internacional para não ser explorado pelos mercados: deixa de fazer-se o que não há dinheiro para ser feito, tira-se directamente do bolso dos portugueses, ou como se faz? Há um preço a pagar pela crise, mas também pelo que fizemos (ou deixámos por fazer) anteriormente. Não podemos esmorecer no objectivo político de conseguir, designadamente no âmbito da UE, que o mercado internacional tenha mais travões à sua voracidade: mas não podemos, entretanto, esquecer em que mundo vivemos.
Segundo, mais tarde ou mais cedo o país vai perceber que não produzimos para a vida que o país leva: somos mais pobres do que pensamos e gostamos colectivamente de viver acima das posses - e não é "o Estado", esse espantalho em que projectamos todos os nossos pecados; somos nós, ou pelo menos a maioria de nós. A lógica dos "direitos adquiridos", que tem impedido uma lógica sustentada de reavaliação global da situação, tem-nos presos nas malhas da gloriosa herança que se esvai. Os sorvedouros continuam a ser demais e incompreensíveis. Vivemos num país onde um ministro das finanças deu às de vila diogo para não perder uma das suas pensões - mas continua a cantar de galo como se fosse uma luminária dos novos amanhãs que cantam.
Terceiro, há um aspecto dos "cortes" que tem ainda de ser muito melhor compreendido. Os funcionários públicos, em geral (pelo menos os que ganham acima de 1500 euros), vão pagar uma parte da factura. Mas interessa saber em que medida é que "a máquina" vai ser podada. Está na altura de retirar grande parte das máscaras que tornam obscuro o domínio do serviço público em Portugal. Está na altura de eliminar institutos e agências e todas as formas outras que servem funções que deviam estar na Administração de forma clara e directa. Aproveita-se para qualificar os recursos da Administração, reverter a tendência de esvaziamento que favoreceu a multiplicação dos pólos de poder derivado da Administração fora da Administração, reduz-se o leque de situações diferenciadas que deviam obedecer ao mesmo padrão. E está na altura de libertar o Estado da atracção fatal pelas parcerias público-privadas - que só complicam, por causa da confusão entre interesses diferentes (públicos e privados), que são legítimos quando não se confundem, mas são perversos quando se misturam; que facilitam que se faça o que não há dinheiro para fazer; que passam a carne do lombo para os "investidores" e deixam os ossos para o Estado. Está na altura de tornar o corpo dirigente da máquina pública mais imune às modas políticas, menos permeável à confusão de interesses, e fazer com que não reste nenhum departamento, nenhum serviço, nenhum instituto acerca do qual haja dúvidas quanto à sua real missão e contributo não redundante para a coisa pública. Para que se gaste o dinheiro a fazer o que é preciso fazer. Essa é, agora, condição essencial de legitimação dos esforços que se vão pedir aos portugueses. Porque a legitimidade é tanto mais importante quanto mais difícil é a situação.