16.3.12

um diagnóstico, não um projecto.


A filósofa Ana Paula Sena Belo escreveu um texto em que interroga alguns aspectos do meu livro “Das Sociedades Humanas às Sociedades Artificiais”. Agradecido pelo interesse, prometi dar elementos para uma reflexão conjunta. Vou fazê-lo – mas, por hoje, para não me alongar demasiado, tocarei apenas uma das questões centrais suscitadas. Proximamente completarei esta minha fala deste diálogo.

A chave daquele aspecto do texto da Ana Paula que mais decididamente quero esclarecer é a sua afirmação de que eu apresento, com as sociedades artificiais – ou, mais precisamente, com a ideia de que as ciências do artificial pretendem “criar o novo verdadeiro”, “criar natureza”, “fabricar novas criaturas que desafiem a sofisticação das que encontramos na natureza” – a afirmação, dizia eu, de que apresento esse cenário como “uma visão de futuro a realizar”. Pois, não. Eu não proponho esse futuro como algo a realizar. Não é um projecto, não é uma orientação, não é uma proposta que eu apresente ou defenda. É um diagnóstico.
Aquilo a que chamo “sociedades artificiais” não é um cenário tecnológico: é um cenário humano, uma possibilidade que nos está sendo aberta como humanos. É um cenário social, uma forma de nos organizarmos colectivamente que está a tornar-se possível. Não defendo que aproveitemos todos os aspectos dessa possibilidade, não demonizo todas as possibilidades que esse cenário pode contar. A minha reflexão sobre sociedades artificiais não padece de nenhum determinismo tecnológico: não estamos condenados a usar todas as máquinas possíveis, nem as máquinas nos impõem certos usas delas mesmas. O que quero é que se perceba o que está a tornar-se possível, para que possamos decidir sabendo o que estamos a fazer. Podendo, queremos ter robôs a cuidar dos nossos velhos? A brincar com as nossas crianças? Queremos ter máquinas de julgar em vez de juízes e juízas? Queremos ter máquinas a substituir humanos em posições onde se afectam recursos escassos e vitais, como centros de alocação de recursos de emergência? Essas respostas vão depender de nós, porque o “sim” ou “não” vão ambos ser possíveis do ponto vista técnico e tecnológico.

Num texto recentemente publicado (revista Via Latina, edição em papel 2012), penso ter clarificado este ponto. Por isso, passo a citar:
Do que fica dito, respigando alguns momentos da história recente do Artificial, bem como algumas das interrogações que suscita, parece ser possível que as sociedades humanas venham a convergir para sociedades artificiais. Estão em marcha as experiências e as ideias que podem fazer isso. Podemos olhar para as máquinas como agentes. Podemos atribuir às máquinas os significados que são nossos – e deixar às máquinas a sua digestão. Podemos tornar-nos peças de máquinas computadoras. A questão que falta responder é: precisamos disso? É daí que virá a nossa realização como pessoas, em sociedades mais equitativas e mais livres? O sonho de que a sociedade se organize como uma grande máquina, a ideia de que somos todos um molho de máquinas mais ou menos bem reguladas e controladas, é um sonho velho. Nestes tempos de crise, onde parece que não somos capazes de nos organizar numa comunidade política, de fazer face ao mundo como grupo civilizado, aumentam as escapatórias. Uma das recorrentes vias de escape é a ilusão de que isso se fará tecnicamente, é o velho sonho da cibernética: a sociedade é uma máquina, tratemos de organizar o respetivo controlo, deixemo-nos tratar como peças dessa grande máquina, num esquema determinista que substitui a política e a democracia pela tecnicidade.
(…)
Saber se aceitamos esse horizonte é uma escolha de navegação. Aquilo que nos interessa quando falamos de sociedades artificiais está nos humanos: que o sentido do mundo não seja completamente soprado para longe das pessoas concretas, do que elas concretamente pensam e fazem umas com as outras. As sociedades artificiais não são uma fatalidade, são uma escolha. Viver ou não viver é sobre o nosso ser biológico. Navegar, navegar para onde, é acerca de como nos projetamos no que está para lá da nossa pele, no mundo. Querer ou não querer navegar rumo a sociedades artificiais é uma das escolhas em cima da mesa hoje.

Voltarei daqui a dias a outros aspectos da fala da filósofa.