Fomos ver "A Morte de Carlos Gardel", o filme de Solveig Nordlund a partir do livro de António Lobo Antunes (ALA). Conta muito bem uma história, que o cinema não funciona se não contar, e conta sem ornamentos. Mas desenha ainda melhor um clima, a melancolia de uma vida que não fica à espera que lhe demos corda; aquele inferno que não resulta necessariamente do que fazemos, mas antes da física das pedras que rolam encosta abaixo sem qualquer intervenção nossa. E nós na encosta.
Em todo o caso, o melhor dest'A Morte de Carlos Gardel é a capacidade para reproduzir o universo do escritor, muito para lá do livro especificamente adaptado. O filme cria o concerto de vozes que ouvimos a pairar nos livros, vozes que entram umas dentro de outras e reverberam, a tal ponto que nem sempre distinguimos facilmente uma alma da outra. O filme mostra, à maneira de ALA, o tempo de uma vida passada que está sempre a invadir o presente dessa mesma vida, e a complicá-lo, a explicá-lo por vezes, como se a nossa cabeça nunca esquecesse nada e não nos deixasse a escolha de a limpar. (Como não deixa.) Vemos, em lugar de lermos, que as dores de uns e de outros se empastelam numa dor regional, onde se cosem percursos, tal como somos sempre crianças e velhos ao mesmo tempo, fora de tempo.
Noutro plano, que não cobrirá toda a obra de ALA, mas representa muito dos seus livros há anos, o filme mostra a omnipresença da doença, a doença com todas as pequenas manobras que ela requer, o modo como transforma tudo o que é simples e pequeno em decisões insuportáveis e prenhes de mundo. Aí, planícies plenas de personagens, imensas na sua banalidade, enraízam-se em nós como anzóis que nos puxam para dentro da história, e para baixo.
Sendo leitores de ALA, serão certamente capturados pela imensa compreensão que este filme tem da sua literatura. Vão ver, que este filme não se conta - como não se conta nenhum grande livro. A arqueologia antropológica exige que sujemos as nossas próprias mãos.