O BCP deixa de financiar clínicas com acordos com SNS. Leio esta notícia no Público de hoje (página 10, sem link no site para leitores à borla, tanto quanto percebi).
É assim a coisa. Há uma rede de privados com convenções com o SNS, permitindo que as pessoas façam exames de diagnóstico sem estar necessariamente à espera dos meios públicos. As pessoas pagam a sua parte, a clínica cobrará depois o restante ao Estado. Como o Estado paga sempre a más horas, o negócio seria insustentável para muitas clínicas, que teriam ficado insolventes se simplesmente esperassem sentadas pelos montantes a haver. Como o negócio dos bancos é o tempo, o BCP financiava muitas dessas clínicas, avançando-lhes dinheiro por conta dos créditos sobre o Estado. O BCP anunciou agora que vai deixar de fazer isso, porque o Estado acrescenta demora à demora e também não paga ao banco. Há esquemas parecidos envolvendo outros bancos, os quais podem também ir pelo cano abaixo. O ministro da saúde não tem respondido aos pedidos de audiência para aclarar a situação, que envolve a redução unilateral dos preços dos exames e do acesso.
Perante isto, Armando Santos, presidente da Associação Nacional de Unidades de Diagnóstico por Imagem, declara: "O Estado comprometeu-se a pagar as dívidas a 180 dias, mas nem está a pagar isso nem está a pagar os juros compensatórios." Parece, então, que não se trata sequer de um problema que tenha começado com este governo, que faz hoje 100 dias. É adequado ter esta perspectiva, para não reduzirmos toda a discussão a uma oposição simplista ao governo do momento: os problemas importantes vão sempre para além disso. Armando Santos acrescenta, depois, algo que merece profunda reflexão: "A rede de convencionados, que demorou 30 anos a construir, vai ser desmantelada em três meses." Pois. É preciso ter a noção de que as instituições da nossa vida colectiva demoram muito tempo a levantar, mais ainda a afinar, a "rotinar" (no bom sentido). E ter a noção de quão grande estrago pode ser feito em pouco tempo, desmantelando o que nos entregaram.
Da caixa de ferramentas dos que querem reduzir os direitos sociais faz parte a noção de "saque sobre as gerações futuras". Dizem eles: se o Estado gasta demais a proteger as pessoas de hoje, vai endividar-se, deixando a conta para pagar às gerações futuras. Estaríamos, pois, a explorar os nossos filhos e netos e bisnetos. Usam este argumento, como se não estivéssemos, ao mesmo tempo, a trabalhar para quem vem depois. É a falácia das gerações estanques. Acho que valia a pena, além de rejeitar esta falsa lógica de nos querer tomar por "prisioneiros do futuro", dar atenção também ao património legado pelas gerações passadas. Devia ser condenável, e condenado, que o legado das gerações anteriores fosse desperdiçado. Destruir em meses um ambiente institucional que demorou décadas a construir é desperdiçar um legado.
A facilidade com que se pode destruir um legado destes dá a medida da fragilidade das instituições. Esse é, de modo geral, um dos nossos grandes problemas como país. E é preciso pensar nisto para lá da dialéctica governo/oposição no momento.