Entre dois espectáculos de Pina Bausch, entre Nefés e Masurca Fogo, saltando Café Müller, voltamos ao terreno em que verdadeiramente nos sentimos. Ao teatro. Especificamente, ao Teatro da Cornucópia. Como todos os meus amigos sabem (quem não sabe isso de mim, não me conhece realmente), a companhia em que pontifica Luis Miguel Cintra preenche, sem os perigos das revoluções que também dela se alimentam, a minha fome de metafísica.
Desta vez é Don Carlos, Infante de Espanha, de Friedrich Schiller (1759-1805), tra(du)zido directamente do alemão e poeticamente recriado por Frederico Lourenço, que nos é dado ver. A história (pouco preocupada com a exactidão histórica) de um rei que é o imperador do mundo (dos juntos impérios de Portugal e de Espanha), mas que é servo do seu séquito: do seu séquito de ministros e outros ajudantes de governar, e do seu séquito de inclinações pessoais.
Não costumo aqui fazer grandes apreciações aos espectáculos da Cornucópia, até porque fico sempre um pouco cego e embotado no espírito crítico quando lá vou, tamanho é o gozo que lá me permito. Mas sempre direi que, desta feita, até actores ou actrizes que às vezes me parecem menos densos(as) a interpretar, me surgem capazes de um sopro que nos faz crer que são verdadeiramente as suas personagens. Por outro lado, apreciando habitualmente as encenações que lá nos propõem, noto desta vez um uso mais refinado, e mais poderoso, do silêncio em cena. Há um ou dois momentos em que se prepara, e depois se serve fervente, um silêncio de cortar a noite naquela sala despida e tão cheia.
Escreve Cintra na introdução ao programa, comparando outros tempos (os da peça) com os nossos tempos: "Este teatro tem outra grandeza e inventa almas. Sem mesquinhez. Almas grandes como nunca vimos mas queríamos ser. Fala-se do bem e do mal. Nós já só conhecemos a indiferença mascarada de tolerância." (ênfase nosso.)
Indispensável.