19.2.08

o primeiro-ministro esqueceu-se...

... de que nenhuma política com sentido estratégico pode ser auto-evidente.

Uma das razões pelas quais precisamos de democracia representativa é a necessidade de a comunidade tomar medidas estratégicas. Quer dizer: nem todos os efeitos sérios de uma decisão são imediatos, é preciso dar tempo às medidas para produzirem efeitos; por vezes, o que no dia seguinte parece bom revela-se desastroso anos depois, ou o contrário; uma comunidade responsável não pode responder apenas aos interesses imediatos dos que têm voz actualmente, precisando de preservar as condições de reprodução da própria comunidade para lá do horizonte visível da janela de cada lar. Essas são algumas razões para necessitarmos de democracia representativa: para poderem ser tomadas medidas estratégicas. Se não fosse isso seria admissível uma qualquer democracia directa (referendária, por exemplo) ou mesmo uma "democracia electrónica" (todos os dias de manhã, antes de sairmos para o emprego, vamos ao computador ligado à internet votar nos assuntos para decisão nacional nesse dia).

Uma das consequências da democracia representativa, se ela serve efectivamente para tomar medidas estratégicas, é que muitas decisões - que se destinam a ter os seus principais efeitos no futuro, e não amanhã ou depois - não são de compreensão imediata. Exigem reflexão. E requerem explicação. Para potenciar a compreensão, pelos representados, das medidas tomadas pelos representantes - é preciso explicar. E não apenas explicar que se está a fazer: também explicar porquê, para quê, o que é que isso vai significar na prática para todos. E explicar para onde vamos por este caminho.

Esteve nesse ponto, a meu ver, a principal falha da entrevista de José Sócrates à SIC ontem à noite. Explicou bem muito do que está a fazer. Mas explicou pouco quais os efeitos práticos que as medidas do seu governo devem ter na vida de cada um. No imediato e mais além. E qual o efeito prático que teria não tomar as medidas que se tomaram. Explicar, para dar apenas um exemplo, que sem a reforma da segurança social poderia não haver reformas no futuro para aqueles que hoje são jovens. Não conseguiu, desse modo, contrapor esperança a um certo pessimismo reinante. Por ter suposto, talvez, que as razões da sua política deviam ser transparentes para todos.

Só que, precisamente, nenhuma política verdadeiramente estratégica pode ser auto-evidente. E, por isso, em democracia representativa, esse pressuposto (aliás, um pouco arrogante) deve ser trocado pelo raciocínicio explícito, público e permanente, dialogado, acerca dos efeitos estrategicamente pretendidos com as medidas. E isso faltou a Sócrates ontem.