7.7.12

Nora, de Henrik Ibsen



Ontem à noite fui ver teatro: Nora, a partir da peça A Casa de Bonecas, de Ibsen, que estreou em Copenhaga em 1879 e estreou agora no Teatro Maria Matos, no âmbito do Festival de Teatro de Almada, pela companhia belga, de Antuérpia, tg STAN. Diz a história que foi um escândalo, porque apresenta, pela voz da protagonista, uma ideia sobre o que é o casamento, e o papel da mulher no casamento, que nessa altura, e durante muitos mais anos, era e foi completamente estranha às práticas e às teorias e às leis dominantes em praticamente todo o mundo (talvez devesse apagar dali aquele “praticamente”). E mesmo hoje, tirando a parte declarativa...
Postas as coisas assim, esperamos uma peça que arranque decididamente com uma feminista contra o mundo, a dar batalha e porta-estandarte? Podemos esperar, mas não é isso que acontece, de modo nenhum. Aliás, a forma como o verdadeiro problema de Nora é criado é muito habilidosa: durante grande parte do tempo a peça parece uma bastante convencional tragédia de equívocos, a Nora é girinha coitadinha, os espectadores são envolvidos numa complicação que ali se criou e começam a concentrar-se no que deverá ser a solução daquela história, que até soa como mais ou menos banal para um país nórdico do fim do século XIX. Estamos nós a ser levados ao engano, a pensar que a coisa se está a resolver lindamente, a achar aquilo tudo até um pouco convencional de mais – e Nora surpreende-nos, porque ela esteve a pensar na vida e no mundo enquanto nós estávamos entretidos com o que parecia acontecer, porque Nora estava a crescer ali à nossa frente de forma repentina, como um tiro na noite da sua cabeça que de repente percebeu que havia ainda muito para aprender. E a peça está toda na última meia hora, as quase duas horas anteriores eram só para nos pôr à vontade, porque à vontade somos mais bem embalados e vai ser maior o tabefe. A peça tem, pois, uma construção surpreendente.
A encenação, aparentemente simples, é muito forte. Todas as personagens estão por ali, em cima da zona de cena ou à volta, distingue-se bem quando estariam dentro ou fora da cena, mas tem um efeito relevante que as personagens que em cada momento estão fora estejam a presenciar activamente, à nossa vista, o que as outras fazem. É como se esse dispositivo tornasse dolorosamente presente a realidade dos ausentes, o mundo existe todo e não apenas aquilo que vemos em cada momento, as contradições não são apaziguadas pelo “longe da vista, longe do coração” – porque o resto do mundo que interessa está calado mas a olhar para nós a cada momento. Há momentos em que se cria uma tensão brutal em cena. Destaco dois momentos. Primeiro, quando Nora dança, dança, dança, com todas as suas forças e toda a sua sensualidade, precisamente quando a encruzilhada está a ferver naquelas vidas, quando o mundo vai partir pelas junções, quando Nora vai pagar um alto preço, tudo o indica, Nora dança e a música é tão quente como o seu sangue nesse momento. Segundo, há um momento em que não está ninguém propriamente em cena, todas as personagens estão à volta, à nossa vista mas fora, no espaço em que não falam, nem fazem, nem interagem – e no entanto a organização das coisas ali faz dessa ausência uma tensão palpável.
Uma palavra de destaque para a actriz belga flamenga Wine Dierickx, que faz de Nora, que vai construindo, enquanto a história relativamente convencional escorre pelo tempo, as peças suficientes da perplexidade que vai estourar no fim e dar a sensação “começou agora o que há para pensar”.
Só uma coisa me desagradou no espectáculo. Como a função era em inglês, havia legendas em português. Letras de tamanho grande, bem visíveis. Com a impecável dicção dos actores, as legendas não faziam muita falta – e estes, actores, brincaram várias vezes, explicitamente, com as legendas, como já vi fazer outras vezes. Nada de mais, quando o tom acompanha. Mas foi inadmissível que Frank Vercruyssen, no papel de marido de Nora, no diálogo final entre os dois, quando a tensão está ao rubro, no ponto crucial da peça, com Nora a tomar a talvez maior decisão da sua vida… tenha tido uma falha de memória do texto e tenha brincado com isso, chamando a atenção que faltavam as legendas do que ele ía dizer e que isso lhe estava a fazer falta, na brincadeira no meio de uma cena que não era de todo em tom de brincadeira. Essas coisas acontecem, mas foi de mau gosto conduzir a coisa como se o seu modo de fazer não fosse completamente contra a corrente do momento. Foi pena.
Em geral, muito bom. As cadeiras na bancada improvisada no palco do Maria Matos, um horror. Está lá até segunda-feira dia 9. Muito recomendável para quem gosta de teatro. Ainda bem que Almada é aqui tão perto e o seu magnífico Festival de Teatro cada vez mais invade Lisboa. Para que nem tudo sejam tristezas.