13.9.11

rasgar ou não rasgar


1. Numa coisa a situação que enfrenta o actual governo PSD/CDS é perfeitamente igual à situação que enfrentava o anterior governo do PS: a evolução da situação financeira, económica e social do país não depende exclusivamente da acção do governo. Nem sequer da acção do conjunto dos actores políticos, económicos e sociais portugueses. Nem apenas da acção de todo esse tipo de actores a nível europeu. Assimetricamente: podemos estragar tudo, há muito quem possa tomar decisões capazes de piorar a nossa situação, mas nada garante que, mesmo que façamos tudo o melhor possível, escapamos ilesos desta embrulhada. Pior: é impossível saber, agora, com segurança, quais seriam as coisas mais acertadas que poderíamos fazer nas actuais circunstâncias. Estamos dependentes de muitos actores cegos, que agem em função do que pensam (pelos critérios que aprenderam em teorias económicas muito mais falíveis do que eles julgavam) serem os seus interesses, mas que não fazem a mais pequena ideia do que resultará realmente do agregado de acções de todos eles. Estamos numa versão gigante daquele caso em que a maioria dos depositantes de um banco, levados por um rumor infundado, acorrem massivamente a levantar as suas poupanças e provocam uma tragédia para todos (a falência), tragédia essa que seria perfeitamente evitável se não fossem glutões a tentar defender excessivamente o que pensam ser o seu interesse individual. Essa característica – complexidade impossível de dominar razoavelmente se não forem criados focos de poder que diminuam a incerteza provocada pelo comportamento descoordenado das partes – é um traço essencial da actual situação.

2. A diferença, para pior no caso do actual governo, é que Sócrates tinha consciência de que Portugal só se poderia safar no quadro de uma estratégia europeia de reforço do euro, enquanto Passos Coelho, embalado pelo discurso de oposição que se destinava a chegar ao poder a qualquer preço, continua convencido que nos basta ser bons alunos e que não faz mal alinhar com as alemanhas que pensam que se safam lançando os países periféricos às hienas. Sócrates sabia que tinha de aceitar até certo ponto as exigências da UE e de outras instituições internacionais capazes de nos prejudicar ou de nos financiar, mesmo que essas exigências fossem parte de um ataque errado aos problemas, para não atrair tempestades suplementares sobre o nosso país. Esse desconto de tempo era necessário para tentar criar espaço às forças que tentavam compilar os tijolos de uma resposta europeia mais poderosa. A esquerda da esquerda defendia a estratégia de pôr a boca no trombone, dizer “não pagamos”, sem consciência que isso faria de nós imediatamente o bombo da festa. A direita, no quadro do seu assalto ao poder, fazia de conta que bastava uma injecção de liberalismo para sairmos cantando e rindo da tormenta. Infelizmente, a narrativa da oposição não passou com a chegada ao governo: graças à entrada em cena de académicos altamente competentes em vender ilusões liberais, a ilusão da nossa potência infinita ampliou-se. Se Passos Coelho não tivesse a magnífica companhia do Professor Gaspar, talvez já tivesse feito um esforço para pensar politicamente e tivesse percebido que assim não vamos lá.

3. Tal como as coisas estão, ninguém pode saber o que vai ser o futuro próximo. O risco de passarmos rapidamente a fazer parte de uma zona bastante pobre no contexto dos países desenvolvidos é um risco real. A destruição política da Europa, um longo período de perturbação da economia global, um período longo de salve-se quem puder a começar proximamente, eventualmente o regresso à possibilidade de guerras no nosso continente – tudo isso faz hoje parte de um cenário realista. Talvez seja possível evitar isso, se a Europa mudar radicalmente de atitude. Mudar radicalmente de atitude passa por esquecer imediatamente a ilusão de que as forças do mercado de algum modo resolverão o problema. Foram elas que criaram o problema e não haverá soluções espontâneas. Não queremos acabar com os mercados, mas, no seu conjunto, os mercados não estão a funcionar como parte sã da economia e da sociedade. Os mercados tornaram-se autofágicos e, junto com eles, vão comer-nos a nós todos. A única maneira de diminuir um pouco a balbúrdia e introduzir um pouco mais de coordenação no sistema passa por dar um papel decisivo aos poderes públicos. Se os bancos não têm dinheiro para injectar na economia e as empresas estão a definhar com a caixa seca, terão de ser os poderes públicos a fazer isso, com prioridades que correspondam ao bem comum. Não sei se os Estados nacionais ainda estão em condições de fazer isso. Provavelmente, isso terá de ser feito, com um grau de centralização sem precedentes, pela própria Europa. Mais precisamente, pela Comissão Europeia. Arranjando maneira de rapar o fundo ao tacho e, com o dinheiro que ainda existe, fazer com que a Europa volte a produzir, investindo em actividades criadoras de emprego e riqueza para o bolo de todos.

4. Ao mesmo tempo, os Estados nacionais, designadamente os que estão a aplicar Memorandos de Entendimento, não podem parar de pensar e limitar-se a seguir a cartilha como se o mundo de hoje fosse o mesmo de ontem. Não defendo que Portugal escolha desafiar a comunidade de emprestadores e desfraldar a bandeira do rasganço do Memorando, de ânimo leve. Bem sabemos que não nos convém nada atrair as raivas dos mercados: por muito irracionais que eles sejam, eles podem prejudicar-nos gravemente. Mas, nos bastidores, serenamente, usando as instituições para aquilo que elas devem servir, é preciso começar a pensar que não podemos fazer grandes disparates só porque um belo dia assinámos o Memorando. Por exemplo, para lá das questões ideológicas, parece certo que privatizar, nas actuais condições, o que o Memorando quer que privatizemos, será desbaratar património nacional. Mesmo os que não vêem os riscos dessas privatizações para a nossa capacidade de gerir o nosso país, devem ver que vamos deixar cortar dedos que nos farão falta para tocar viola. E nem é preciso dizer à UE e ao FMI que essas alíneas do Memorando são uma forma de saque insuportável: basta dizer-lhes que, de momento, é mau negócio. Isto quer dizer que devemos afrontar os emprestadores rasgando os nossos compromissos? Não; quer dizer que o mundo mudou muito desde então, e que muita coisa que já era velha ontem – está hoje definitivamente podre e a cheirar mal. E que queremos ocupação mais estimulante do que sermos nós a cavar a nossa própria sepultura.

5. Tudo isto, bem entendido, sem esquecermos que também tivemos culpas na força com que a crise nos apanhou. Tivemos, quer dizer: Estado, bancos, empresas, famílias, pessoas. E que não nos safamos desta sem esforço. Mas que o esforço seja para sair do buraco, não mero remexer na terra para ficarmos ainda mais enterrados.

6. Precisamos de política, precisamos de políticos. Capazes de juntar e de separar. De juntar as forças de todos, de separar as águas.