21.5.07

A ditadura da economia (1/3)


Um dos problemas das sociedades ocidentais contemporâneas é a ditadura da ciência da economia: uma forma ideológica segundo a qual tudo na vida deve ser visto e pensado numa óptica económica. A partir de hoje, e nos próximos dois dias, dedicamo-nos a uma reflexão que nos parece pertinente para esse tópico.


Os economistas Uri Gneezy e Aldo Rustichini investigaram uma possível forma de resolver a seguinte situação: os pais falham com alguma frequência a obrigação de ir buscar os seus filhos ao infantário até às quatro horas da tarde, desrespeitando uma norma claramente anunciada e prejudicando pelo menos um dos educadores que tem de ficar para lá do seu horário à espera do último dos atrasados. A solução proposta consistia em multar os pais atrasados – e essa solução foi testada num infantário em Israel. Geralmente os atrasos não eram superiores a meia hora. A multa introduzida aplicava-se cada vez que os pais chegassem com um atraso superior a dez minutos e o pagamento fazia-se por acrescento ao pagamento mensal. O valor da multa era fixo e não proporcional ao atraso. O resultado desse sistema foi… que os atrasos começaram a aumentara logo que a multa foi introduzida e continuaram a aumentar: passado pouco tempo os atrasos mais do que duplicaram. A experiência durou vinte semanas e ao fim de algum tempo a multa foi abolida, mas o nível de atrasos não voltou a baixar. Porquê?


Uma explicação possível era que a multa tinha um valor relativamente baixo: um pai que chegasse atrasado todos os dias só pagava no fim do mês mais um sexto do preço normal. Sem prejuízo de que outro tipo de multa (mais elevada e progressiva) poderia conseguir efectivamente dissuadir os atrasos, neste caso essa explicação não explica nada: antes da introdução da multa a penalização ainda era menor (era inexistente) e os atrasos eram mais baixos.


Gneezy e Rustichini (2000) apresentam duas explicações possíveis. Uma explicação assenta na noção de “contrato incompleto”. Como em muitas outras situações que enfrentamos correntemente, também naquele caso nem todos os aspectos dos deveres e direitos das partes em relação estavam esclarecidos. Não era claro como deviam os pais lidar com a impossibilidade de excluir absolutamente qualquer atraso (um atraso pode sempre acontecer, mas “quantas vezes” e “por quanto tempo” era outra questão), nem era claro o que faria o infantário se os pais chegassem atrasados com frequência. Os pais sabiam que tinham alguma margem (o infantário tinha uma maneira organizada de garantir sempre a guarda das crianças), mas acreditariam que para lá do limite de tolerância alguma coisa desagradável podia acontecer (a criança poderia não ser aceite no ano seguinte?). A introdução da multa transmite uma informação aos pais acerca da parte do contrato que estava apenas implícita: a multa é o pior que o infantário pensa fazer neste caso. Esse perigo não é assustador para os pais e eles sentem-se livres para chegar atrasados quando isso lhes for conveniente. Essa mensagem parece continuar válida mesmo quando a multa é abolida, razão pela qual o comportamento dos pais não volta ao padrão anterior. Uma explicação deste tipo assume o egoísmo e a racionalidade das partes em presença.


Os autores propõem, contudo, outra explicação possível. O que se passou foi uma mudança na percepção da situação social e das normas que a regem. Inicialmente, os pais consideravam que os educadores faziam a simpatia de dedicar um tempo de trabalho extra, não pago, que ia para lá do horário de trabalho, para que as suas crianças ficassem em segurança apesar do atraso dos pais. A dedicação dos educadores devia ser correspondida com o respeito dos seus horários por parte dos pais. Com a introdução da multa, o tempo extra passa a ser entendido como uma serviço: é um serviço que se paga, tal como se paga o tempo normal. A multa é vista como um preço. O mecanismo “moral” (respeitar os educadores e a sua dedicação) foi substituído pelo mecanismo económico (se o tempo suplementar tem um preço, atraso-me sempre que necessário e pago o respectivo preço). O fim da multa não altera a percepção: trata-se apenas de um serviço, embora seja agora gratuito. Gneezy e Rustichini, invocando outro estudo que eles próprios tinham realizado anteriormente, consideram que a diferença entre ter preço ou não ter preço não pode ser reduzida à questão do montante: mesmo um preço ridiculamente baixo muda a percepção da situação e, consequentemente, muda o regime de incentivos aplicável.


(Amanhã e depois continuamos aqui com uma reflexão sobre este caso.)


(A nossa atenção para este caso foi provocada pela sua menção no livro Freakonomics, de Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner.)


REFERÊNCIA BIBLOGRÁFICA

(Gneezy e Rustichini 2000) GNEEZY, Uri, e RUSTICHINI, Aldo, "A Fine Is a Price", in Journal of Legal Studies, 29(1), pp. 1-17 (2000)