No espaço do PS, multiplicam-se os apelos à reflexão, à mesma cadência que se multiplicam as acusações de que a eleição rápida de novo Secretário-Geral significa que não vai haver reflexão nenhuma. Multiplicam-se as responsabilizações instantâneas de um dos dois anteriores SG, Pedro Nuno Santos e António Costa, cada um deles tomado como bode expiatório consoante as preferências. E progride a caricaturização do, até agora, único candidato a próximo SG do PS, José Luís Carneiro, classificando-o como o mais à direita que o PS alguma vez teve (se vencer). Queria deixar algumas notas sobre essas questões, porque respostas apressadas podem prejudicar o que há a fazer.
1. Eu também gostaria de poder começar, imediatamente, uma reflexão sobre tudo aquilo que o PS tem para refletir (até já fiz, noutros textos, breves recenseamentos de tópicos indispensáveis dessa reflexão). Gostaria de ter um ano à nossa frente, um ano calmo e simples, para podermos pensar em conjunto tantas coisas que temos andado a adiar pensar há demasiado tempo. Só que o PS não é um clube de reflexão, que reflete no que lhe apetece quando lhe apetece. O PS é um partido político e o seu ritmo não pode ignorar o país. Digo isto em dois sentidos.
Primeiro, vamos ter eleições autárquicas e elas impõem-se, não apenas porque temos de as vencer, mas porque elas são, para lá de uma disputa por votos, um massivo momento de reflexão acerca da vida de cada território, de diálogo enraizado entre cidadãos e candidatos a seus representantes no poder local, focado em soluções concretas para os problemas específicos de cada freguesia e de cada concelho. Umas eleições autárquicas pressupõem uma reflexão largamente distribuída por todo o país, acerca de todos os assuntos sérios da democracia nos territórios – e é justo que não queiramos roubar às pessoas esse momento de reflexão, sobrepondo-lhe as nossas reflexões internas de um partido. Não sou dos que pensam que os nossos autarcas têm sempre razão, mas creio que, neste ponto, estão com a razão do seu lado.
Segundo, no plano nacional, o PS tem de se definir, sem demora, acerca do seu lugar na legislatura que está prestes a começar: não ganhamos sempre e não podemos transformar as nossas derrotas em bloqueios institucionais, o regime constitucional inaugurado com a Constituição de 1976 está em causa e esse é um perigo maior, temos de assumir as nossas responsabilidades como partido fundador da democracia – e essa reflexão é urgente e tem de concluir numa decisão estratégica sem tardança, não pode esperar um congresso, tem de se fazer mobilizando todas as nossas forças disponíveis e os mecanismos institucionais que não foram interrompidos.
Há, portanto, reflexão a fazer. Mas não é uma reflexão em abstrato, desligada das tarefas imediatas e inadiáveis. Num partido político responsável, pensar não é um luxo de laboratório; a reflexão faz parte da ação e dela não se pode desligar. Podemos começar pelo que é mais urgente e, depois, continuar com a reflexão mais alargada, sobre tantas matérias que já esperaram décadas para serem pensadas. Não podemos é fazer de conta que o país espera por nós: vamos começar a refletir por onde temos de começar a agir. Pessoas e partidos habituados a não terem qualquer peso nas responsabilidades nacionais podem refletir o que quiserem e quando quiserem, independentemente do que se passa na vida de todos: mas, felizmente, o PS não se pode dar a esse luxo da irrelevância.
2. Uma coisa é certa: a crítica fácil, e lapidar, a Pedro Nuno Santos, ou a António Costa, tomando-os como bodes expiatórios das nossas dificuldades atuais, pode resolver problemas biliares, mas é politicamente insana. Ambos cometeram erros, claro está. Só que clamar por reflexão e, no minuto seguinte, já ter conclusões dessa “reflexão”, condenatórias deste ou daquele, mostra alguma inconsistência. Se alguém pensa que adotar uma linha política de dar tudo a todos ao mesmo tempo seria, ou teria sido, a solução para todas as dificuldades do país e dos portugueses – esse alguém está, então, a subscrever a governação em modo de campanha eleitoral que foi aquilo a que se dedicou a AD nos últimos meses. Eu não vou por aí.
3. A caricatura de José Luís Carneiro que alguns andam a fazer merece uma palavra. Não fui apoiante de José Luís Carneiro no passado. Neste processo, não sou admirador da forma rápida como quis ocupar o terreno e condicionar outros candidatos. Não posso, contudo, recusar que tem legitimidade para se candidatar – não apenas por já o ter feito no passado, mas porque qualquer um poderia avançar se assim o entendesse. (E ainda pode.) E porque tem cumprido as suas obrigações de animador de uma corrente dentro do partido, algo que muito valorizo, na medida em que sou um entusiasta do pluralismo que sempre animou o PS.
Provavelmente, não estarei de acordo com JLC em várias matérias de orientação política. Será exato dizer que me considero bastante à sua esquerda em várias questões da nossa responsabilidade como socialistas. Mas a um líder do PS não cabe substituir o partido, não cabe dominar, cabe-lhe, sem deixar de ter a sua marca pessoal, ser o rosto da pluralidade, da diversidade, da complexidade. Representar a síntese de opiniões diferentes, de territórios diferentes, de gerações diferentes, de atividades diferentes – e ser um multiplicador, nunca um divisor. A etiquetagem facilita a descarga emocional, especialmente quando se quer transferir a angústia para os ombros de alguém, mas não faz avançar o barco. Foi bastante prejudicial para o PS que alguns tivessem passado o tempo a dizer que PNS era radical, quando ele mostrava todos os dias moderação. Querem fazer o mesmo com JLC, se ele chegar a SG, rotulando-o assim, sem mais, de direitista? Ou isso será apenas aliviar a carga do que temos para resolver, sem fazermos a nossa parte construtiva?
4. A obrigação de cada partido é saber responder a cada conjuntura política com a sabedoria dos seus valores, dos seus princípios, da sua história – sem se deixar levar por ilusões voluntaristas.
Em 2015, a solução maioritária que permitiu desalojar o governo da troika, que impediu a continuação da governação radical de Passos Coelho e Paulo Portas, teve como protagonista António Costa, mas teve um sinal público de possibilidade pela voz de Jerónimo de Sousa, então SG do PCP. O PCP não deu esse passo por gosto, porque a maioria do PCP nunca perdoou ao PS que nos tivéssemos sempre guiado pelo princípio “pode haver democracia sem socialismo, mas não pode haver socialismo sem democracia”. O PCP deu esse passo porque tinha mesmo de evitar, ao país e a si mesmo, a continuação do programa radical de Passos e Portas (e tinha de evitar o esmagamento do movimento sindical).
Hoje, é o PS que está confrontado com a necessidade de saber identificar o essencial e agir em conformidade. O essencial é evitar a destruição do regime democrático-constitucional resultante da Constituição de 1976. Evitar a subversão constitucional. Não tem qualquer valia política continuar a ter na mira umas futuras eleições antecipadas, para tentar reverter fora de calendário as opções da AD, quando o país precisa de estabilidade para evitar o contínuo sobressalto de que se alimenta a extrema-direita e o PS precisa de tempo para se renovar. A meu ver, o PS deve dar estabilidade política à direita democrática, desde que, com isso, garanta o regime constitucional e impeça mais um brinde eleitoral à extrema-direita.
Neste quadro, entender-se-á que eu diga que é deslocado etiquetar José Luís Carneiro “de direita” por ele estar, se bem o compreendo, a explanar a estratégia política que referi acima. O PS perdeu as eleições, um partido democrático não pode ter a tática de andar sempre a querer repetir eleições a ver se o resultado muda com a mera passagem do tempo. É preciso dar tempo para que se vejam as consequências das erradas opções do governo da AD – e isso não se faz com eleições todos os anos.
Repito: temos de responder à conjuntura política cientes do essencial e sem nos deixarmos levar por ilusões voluntaristas. Em 2015, isso pôde fazer-se com um acordo com os partidos parlamentares à nossa esquerda, porque ganhámos espaço e tempo para dar respiração ao país. E isso não significou que tivéssemos, de repente, deixado de ter divergências grandes com o PCP e o BE. Em 2025, dar estabilidade ao país, permitindo que governe uma coligação da direita tradicional, não significa que nos tenhamos convertido às suas soluções: significa que respeitamos a alternância e que ela nos dará o tempo que precisamos para sermos alternativa.
5. Quem me conhece não se espantará por eu não ter hesitado em mencionar aqui o PCP. Nunca escondi que fui um entusiasta da Esquerda Plural, aquilo que alguns ainda chamam Geringonça. E não me arrependo, porque foi uma solução política que devolveu a esperança ao país e que o país apoiou, maioritariamente, com espírito aberto e vontade de avançar (embora esteja por fazer mais essa reflexão: o que levou ao fim dessa fórmula de governação, algo que ainda nunca debatemos de forma estruturada e consequente). E aproveito para deixar esta nota final: é pena que alguns aproveitem a confusão deste período pós-eleitoral para repetir falácias há muito desmontadas acerca dessa fórmula política, querendo atirar a explicação de todos os males do mundo para a decisão de governar com o programa do PS e com o apoio dos partidos à nossa esquerda, como iniciámos em 2015. Querer fazer deste momento, indiscutivelmente difícil, um tempo de requentado ajuste de contas com debates passados (requentado, quando nada avança de novo, apenas repisa), além de incorrer em simplismo e reducionismo analítico, é sinal perturbador de que há quem continue a olhar mais para trás do que para o caminho que temos para andar.
Vamos lá ultrapassar isso e encetar a caminhada.
(A ilustração deste apontamento foi produzida por IA, segundo pedidos do autor do texto.)
Porfírio Silva, 28 de Maio de 2025
