1. Na qualidade de diretor dos órgãos de imprensa partidária do PS (jornal Acção Socialista e revista de reflexão política Portugal Socialista), proposto à Comissão Nacional para essas funções pelo Secretário-Geral Pedro Nuno Santos (funções nas quais tive sempre o seu apoio e nenhuma tentativa de interferência), integrei o Secretariado Nacional por ele liderado e, nessa medida, integrando também a Comissão Política Nacional, sou, no coletivo, corresponsável pelos últimos tempos do partido (mesmo não tendo sido deputado neste período, o que me retirou alguma capacidade de intervenção). Como sempre fiz no passado, assumo o coletivo e procuro agir com lealdade institucional nas funções que desempenho, não andando pelas rádios e televisões a minar o trabalho dos meus camaradas, procurando exprimir as minhas opiniões nos órgãos que integro. Do mesmo modo, a intensidade da minha militância depende apenas das minhas capacidades e da oportunidade, não depende da ocupação de cargos políticos nos órgãos da República, como demonstrei no último ano. Agora, tendo o Secretário-Geral anunciado a sua demissão, e abrindo-se um novo período decisório no PS, entendo dever dar abertamente o meu contributo sobre várias matérias que considero relevantes para a democracia portuguesa e para o papel do partido na República Democrática.
2. Primeiro está a democracia. A democracia não é só o voto. A democracia não se faz de estarmos todos de acordo quanto ao rumo das políticas públicas. A democracia vive da garantia dos direitos fundamentais de todas as pessoas, do Estado de Direito, do respeito uns pelos outros e da preservação dos mecanismos institucionais que valorizam a diversidade e o pluralismo como dinâmica central de uma sociedade aberta. Para que isto seja uma realidade exige-se uma consequência: para um partido da esquerda democrática, a aceitação da alternância no poder faz parte do cuidado pela democracia. Consequentemente, a nossa ideia de República Democrática passa pela capacidade de trabalhar com a direita democrática. Mesmo quando – e especialmente quando – ela possa ter a tentação de cair nos braços da extrema-direita. Se é verdade que o PSD atravessa uma fase da sua história que não faz jus aos sociais-democratas que fazem parte do seu património, o PS tem obrigação de tentar manter a direita democrática agarrada à Constituição de 1976, que é a Constituição que nos trouxe até à República Democrática, que é uma Constituição progressista que nunca impediu nenhuma fórmula política governativa escolhida pelo soberano que é o povo. Como disse várias vezes nos órgãos políticos do PS, a persistente incomunicabilidade entre o PS e o PSD é um problema para a democracia portuguesa. Embora seja justo reconhecer que o PSD tem mais culpa do que o PS nessa situação, tarda o momento em que o próprio PS reconheça com clareza que a incomunicabilidade entre PSD e PS é um problema que tem de ser resolvido se queremos preservar a democracia de Abril. Não é suposto que tenhamos os mesmos projetos políticos: é suposto que saibamos colocar a saúde da democracia portuguesa acima das diferenças.
3. Se a democracia é do povo, o tempo da democracia tem de ser o tempo do povo e o tempo do povo não pode ser atropelado pelo tempo das apressadas elites político-partidárias. Devia ser claro para qualquer responsável político que a sucessão quase anual de eleições legislativas acabaria num terramoto. Marcelo ou não viu isso ou quis isso. O PS tinha obrigação de ter mais juízo do que Marcelo. A anterior maioria absoluta do PS deveu-se, não à convicção esmagadora de que os socialistas eram espetaculares, mas, em grande parte, à necessidade que o eleitorado sentiu de travar a instabilidade e “deixá-los governar”. Não havia nenhuma razão para pensar que, desta vez, o povo já queria mandar Montenegro para casa passados apenas uns meses do seu governo. Todas as políticas erradas que o PS denuncia (e denuncia bem) só serão como tal julgadas pelo povo quando os seus efeitos se fizerem sentir na vida das pessoas. Esse julgamento não se fará por mero efeito do nosso anúncio. O juízo sobre as políticas da AD será feito pelo povo quando o povo sentir as consequências, não por efeito do nosso discurso – nem da nossa pressa. Montenegro cometeu o erro de prometer resolver tudo em poucos meses, mas o povo sabia que isso era demagogia e dava o desconto: deixa-o tentar, que “os outros” tão-pouco resolveram. É pura ilusão pretender que as pessoas tenham, graças à nossa denúncia, uma antecipação de dois ou três anos das consequências das políticas em curso.
É preciso dar tempo ao tempo. Desta vez, o PS descurou tudo
isso. A sucessão infernal de campanhas eleitorais é o paraíso dos
populistas, que só sabem berrar e estão, por natureza, sempre em campanha.
Esperemos que desta vez se perceba isso e não se caia de novo na tentação de
querer antecipar calendários eleitorais que fazem parte das regras da democracia.
A governação de António Costa também foi atropelada pela manipulação dos
calendários eleitorais, com a inefável ajuda de uma justiça com muitas aspas, para
gáudio do inquilino de Belém ao serviço da sua família política, e disso podemos
com propriedade queixar-nos. Não devemos é tentar replicar o processo, porque
nós sempre fomos o partido que mais fielmente defendeu as instituições democráticas
– e assim devemos continuar.
4. O foco do PS é o país, não é o país que deve esperar pelo
PS. Todas as eleições são momentos de encontro entre os políticos e o país, mas
é responsabilidade dos políticos pensarem primeiro no país. Aproximam-se umas
eleições autárquicas. As autarquias são o terreno onde se joga muito da vida
concreta das pessoas. A razão do sucesso autárquico do PS é a capacidade dos
nossos autarcas responderem às pessoas município a município, freguesia a
freguesia. Muito do que se joga nos territórios pode ser prosseguido com
relativa autonomia da agenda política nacional, razão pela qual o PS pode
voltar a focar-se nos trabalhos autárquico, dando-lhe agora a prioridade que nunca
devíamos ter descurado. Para que isso se possa fazer, não faz sentido que o
PS entre num processo eleitoral interno em paralelo com as autárquicas. O PS
é uma instituição, tem órgãos em funcionamento, tem procedimentos – tem,
portanto, os meios para ser dirigido, interinamente, deixando para depois das
autárquicas a reflexão (que precisa de tempo) e a decisão maturada sobre o rumo
a seguir nos próximos anos. Agora precisamos de foco nas autárquicas – sem
distrações. Depois precisamos de reflexão, debate, decisão com sentido de futuro
– sem pressa e sem concorrência de um ato eleitoral decisivo.
5. A democracia passa por tempos difíceis. Infelizmente, não
é só em Portugal. Seria miopia política pretendermos ter soluções bem
identificadas – quando nem o diagnóstico está claro. Dizer que a avalanche
populista é culpa deste ou daquele líder em particular, é estultícia. Pretender
que são apenas as dificuldades materiais das pessoas comuns que as transformam
em extremistas (tara de certa esquerda que teima em explicar tudo em última
instância pela economia), é tese desmontável pelo estudo das realidades
eleitorais. Ignorar as zonas cinzentas das batalhas culturais – onde querermos
converter toda a gente aos padrões de comportamento das elites urbanas dá tão
mau resultado como ignorar a importância da educação democrática básica nos
bancos da escola – tem sido consequência de um debate político sempre dominado
pelos que berram mais alto, o que é a própria negação do debate. Precisamos de
caminhos onde haja mais povo-povo na política.
Ora, o primeiro instrumento do povo na política são os
partidos democráticos. Como sou militante socialista, isso questiona-me,
antes de mais, acerca do PS. Infelizmente, há dirigentes do PS que têm em pouca
conta o PS como coletivo, como instituição, como realidade social enraizada na
história da democracia portuguesa. Quer dizer, há quem veja o PS como um campo
de expansão de uma ou de meia dúzia de personalidades geniais. Mas a forma
apropriada, e democrática, de ver o PS é como a plataforma comum dos democratas
progressistas portugueses com vocação para construir soluções para as
injustiças e as insuficiências da nossa vida coletiva, com as pessoas concretas
tal como elas existem e com humanidade, sem exclusões.
Não falo de aparelho, nem de aparelhismo, no modo em que alguns
destratam assim os dirigentes socialistas, a qualquer nível que se considere
(nacional, federativo, concelhio, local), porque tenho em elevada consideração
muitos dirigentes, em todos os níveis de decisão partidária, que prejudicam a
sua vida pessoal em serviço dedicado ao coletivo partidário e às suas missões
na sociedade. Mas, sim, há no PS um certo aparelhismo em fenómenos que estão
identificados e temos de erradicar:
- os órgãos colegiais do partido têm de funcionar, com
regularidade, a todos os níveis, servindo substantivamente para estudar e
preparar as decisões a tomar e não apenas para ratificar aquilo que o “chefe”
(a qualquer nível) já decidiu em “petit comité”;
- as escolhas de
representação democrática (candidatos a autarcas ou a deputados, por exemplo)
têm de ser guiadas para potenciar a capacidade de intervenção em nome de todos,
não podem ser instrumentos de luta interna (não faz sentido escolher um
candidato em vez de outro com a “encomenda” de ganhar assim posição privilegiada
para uma disputa interna numa federação ou numa organização autónoma, não faz
sentido afastar um candidato a presidente de câmara com potencial vencedor por
ele não apoiar este ou aquele numa disputa interna);
- não faz sentido subordinar a representação exterior do partido
a mensagens táticas que não respeitam a permanência e a pluralidade do partido
(como a inédita substituição de todos os eurodeputados numa eleição, em completa
incompreensão das condições de eficácia da delegação no parlamento europeu)
- não faz sentido tentar penalizar camaradas por delito de
opinião;
- não faz sentido afastar autarcas em funções de uma
recandidatura porque “escolheram mal” numa eleição interna (ou recorrendo a
misteriosas “sondagens locais” como cortina de fumo) …
Erradicar o aparelhismo-grupismo tem de vir a par com uma
renovação do próprio funcionamento do PS: como é possível não termos um secretário
nacional, de primeiro plano, para as questões do trabalho, que dialogue
quotidianamente com os sindicalistas socialistas? Ou não termos um forte secretário
nacional para as autarquias? Como é possível não termos falado de educação durante
toda a campanha eleitoral (e de termos desprezado o trabalho interno anteriormente
realizado nessa frente)? Como é possível não falarmos de alterações climáticas numa
campanha eleitoral e depois queixarmo-nos de que a juventude se desinteressa de
nós? Como é possível não termos nenhum trabalho organizado com os milhares de
socialistas envolvidos em dinâmicas associativas por todo o país?
Aparentemente, empobrecemos a nossa tradicional diversidade
de pensamento, as nossas raízes em inspirações diversas, e acabámos por nos
acomodar a uma espécie de centralismo político que só valoriza as dinâmicas
sociais empurradas pelo Estado, desvalorizando as dinâmicas de iniciativa das
pessoas e das comunidades (deixando, desnecessariamente, o campo livre aos
liberais de direita, quando há espaço na tradição socialista para as dinâmicas
de iniciativa de baixo para cima).
Para mudar a política, é preciso mudar o partido. Mas,
mudar o partido não passará, de modo nenhum, por desvalorizar o que fizemos
antes. Reconhecer os erros, passados e presentes, é necessário. Avaliar o que fizemos
e o que deixámos por fazer. Mas isso não é compatível com apontarmos apenas os
erros dos outros camaradas, implica reconhecermos também os nossos próprios erros
e não desvalorizarmos os erros de alguns só porque pertencem ao “nosso grupo”. E
nunca deixarmos por mãos alheias os créditos do que fizemos pelo país, no
passado mais antigo e, também, no passado mais recente. Não voltemos a cometer
o erro de, por tática interna, menosprezar o muito que este partido deu ao
país, em cada um dos nossos governos, em cada uma das nossas lideranças.
6. Só é vencido quem desiste de lutar. Só é vencido quem
desiste de votar. Só é vencido quem desiste. Os militantes do PS farão com que
a esquerda democrática não seja vencida de forma permanente. Estamos na luta,
como sempre estivemos. Mas, cuidado: os que se apressem a avançar para a liderança
do PS, por favor, não acreditem, ingenuamente, que basta navegar nas derrotas
do Secretário-Geral cessante para ganhar o partido e conseguir renovar o PS. Aos
putativos candidatos apelo a que não sejam complacentes consigo mesmos, não se
sintam contentinhos com o que temos, porque o que há a fazer é muito profundo.
Duro. Lento. Difícil. Mas indispensável. Salvar a democracia exige renovar o
partido, na sua essência de movimento popular. E, aí, todos teremos uma palavra
a dizer.
Porfírio Silva, 19 de Maio de 2025