1. Aparentemente, camarada José Luís Carneiro, serás candidato único a Secretário-geral do PS e, nessa medida, serás o próximo líder do nosso partido. Desejo-te sorte, porque bem precisamos – tu e nós – para os anos difíceis que estamos a viver. (Se estou enganado quanto ao lote de candidatos, o que te digo a ti diria a qualquer camarada nas tuas circunstâncias.)
Nos anos que levo de vida política ativa (tirando uns anos na juventude, a minha vida partidária de militância assídua recomeçou em 2014 e, tendo voltado a ser eleito deputado desta vez, ela continuará ainda por algum tempo), fiz o que pude para assumir a minha pertença ao coletivo partidário (o que implica nunca esquecer que a minha opinião pessoal não pode sempre prevalecer e que devo evitar torpedear as decisões coletivas com comportamentos individuais) e, simultaneamente, nunca me deixei acomodar ao líder do momento (sem nunca fraquejar na lealdade aos órgãos a que pertenci e na solidariedade ao conjunto plural dos socialistas, e também sem nunca virar a cara ao debate político franco e frontal dentro da minha agremiação, nunca renunciei a dar a minha opinião, ora nos órgãos internos, ora no espaço público, e também nunca deixei de tentar refrear a autocomplacência entre nós, porque a autocomplacência é sempre o principal inimigo de um político democrático que não queira ficar míope).
A minha atitude como militante e como dirigente socialista (creio que serás, disto, testemunha, pela proximidade em que trabalhámos na direção do partido) sempre se pautou por dois valores: um padrão de comportamento pessoal e uma ideia acerca do que é o Partido Socialista. Pessoalmente, não prescindo da minha liberdade pessoal e trato sempre de a viver em conjunto com um profundo sentido de fraternidade com aqueles que estão no mesmo barco na luta por uma sociedade mais justa. Quanto à ideia que tenho de partido, resumi-a na introdução a um dos meus últimos livros, quando escrevi: “o PS é sempre o mesmo: uma heterogénea coligação dinâmica de progressistas e democratas de muitas sensibilidades convergindo para um processo sempre inacabado de tornar Portugal um país melhor para viver, especialmente para aquele que vivem do seu trabalho” (in Esquerda Plural, Legislatura e Meia, Âncora Editora, 2024, p. 9). Quanto ao padrão de comportamento pessoal, já não tenho idade para o mudar – e não desejo mudar nesse ponto.
Quanto à minha conceção de partido, ela implica que, na minha visão, cada líder, trazendo, indubitavelmente, a sua marca pessoal, tem, também, a missão de encarnar a pluralidade e a diversidade do partido. Sempre achei um erro que, volta e meia, apareça alguém a pretender ser “o novo PS” – porque essa pretensão acaba por se traduzir numa tentativa de culpar alguém (um líder anterior) pelos males do mundo, o que, como se tem visto, não garante renovação nenhuma e serve apenas de gáudio e arma para os nossos adversários. Isto para dizer que espero de ti, além do mais, que não caias no erro de aliviar o fardo que carregarás atirando as culpas do céu e do inferno para o Pedro Nuno Santos e/ou para o António Costa.
2. Parecerá, com o que acabei de dizer, que quero evitar o debate no partido sobre os sucessos e os fracassos passados? Nada disso. Defendo precisamente o contrário. Se entendo a opção por uma candidatura única à liderança, dada a proximidade com as autárquicas e a necessidade de olharmos rapidamente para fora, confesso que tenho a seguinte preocupação: esta circunstância não nos autoriza a voltarmos a “andar para a frente” sem fazer uma avaliação fundada sobre o nosso anterior período (especialmente quando governámos). Fazendo-se rapidamente a eleição do próximo líder, ficas “com a faca e o queijo na mão”: podes querer evitar os debates de fundo e avançar com as tuas próprias ideias acerca do nosso caminho coletivo, que certamente terás. Mas podes, em alternativa, criar, a seu tempo, os momentos e os meios para uma avaliação estruturada do que fizemos no último ciclo governativo da nossa responsabilidade: o que fizemos bem (e foi muito), o que fizemos mal por más escolhas políticas (que também existiu) e o que fizemos mal porque servimos mal nas nossas funções (que foi, a certa altura, um fator de peso). Tendo tu sido um ministro importante de António Costa, e seu Secretário-geral Adjunto, compreenderás a importância dessa reflexão estruturada.
Poderão, alguns, acreditar que essa avaliação é fácil e rápida. Não concordo: algumas opções políticas tiveram contextos complexos e não é evidente onde esteve exatamente o erro de avaliação feito na altura. Três exemplos: porque demorou tanto tempo a acelerar a nossa aposta na habitação; porque demorámos tanto tempo a perceber a dinâmica que estava a ter a imigração; porque não conseguimos ser nós a resolver a questão do tempo de serviço dos professores e salvar a nossa missão com a escola pública. É fácil fazer tiro ao alvo e dizer que a culpa foi deste ou daquele ministro (em geral, culpar o ministro das finanças resulta bem como retórica política, mas, frequentemente, a explicação é curta para as necessidades). Mais difícil é aprofundar a análise e fazer uma avaliação séria e que nos dê lições para o futuro. Nesta matéria, o que espero que consigas fazer é promover no seio do PS um debate sério acerca do que temos a aprender com os sucessos, e também com os insucessos, do nosso último ciclo governativo – e que garantas que essa avaliação não seja nem autocomplacente nem cínica.
3. Não sei se seres candidato único a Secretário-geral era a situação desejada por ti ou se terias preferido disputar a liderança num contexto mais diversificado. Eu, pessoalmente, não sou entusiasta de congressos unanimistas, nem de congressos onde as diferenças passam nas entrelinhas. Eu teria preferido um congresso com alternativas: não consigo, nem quero, evitar a minha preferência por cenários de debate aberto, de competição cooperativa. Como o “povo socialista” é plural, eu também prefiro congressos plurais. De qualquer modo, isso agora não interessa nada, porque com a realidade é que temos de trabalhar. Ora, uma vantagem de seres (eventualmente) candidato único é, se tu quiseres, poderes enfrentar com clareza os problemas internos do nosso partido. Como, para seres eleito, não precisas de apascentar os caciques, podes fazer coisas que nos evitem estarmos tanto a olhar para dentro e para as pequenas lutas internas e que nos incitem coletivamente a abrir mais o partido ao pulsar da sociedade, virar o partido para as dinâmicas sociais emergentes, criar pontes entre o fora e o dentro, dar atenção às razões que têm aqueles que nos consideram ultrapassados, cuidar da diversidade que está lá fora (pessoas diferentes, gerações diferentes, territórios diferentes, condições sociais diferentes, expectativas diferentes, necessidades diferentes – não podem ser tratadas sem curar dessa diferença). E, se, afinal, não fores candidato único, este desafio não deixará de importar ao nosso futuro como corrente política progressista.
Creio que sabes, pela tua experiência anterior, que é preciso cuidar do partido. A todos os níveis. Criar mecanismos para valorizar os militantes, mas que travem aqueles que vivem apenas de controlar as estruturas e impedir o acesso. O PS não pode ser uma coleção de exércitos a trabalhar para senhores feudais (desculpe-se a figura…).
Temos de fazer confluir, nesta instituição que é o PS, duas dinâmicas diferentes: organização e rede. A organização tem sempre alguma rigidez, necessária para garantir eficiência e controlo democrático. Um bom exemplo de organização interna é a Associação Nacional de Autarcas do PS, que, com o tempo, consolidou formas permanentes de coordenação entre autarcas socialistas. Cada autarca continua a ter a sua autonomia de ação, no seu território (e sabemos como os autarcas são ciosos dessa autonomia), mas encontram-se, de facto, organizados e isso reforça e potencia a sua ação, através do apoio mútuo baseado na experiência de cada um. Não deveríamos pensar em dar ferramentas desse tipo a outras dimensões da nossa ação política? Por outro lado, precisamos de redes, porque precisamos de mais fluidez e mais adaptabilidade para reforçarmos a nossa presença em certos sectores da vida pública. O exemplo, que tu conheces por experiência, é a rede de “socialistas na educação”: nunca foi um departamento, nunca teve propriamente uma estrutura rígida, nem teve ação pública, mas permitiu manter o contacto, recolher e fazer circular informação, ouvir as pessoas, organizar debate interno (debate democrático, onde nem sempre se estava conforme com as opções governativas), estudar coletivamente algumas matérias. Esta componente “rede” é, em alguns casos, um bom complemento a formas mais tradicionais de organização e permite alimentar mais diversas militâncias reais. Permite alimentar a militância que não está necessariamente interessada em conquistar o poder nas estruturas, mas está interessada em fazer avançar os nossos valores na sociedade.
Tenho a esperança de que te interesses por este investimento em injetar vida nova numa organização que está demasiado agarrada ao plano interno e um tanto distraída de variadas dimensões da vida que se passa lá fora.
4. Em momentos de viragem precisamos de pensar, também, ideologicamente. Pensar ideologicamente não é pensar rigidamente. Não apelo a nenhuma conceção fixista dos valores do socialismo democrático. Só que, creio, é na compreensão do caminho que andámos para aqui chegar que temos de encontrar forças para atualizar os nossos valores e renovar o nosso compromisso com os portugueses. Pensar ideologicamente não é repetir frases feitas que ecoam na nossa memória das lutas passadas. Nem deverá ser perder a memória! Muito menos perder a nossa identidade! Deverá ser, isso sim, um olhar de novo para os nossos valores e olhar para o mundo e buscar as condições reais para deixarmos uma marca efetiva da nossa luta na vida das pessoas e na vida da sociedade.
Publiquei, recentemente, o livro História das Declarações de Princípios do Partido Socialista (Âncora Editora, 2025). Consegui apresentá-lo no Porto, na Federação do PS, antes desta crise política, e, agora, vou continuar um esforço de o levar aos socialistas de outros pontos do país. Os momentos de evolução dos princípios declarados foram sempre momentos de ganhar balanço para o que faltava fazer. Desde 2002 que a nossa Declaração de Princípios permanece inalterada. Concordarei que, no essencial, os nossos valores de socialistas democráticos não mudaram. Contudo, cabe perguntar: não seria tempo de pensarmos outra vez no modo como nos apresentamos ao mundo? Não terá o mundo, desde 2002, mudado o suficiente para precisarmos de refletir de forma estruturada acerca do nosso bilhete de identidade fundamental? O pragmatismo é necessário se o entendermos como a capacidade para distinguir quais das nossas ideias não estão a funcionar no mundo real, e para perceber porquê e atualizá-las, e quais das nossas ideias funcionam bem quando levadas à prática, e continuar a aplicá-las e a melhorá-las. Espero, camarada José Luís Carneiro, que o pragmatismo (que, se bem te entendo, é algo que prezas) não dispense a capacidade para levar o PS a pensar ideologicamente nesta nova encruzilhada em que nos encontramos. O PS e o país.
Porfírio Silva, 23 de Maio de 2025
