As Aventuras de Huckleberry Finn é uma obra de Mark Twain publicada ainda no século XIX (1884 no Reino Unido, 1885 nos Estados Unidos), narrando as aventuras que vivem, juntos, um miúdo (o próprio Huck Finn, narrador) e um escravo fugitivo (Jim), ao longo do rio Mississípi e nas suas imediações.
Embora a posição do narrador na história seja fundamentalmente determinada pelo facto de ser um miúdo em fuga do pai abusador, a principal questão social que atravessa todas as peripécias, e que emerge uma e outra vez na consciência de cada uma destas personagens centrais, é a questão da escravatura. Há, em princípio, uma proteção mútua entre o miúdo branco e o homem negro, mas a sua relação de entreajuda não é linear, sendo continuamente marcada por um conflito interior entre a moral dominante (própria do regime esclavagista) e a relação humana entre duas pessoas concretas que, não estando completamente embrutecidas pelas taras da sociedade, partilham uma ilha de sentido contra o resto do mundo: o escravo, se for apanhado, provavelmente verá chegar o fim dos seus dias; o miúdo fingiu o seu próprio assassinato, para desencorajar que o procurem; nas suas diferentes fraquezas, cada um precisa do outro para sobreviver no mundo hostil. O miúdo Huck pensa por vezes que é seu dever fazer com que o negro volte aos seus donos. Jim oscila entre a amizade pelo miúdo e a radical oposição entre a condição do branco e a condição do escravo. As hesitações do miúdo, bem como as do escravo, contribuem para a reflexão acerca da hipocrisia social face a questões tão fundamentais como a da unidade da espécie humana, questão essa que atravessa toda a narrativa.
Note-se que, quando o livro foi publicado, a escravatura já fora oficialmente abolida há cerca de 20 anos nos EUA, depois de terminada a Guerra Civil Americana, da qual tinha saído vencedor o Norte, industrializado e antiesclavagista, e vencido o Sul, rural e esclavagista. Mesmo assim, não só a prática social estava longe de refletir essa condição legal, como os Estados do Sul, passado um período de contenção, legislaram no sentido de uma feroz discriminação dos negros, baseada na ideologia da supremacia branca, impondo a segregação racial e a violência institucionalizada, exacerbada pela ação de grupos como o Ku Klux Klan, que gozavam da complacência das autoridades e de muitos “cidadãos cumpridores”. A exploração económica e a exclusão social prolongavam a escravatura. A ação do livro decorre quando a escravatura ainda era legal, permitindo extremar as peripécias para o núcleo central da questão da escravatura como sistema legal (embora se notem, nas opções das personagens, a situação diferente nos Estados do Sul e nos Estados do Norte).
Uma das características literárias mais salientes da obra constitui, ao mesmo tempo, um dos elementos mais marcantes do ponto de vista social escolhido por Mark Twain. O tom é permanentemente coloquial, refletindo as condições sociais dos protagonistas. Huck é um miúdo pobre, fracamente escolarizado, vivendo numa sociedade rural e sem uma pertença familiar propriamente educativa. A forma como fala reflete tudo isso. Pelo seu lado, Jim é um escravo, é negro, e fala como um escravo negro. (Encontra-se aqui, precisamente, uma das grandes dificuldades no trabalho de tradução desta obra.) Outras personagens usam dialetos locais, mas o seu peso no ambiente global do texto é menos importante.
Sendo, superficialmente, uma obra de aventuras, As Aventuras de Huckleberry Finn pode ser lido, precisamente, como um livro de aventuras para adolescentes (uma espécie de continuação do também famoso As Aventuras de Tom Sawyer, do mesmo autor, sendo que Tom também aparece neste livro). É, contudo, ao mesmo tempo, oportunidade para pensar coisas mais sérias, submersas na incrível sucessão de peripécias mais ou menos rocambolescas.
Li quando era um rapazinho (não me lembro se antes ou depois de ler Um dia na vida de Ivan Denísovitch, de Aleksandr Soljenítsin) e voltei agora a ler As Aventuras de Huckleberry Finn. Agora, passadas nem sei quantas décadas, foi um exercício de preparação para ler outra obra, recente: James, de Percival Everett. Não é que não se possa ler esta sem ler aquela, mas, creio, seria uma pena desperdiçarmos essa oportunidade de ver a funcionar um exemplo de intertextualidade tão explicitamente produzido.
Jim é o diminutivo de James. O James do James de Everett é o Jim d’As Aventuras de Huckleberry Finn de Twain. Só que tratar um adulto apenas pelo diminutivo é uma forma de o infantilizar – coisa que tipicamente se faz a um escravo – e James não aceita esse truque da linguagem. Aliás, a operação central deste James, enquanto espelho d’As Aventuras de Huckleberry Finn, é uma volta que se dá à linguagem. Em James, James só fala “à preto” quando os brancos estão a ouvir. E apenas por ser isso que os brancos esperam – ou acreditam que é “natural”. James, a comportar-se como ele sabe, fala com mais correção do que Huck Finn. Mas esconde isso. James, em James, sabe ler. E lê. A malandrice que faz ao branco seu dono é ler-lhe os livros da biblioteca. Lê os autores do Iluminismo. Sonha com Voltaire e com Locke. Conversa com eles em sonhos. Sabe escrever e o seu crime central é apoderar-se de um lápis de um branco – e, também, de alguns livros. Aliás, o narrador agora é James, já não é o miúdo branco. Como os leitores podem ser brancos, e o escritor é negro, o autor exagera um bocadinho na cena em que se explica como funciona a dupla forma de falar de James, porque não fazia falta ser tão explicativo, nós iriamos perceber – mas talvez o autor nos esteja a dizer, aos leitores brancos, “tenho de vos explicar isto, porque os vossos preconceitos podem não vos deixar perceber” …
A obra de Twain leva uma grande volta no fim. A obra de Everett também. Mas isso não vai ser contado aqui, porque não queremos estragar o prazer da leitura. As peripécias continuam a ser muitas. Algumas das peripécias em James são as mesmas das peripécias em As Aventuras de Huckleberry Finn, mas contadas de outro ponto de vista. Além disso, algumas das peripécias em James são novas, porque o miúdo branco e o escravo nem sempre estiveram juntos e, portanto, não viram sempre a mesma coisa. De qualquer modo, há, entre as duas obras, uma intertextualidade fortíssima, muito mais forte do que é habitual nas intertextualidades que encontramos em tudo o que lemos (a intertextualidade não está só na cabeça de quem escreve, está também na cabeça de quem lê). E esse dispositivo faz andar a obra e leva-a a percorrer o seu caminho.
A meu ver, a questão central deste James é a exposição do mecanismo perverso da naturalização. A naturalização do que não é nada natural. Naturalizar um fenómeno social é tratar como dado pela natureza das coisas algo que não assenta na natureza, mas no funcionamento da sociedade. Naturalizar a escravatura é tratar esse fenómeno social, algo que depende das nossas escolhas coletivas, como se ele resultasse simplesmente da natureza das coisas: como se a pretensa superioridade dos brancos e a pretensa inferioridade dos negros (ou dos índios, por exemplo) fosse um dado biológico, um dado da natureza, algo que estaria inscrito na materialidade do real e não nas nossas escolhas traduzidas na organização da sociedade. A naturalização do que é social é uma máscara habitual para disfarçar a iniquidade: naturalizar a condição dos pobres é tratar os pobres como se eles fosse naturalmente inferiores e, portanto, menos merecedores de viver uma vida boa – em lugar de reconhecer que a pobreza resulta da má organização da sociedade e da nossa aceitação cúmplice dessa ficção; naturalizar a exploração das mulheres é tratar as mulheres como se elas fosse “geneticamente determinadas” para fazer certas coisas diferentes daquelas que a sociedades distribui aos homens como papel social.
Em James, o sinal mais visível do erro da naturalização está no dispositivo do “falar à preto”: os brancos acham que os negros falam de uma determinada maneira porque essa é a sua linguagem, embora a personagem James só fale “à preto” com esforço, por decisão sua, para se conformar exteriormente ao estereótipo. E, nesse dispositivo artificial, acaba por cometer o erro, involuntário, de se esquecer de “falar à preto” e falar com maior correção do que certos brancos. Contudo, há um outro dispositivo, mais episódico, mas mais explícito, que vai diretamente ao cerne da questão da naturalização, da falsidade da naturalização. É o caso do grupo de cantores “Virginia Minstrels”.
Os Virginia Minstrels foi um grupo de canto e comédia, criado em 1843, em Nova Iorque, formado por cantores brancos que se pintavam de preto, para parecerem negros, cuja atuação se baseava em fornecer pretensas imitações de negros a cantar e a atuar. Podiam oferecer versões de verdadeiras canções do repertório negro, tal como podiam interpretar versões adulteradas ou pretensas canções negras, destinadas a agradar aos estereótipos dos preconceitos dominantes acerca dos negros. Historicamente, houve também grupos de negros que participavam na mascarada, reforçando o preconceito de base.
Ora, esse grupo aparece em James, integrando um homem de “raça” negra cuja fisionomia o fazia passar por branco (as aspas em “raça” devem-se ao facto de, cientificamente, a humanidade não se dividir em raças humanas, havendo, apenas, a “raça” humana). Ora, a personagem James é adquirida pelos Virginia Minstrels e é pintado de preto para parecer negro – quando ele já era negro… para aparecer como um branco disfarçado de negro. Em especial, todo o capítulo 1 da Parte 3 da obra lida detalhadamente com esta questão, que dá ocasião para uma série de peripécias narrativas. Sendo que, no essencial, obriga a pensar no erro da naturalização de fenómenos sociais, algo que permanece de atualidade na crítica social fundamental.
Vale a pena ler James, de preferência tendo ainda alguma memória d'As Aventuras de Huckleberry Finn.
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(Não me lembro em que edição li, pela primeira vez, a obra de Mark Twain. A edição que possuo de As Aventuras de Huckleberry Finn foi adquirida muito mais tarde, é da coleção Geração Público – Livros que Ajudam a Crescer, editada há muitos anos pelo jornal Público. É uma edição descuidada, cheia de erros tipográficos tontos e facilmente evitáveis com um mínimo de cuidado na revisão. Infelizmente, já senti isso em outros volumes da mesma coleção. A edição portuguesa de James é da Livros do Brasil e é uma edição esmerada.)
Porfírio Silva, 10 de junho de 2025
