Anda por aí muita gente a fazer figas para que o PS se estatele no meio desta crise.
Claro que a maioria dos que assim desejam evitam dizê-lo claramente. Vão antes pelo lado dos rodriguinhos.
Fazem previsões de que o PS aceitará isto e aquilo, sendo "isto e aquilo", sem excepção, enormes traições à pátria. Podiam expressar a vontade política de que o PS não aceite o inaceitável (para usar a expressão do "monstro inominável", que o PS não pegue na pá para ajudar a cavar mais no buraco). Podiam elencar "linhas vermelhas" que exemplificassem o que o PS nunca poderia aceitar. Seria, esse, um exercício saudável: contribuir para o debate público acerca daquilo que o PS tem de obter, para o país, nesta crise. Mas não: fazem previsões de traição do PS. Também fizeram a previsão de que a moção de censura dos melancias ia entalar o PS (o que, aliás, só podia ser o seu, dos melancias, real intento), mas não me parece que tal profecia tenha encontro com a história. Não importa: as previsões de traição do PS são o próprio objectivo das previsões: falar do PS como traidor.
Acusam o PS de se ter sentado à mesa com a direita. Esquecendo que o PS exigiu, contra o requisito presidencial, que fossem participantes todos os partidos parlamentares. E esquecendo que foram o PCP e o BE que se auto-excluíram (aliás, legitimando a questão: será que o PCP e o BE se auto-excluíram só para poderem concentrar melhor os seus ataques no PS?). E que o PS só aceitou conversar a três depois de a esquerda da esquerda ter desistido deste debate. Cavaco e a esquerda da esquerda estão a voltar a montar a barraca da coligação negativa?!
Culpam o PS por ter entrado num exercício macabro montado por Belém, onde o objectivo do presidente politiqueiro é entalar o PS no buraco da austeridade. E, com uma lógica quase tão científica como a lógica do xamanismo, entendem que o PS devia simplesmente facilitar a hipocrisia política do presidente: pondo-se de fora, era isso que o PS faria. Sim, porque se o PS simplesmente dissesse "não", Cavaco e a direita diriam com facilidade que os socialistas fogem com o rabo à seringa quando se trata de concretizar as críticas de oposição em termos propositivos de governação. O objectivo da direita (de mão dada com um presidente partidário) é insistir na ideia de que não há alternativa - e os que defendem que o PS devia ficar em casa, defendem que o PS devia facilitar essa estratégia desesperada de Cavaco e seus aliados.
Suponho que, seja conhecendo-me pessoalmente, seja lendo o que escrevo com alguma regularidade, ninguém acreditará que eu sou um ingénuo crente nas virtualidades políticas de Seguro, o actual SG do PS. Só que, mesmo assim, parece-me bizarro que se parta do princípio de que o PS fará tudo mal, mesmo contra factos que deveriam falar pelo PS. Em boa verdade, já voltámos ao tempo em que atacar o PS (mesmo que seja com a desculpa de atacar Seguro) se tornou a prioridade das prioridades para uma certa esquerda. Uma prioridade que se atravessa mesmo à frente da sua oposição à direita. Doença que as últimas notícias instanciam bem: PCP exclui PS de "contactos, reuniões e encontros" para discutir a situação política.
Será que não há, também do lado do PS, responsabilidades neste estado de coisas do lado da alternativa? Claro que há responsabilidades do PS. Desde logo, porque vozes de peso no PS têm assinalado que gostariam de ver acordos com a direita, dando a entender, por vezes, que não há fosso nenhum entre, por exemplo, o partido de Portas e os socialistas. Olhando mais ao longe: o PS continua a evitar o desafio histórico de abrir um diálogo profundo, aberto, sem preconceitos e também sem amarras, com as forças da esquerda parlamentar. O PS tem tido medo dos riscos dessa aposta, talvez por fraqueza, talvez por convicção - como se o mundo estivesse para ser salvo por pequenas acomodações. Os dirigentes do PS continuam sem perceber que a questão do diálogo à esquerda não é uma questão de paixão ideológica, mas, antes de mais, uma questão de sustentação social de qualquer tentativa de mudar o estado de coisas. O PS tem, pois, as suas próprias responsabilidades - mas o sectarismo militante da esquerda da esquerda tem feito muito bem o seu trabalho de dar álibis às direcções do PS para esconderem a mão dos gestos do diálogo necessário.
As lágrimas de crocodilo, mesmo quando os crocodilos sejam bons actores, não deixam de ser, pelo menos quando pensamos em política a sério, um truque desonesto e que não está à altura do actual sofrimento dos portugueses. O que precisamos do PS - que, nestas circunstâncias, se torna um último reduto de responsabilidade patriótica - é que seja firme e só aceite acordos que contenham uma mudança substancial da posição de Portugal face à crise. Porque, se não há milagres, é preciso mudar muito a nossa voz no mundo: deixarmos de ser o idiota do marrão a fingir de bom aluno, que engole toda a porcaria que os experimentalistas lhe colocam no prato, e passarmos a assumir colectivamente o que não aceitamos, o que queremos - e o estrago que estamos dispostos a fazer à Europa se a Europa optar por nos afogar. Esse é o elemento de mudança que só o PS pode trazer: a direita já mostrou que a sua receita é a submissão, a esquerda da esquerda está entregue à estratégia da deserção e à manobra eleitoral de assestar baterias no PS. Aliás, o comportamento do BE e do PCP é, desde já, uma primeira vitória de Cavaco: a iniciativa presidencial encontra no PCP e no BE aliados objectivos no seu principal alvo: entalar o PS. Neste sentido, as lágrimas de crocodilo são, apenas, o mais recente acto da peça intitulada "a coligação negativa".