1. Então, parece que o PS está unido, em torno de António José Seguro, que saiu da Comissão Nacional com o "Documento de Coimbra" (título fantástico, de última hora, porque o proto-programa chegou lá com o título "Portugal Primeiro", a mesma palavra de ordem com que Passos Coelho ascendeu à liderança do PSD em 2010). O SG, em conferência de imprensa, jurou a pés juntos e muito hirto que o documento é seu e muito seu, pese embora ter ouvido muita gente para o elaborar (de passagem, como quem não quer a coisa, mencionou António Costa como um dos escutados, certamente com muito esforço da sua paciência, já que há muitos anos que Seguro não tem paciência para ouvir Costa). Já dei uma rápida vista de olhos ao documento (que não é ainda uma moção ao congresso do partido, nem um programa de governo, mas o ponto de partida dessas outras fases) e vejo lá novidades importantes relativamente ao que o SG tem andado a dizer quanto à natureza da crise - mas tenho a certeza que AJS escreveria lá o que fosse necessário para não deixar margem a uma candidatura de AC. (Não sejam maldosos, leitores: isso pode perfeitamente ser creditado à flexibilidade política de AJS e à sua vontade de abrangência.)
2. Pelo que tenho ouvido, pelo que sei da poda e pelo que imagino, deve haver muito choro e ranger de dentes em certos sectores do PS por António Costa ter deixado António José Seguro sozinho em campo. Compreendo. Até porque eu, não sendo propriamente um "compagnon de route" de nenhum dos dois, vejo em AC mais capacidade e melhores ideias para liderar o país do que as que vejo em AJS. Basta ler e ouvir o que AC disse nesta semana e pouco de "crise da unidade". Têm razão os que dizem que não seria nada desonroso para AC tentar e perder. Certo; mas há outros ângulos para ver a questão.
3. A capacidade de um partido para se mostrar plural e fazer disso uma força, em vez de uma fraqueza, depende da forma como todas as suas vozes se mostram interessadas no exercício concreto da pluralidade. Com uma onda de dirigentes nacionais do partido a usar, de forma manifestamente concertada (e, portanto, autorizada ou encomendada pelo SG) a acusação de deslealdade para invectivarem os suspeitos do crime de discordância, o que se prometia era uma batalha campal sem prisioneiros (só mortos). Se Seguro tivesse dito "precisamos de um congresso esclarecedor, convido todas as correntes a apresentarem-se de peito aberto ao próximo congresso para debatermos tudo e todos até ao fim, porque isso é que é saudável e não há que temer as diferenças", se Seguro tivesse abordado assim o problema, teria aberto o caminho para uma real clarificação, sem prejuízo nenhum para o desempenho autárquico do partido e com grandes vantagens para as batalhas seguintes. Desdramatizar as diferenças e valorizar o debate. Mas não, não foi nada assim que a direcção do PS colocou a questão, preferindo afiar as armas e proferir gritos de guerra que lhe dessem vantagem táctica na guerrinha interna. Nesse contexto, o surgimento de qualquer candidatura alternativa arriscava, de facto, prejudicar o partido, numa altura em que a militância local está antes de mais nada empenhada em ganhar a freguesia ou a câmara. Um confronto civilizado entre Seguro e Costa, bem focado nas questões nacionais e não na mercearia, teria sido útil para o PS - mas esse confronto civilizado foi impedido pela direcção do PS, que empolou e distorceu o imperativo estatutário de fazer um congresso este ano para apresentar a coisa como uma exigência estapafúrdia da "tralha socrática". Neste contexto, poucas alternativas restavam.
4. Nesta altura do campeonato, AJS e os seus apoiantes que gritaram "deslealdade" devem estar muito satisfeitos com a operação. Está garantido que liderarão o PS até às legislativas e, muito provavelmente, até ao governo. O próximo ciclo no PS só começará depois da derrota do próximo governo do PS. (Cada ciclo acaba sempre com uma derrota, é claro.) Resta saber como correrá tudo isso. O país precisa que corra bem. É que a democracia não aguentará muito mais choques como aquele que estamos a viver actualmente, em que o povo descobre que os seus governantes não faziam ideia do que diziam quando estavam na oposição e se fartaram de fazer promessas que não tinham nenhuma aderência à realidade. As democracias não resistem a tudo: se o próximo ciclo for tão decepcionante como este, não podemos estar certos de que não frutifiquem tentações perigosas.
5. Entretanto, tenhamos esperança. Pode ser que Seguro mude e mostre ser capaz de fazer uma síntese das contradições do PS, virado para o futuro mas sem conceder ao PSD a errada análise das causas da crise, como tem feito até agora. (Nesse ponto, lendo o "documento de Coimbra", espero para ver como será a peça interpretada quanto for levada à cena.) Enquanto a Terra gira, em torno do seu próprio eixo e à volta do Sol, vou-me contentando com ser eleitor em Lisboa, cuja Câmara Municipal continuará a ser um bom sítio para mostrar o que é fazer política concreta a pensar nos cidadãos. Felizmente, não voto em Cascais nem em Matosinhos, porque, aí, até nas autárquicas estaria a pensar em formas de fazer política que me desgostam.