17.6.10

os ricos que paguem a crise, again


Ainda a questão dos 100 mil euros como patamar que pode excluir famílias do acesso a certas prestações de protecção social. A este meu post, Tiago Tibúrcio responde com este. Respeito a argumentação, mas discordo. Passo a dizer por quê.
Uma família estruturada pode ter poupados 100 mil euros para fazer face às contingências da vida e ficar sem rendimentos regulares. Desemprego de uma ou duas das pessoas que suportam o orçamento, por exemplo. O que se argumenta é: então, se estão aflitos, gastem as reservas. Parece simples, não é? Eu acho tudo menos simples. Vejamos.
Para que servem 100 mil euros? Por exemplo, para fazer face a situações aflitivas de saúde. Goste-se ou não, caro Tiago, vivemos num país em que, se não se tiver uns dinheiros de lado, pode-se morrer à espera do Serviço Nacional de Saúde. Se não está consciente disto, posso contar-lhe exemplos concretos do que isto quer dizer. Ora, pergunto eu, uma família que poupou 100 mil euros para não deixar morrer nem ficar inválido nenhum dos seus membros, por fragilidade do SNS, pode ser obrigada a esturrar esse pé de meia para subsistir numa situação de aflição - enquanto nós inchamos o peito e dizermos que o Estado deve poupar nesses casos?
Há aqui qualquer coisa de psicológico, que na argumentação do Tiago até fica mais ilustrada com a necessidade que ele tem de lembrar que estamos a falar de 20 mil contos na moeda antiga. Essa é a razão pela qual intitulei estes posts "os ricos que paguem a crise": está-se a passar a ideia de que uma família que tenha poupado "20 mil contos" é uma família rica que pode bem ser passada para trás na protecção do Estado. Fará o Tiago ideia, só para lhe dar um exemplo, o que significa uma pessoa ficar quase cega por não ter sido tratada a tempo no SNS - e de quanto teria custado a essa pessoa desenrascar-se sem "as consultas da caixa"?
Dá a ideia que se tornou corrente pensar com naturalidade que a crise pode reduzir gente normal a novos pobres e que não temos de nos afligir com isso. Acho isso aberrante. E, caro Tiago, não vale a pena iludir a questão com a (minha) piada do caviar: certo é que, em certas situações, pode valer a pena gastar o dinheiro mal gasto. A família que o tiver feito talvez evite ser tomada por "suficientemente rica" para pagar a crise do seu próprio bolso.
Sim, Tiago, tornar corrente este raciocínio faz parte da cultura que despreza a poupança. Poupar, afinal, é mesmo ser tanso. Em vez de poupar é melhor mudar mais vezes de carro: tem mais pinta e evita-nos o incómodo de sermos tomados por ricos.