20.12.24

Ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz


Deixo aqui, para registo, o meu editorial de hoje no Acção Socialista, que assino na responsabilidade de diretor dessa publicação. 


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Ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz

Ontem, numa rua de um bairro de Lisboa, pessoas, muitas pessoas, foram indiscriminadamente mandadas encostar à parede e sujeitas a revista policial, no quadro de um aparato mandado montar para mostrar essa humilhação coletiva a determinados grupos étnicos ou raciais (embora, cientificamente, não existam raças humanas, mas apenas a raça humana). Uma operação desta natureza não podia acontecer sem motivos fortes – e desses motivos, suficientemente concretos, a opinião pública devia ser adequadamente esclarecida. Ora, segundo se sabe, desse espetáculo lamentável resultou a apreensão de uma arma branca e de canábis. A desproporção entre os meios e os resultados, mais as declarações do primeiro-ministro, denunciam o fito puramente propagandístico da operação. As forças policiais estão a ser usadas para fins político-partidários, isto é, para tentar obter uma transferência de votos entre partidos da direita portuguesa, à custa do respeito que devemos a todas as pessoas que vivem na nossa comunidade.


Não por acaso, a zona escolhida para aquela humilhação coletiva e seletiva é conhecida pela forte presença de imigrantes. O governo não se atreveria a produzir este espetáculo numa rua de Cascais ou do Estoril, porque, aí, as perceções preconceituosas que alimentam estas manobras não funcionariam no sentido desejado pelos instigadores. Seguindo uma estratégia de cavar divisões, o governo está, repetidamente, a criar as condições para uma fratura social que julgávamos impossível na nossa sociedade. Não se trata de pretender que não havia racismo entre nós, porque havia. Trata-se de que, até há pouco, não havia nenhuma pessoa decente e com responsabilidades públicas que enveredasse pelo caminho de explorar o racismo existente, latente, subliminar, para espicaçar perceções distorcidas, erradas e contrárias aos dados existentes, apenas como parte de um jogo de pequena política. Hoje, essa espécie, que devia ser rara, tem um espécime na chefia do governo.


Efetivamente, pelo que diz, o primeiro-ministro parece ter sido o mandante desta ação. Não deu nenhuma justificação, nenhuma explicação, nem apresentou nenhum resultado que, pelo menos remotamente, indiciasse qualquer lógica assente na legalidade democrática que estivesse subjacente ao teatro público montado para humilhar pessoas que vivem entre nós e que contribuem para a nossa humanidade comum. A sua explicação é vergonhosa, quando assume que labora na manipulação de perceções.


O primeiro-ministro foi capturado pela extrema-direita. Não somos capazes de precisar se o primeiro-ministro sabe de história o suficiente para compreender que encontramos antecedentes destas práticas de humilhação de grupo para fins políticos na estratégia do partido nazi na Alemanha da primeira metade do século passado ou se é levianamente que o primeiro-ministro entra pelo caminho infernal do acirrar divisões de grupo na sociedade do Portugal onde vivemos.


O que sabemos é que todos os portugueses de paz, respeitadores da Constituição e da legalidade, aderentes aos princípios fundadores dos direitos humanos, foram ontem colhidos por aquela ação numa rua de Lisboa. O que sabemos é que somos todos ameaçados com ações, como aquela, que pretendem acirrar a desconfiança, e até o despeito e a raiva, entre pessoas que são, desta forma, acantonadas em identidades grupais que alguns pretendem transformar em antagónicas. O que sabemos é que todos perdemos com esta ameaça, politicamente inspirada, à concórdia entre membros da comunidade dos humanos que vivem no nosso país. Por isso, ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz, e isso foi obra de quem nos governa e trai, por truque político, os seus deveres e responsabilidades. 


(Publicação original aqui: Ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz .)


Porfírio Silva, 20 de Dezembro de 2024
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15.12.24

A JS no início dos anos 1980, um testemunho

20:55




Por ocasião do XXIV Congresso Nacional da Juventude Socialista, o Jovem Socialista, pela mão do seu Diretor Diogo Vintém, fez publicar um número especial dedicado a esse momento de passagem de testemunho na organização, como é sempre um Congresso onde muda a liderança (saiu, agora, da função de secretário-geral, o Miguel Costa Matos). Para além dos textos "obrigatórios" num número dessa natureza, este número do Jovem Socialista inclui dois textos sobre a história da JS. São dois textos de propostas e de candidatos, a seu tempo, derrotados em congressos da organização. Um desses textos é da minha responsabilidade e reproduzo-o aqui, para registo. No final, darei a ligação para poderem ler na íntegra este número do órgão central da JS.


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Aproveito o texto que me pediu o diretor do Jovem Socialista, camarada Diogo Vintém, por ocasião do XXIV Congresso Nacional da JS, o primeiro congresso em muitos anos que ultrapassa aquilo que considero a insuficiência democrática da candidatura única sistemática, para um exercício de estímulo a mais informação e mais reflexão sobre a história da JS. A história da JS é uma história política, não é uma mera cronologia de líderes, e não deve ser caricaturada. Deve, pelo contrário, saradas as feridas dos confrontos passados, ser assumida, debatida e pensada como parte do processo de crescimento do coletivo, grande, livre e plural, que é este partido a que pertencemos. Então…


O momento em que assumi maiores responsabilidades no debate político na JS foi o V Congresso Nacional, em fevereiro de 1984. Fui candidato à liderança, com uma moção intitulada “Com as nossas mãos o futuro, com os militantes a esperança”. Os autores do livro “Juventude Socialista: 30 anos de estórias de Portugal e do Mundo” (2004), escrevem que ocorreu aí a primeira rutura com a continuidade diretiva da JS desde a sua fundação, saindo derrota a lista alinhada com a anterior direção, liderada por Porfírio Silva. Vale a pena contar aqui um pouco do contexto desse Congresso, que são os começos dos já longínquos anos 1980.


O IV Congresso (1981) elegera como secretária-coordenadora a primeira mulher a liderar, em Portugal, uma organização político-partidária com autonomia: Margarida Marques. Ainda não tinham passado 7 anos sobre o 25 de Abril e os socialistas estavam na oposição ao governo da primeira AD. A crise interna do PS, por ocasião da reeleição de Eanes para a Presidência, estava a causar muitas feridas.


Foi durante esse mandato que entrei para o Secretariado Nacional. Pela primeira vez, 5 membros desse órgão eram obrigatoriamente camaradas residentes fora de Lisboa, os 5 Secretários Nacionais de Coordenação Regional, cobrindo todo o território. (Eu entrei para o SN com a coordenação de Aveiro, Coimbra e Viseu). Sistematizou-se, ainda, a prática das reuniões do SN com as Federações.


Foram anos de atividade política intensa, da qual podemos destacar alguns aspetos, em vários planos. A JS elaborou, em colaboração com camaradas do Partido, um projeto de lei de Bases do Sistema Nacional de Educação (antes de qualquer outra iniciativa para aprovar essa lei). Apresentou no parlamento dois projetos-lei para legalização das associações de estudantes (um sobre ensino secundário, outro sobre ensino superior) e um projeto-lei sobre o estatuto dos objetores de consciência ao serviço militar (em tempos de serviço militar obrigatório, a objeção de consciência estava na Constituição, mas não na lei).


Reformulou-se o apoio à participação de socialistas nas associações de estudantes, tendo passado de 5 para 40 as associações do secundário onde estávamos presentes. No superior, as vitórias mais importantes foram na Associação Académica de Coimbra, em Direito (Lisboa) e na Universidade dos Açores.


Tema candente na altura, a JS entrou na luta contra o nuclear (campanhas “Não a Sayago” e “Armamento Nuclear Não, Obrigado”). Em outubro de 1983, a JS realizou uma grande Conferência sobre a Paz e o Desarmamento, com participação de várias organizações socialistas estrangeiras e muitos oradores nacionais de referência, marcando a posição da esquerda democrática, que, querendo travar a corrida aos armamentos, seguia a análise de François Mitterrand, numa Europa ainda dividida pelo Muro de Berlim: vemos que os mísseis estão a Leste e que os pacifistas estão a Oeste. Fui um dos principais responsáveis pela conceção e realização desta conferência, que tinha como objetivo político contrariar a tentativa dos comunistas para instrumentalizar a luta pela paz.


De destacar, do trabalho feito neste período, a criação do Conselho Nacional de Juventude. Por iniciativa da Juventude Socialista, em maio de 1982, sentaram-se à mesa e chegaram a acordo para criar o CNJ, subscrevendo as suas Bases Gerais, 20 organizações de juventude, as mais representativas no espectro partidário e fora dele. Fui um dos subscritores desse documento. Ficou de fora a JSD, que só aderiu mais tarde. É um sinal (triste) das tentativas de reescrever a história que, posteriormente, alguns tenham feito tudo para apagar da história os iniciadores do CNJ, alimentando a ficção de que começou apenas no momento da sua escritura formal de constituição.


Entretanto, a conflitualidade interna, quer no PS quer na JS, era muito elevada neste período. No PS, o IV Congresso (maio de 1981) registara a divisão interna mais virulenta de toda a nossa história. O V Congresso (do PS) baixara um pouco a tensão, mas, principalmente, à custa de uma situação política completamente diferente: o PS estava de novo no governo, formalmente aliado ao PSD. Nas eleições legislativas, a minoria partidária tinha quase completamente desaparecido das listas de candidatos a deputados e do grupo parlamentar. Muitos dirigentes da JS eram (ou eram considerados) próximos da minoria partidária. No governo do Bloco Central, o Ministro da Educação era do PSD – e, vistas as suas políticas, passado algum tempo a JS pediu a sua demissão. (O PSD fazia oposição todos os dias ao governo PS-PSD, mas não era esse o caso do PS…). No cruzamento de todas estas questões, uma parte do aparelho do PS considera que a JS era “oposição” e que era preciso encontrar uma direção mais “tranquila” para os jovens. A minoria da JS aproveitou esse balanço (e o apoio no terreno de muitos funcionários do partido, que foram incentivados a apoiar uma das candidaturas). Com a revolução e o 25 de Abril a deixar de ser tema dominante na vida dos jovens, avançava a passos largos o processo designado como “despolitização” e a direção da JS (e eu próprio, como candidato) era tido como “demasiado ideológico” para os tempos.


Havia, de facto, na altura, clivagens dentro da JS acerca do entendimento que devia ser dado à autonomia da organização e à especificidade da nossa missão junto da juventude portuguesa. Dou um exemplo que está muito vivo na minha memória. Quando o Secretário-Geral do PS entrou no pavilhão onde se realizava o V Congresso, em Tróia – Mário Soares era, nessa altura, Primeiro-Ministro do governo PS-PSD – eu levantei o congresso com uma palavra de ordem que visava a demissão do ministro da educação, do PSD (creio que seria “Seabra para a rua”), na sequência do pedido de demissão que já tínhamos feito publicamente. O meu camarada José Apolinário, o candidato que saiu vencedor desse congresso, alinhou na onda e juntou-se ao pavilhão, que já estava em uníssono a seguir aquela reivindicação. Mas, depois de ganhar o congresso, esqueceu isso e explicava-nos que o partido não gostaria dessa reivindicação… Hoje, quando alguns se queixam de que a JS não faz “o seu trabalho” junto da juventude, lá fora das nossas portas, vale a pena refletir sobre se, realmente, é mais importante que a JS seja a voz do PS junto da juventude ou que a JS seja a voz da juventude junto do PS…


Retrospetivamente, há quem, mais jovem ou menos jovem, tenha alguma dificuldade em entender o que era Portugal no princípio da década de 80 do século passado. Li, há algum tempo, numa das publicações da JS sobre os 50 anos da organização (dirigida pelo camarada Diogo Vintém, diretor do Jovem Socialista), que alguém teria escrito: “1984 marcou a necessária rutura com um passado necessariamente romântico. Em Congresso Nacional, a JS altera a sua linha política, agora coerente com as posições económico-sociais que o PS vinha defendendo. Do socialismo autogestionário à defesa de uma economia de mercado regulada pelo papel do Estado foi o passo de gigante que a Juventude Socialista deu nos duros anos 80”. É difícil imaginar um retrato mais distorcido do que se passava na JS (e no PS) (e no país) naqueles anos. Passado pouco tempo, o PS registaria o pior resultado eleitoral legislativo da sua história e 10 anos de Cavaco Silva estavam prestes a começar. A esquerda estava em dificuldade – e os socialistas, a principal força da esquerda, também. O tempo da despolitização jogava, principalmente, contra a esquerda moderada. E, mais do que tudo, entre a juventude. Pensar nisso seria pensar nas condições de ação política naquele tempo. Isso seria mais útil, para os tempos de hoje, do que qualquer tipo de mistificação (as mistificações são sempre favorecidas pela falta de conhecimento histórico: onde é que alguém pode ver, nas moções apresentadas ao congresso de 1984, o tal socialismo autogestionário?!)


Uma das tarefas mais continuadas que me ocuparam durante o tempo em que fui dirigente nacional da JS a nível executivo, além de ter sido responsável pela Formação, foi a publicação do Jovem Socialista. Exerci essa responsabilidade como chefe de redação, porque a Comissão Nacional sofreu durante largos meses de falta de quórum (provocado, como parte da querela interna), impossibilitando a eleição do diretor. Assim, assumindo a secretária-coordenadora o papel de diretora-interina, foi como chefe de redação que fiz publicar 11 números do órgão central da organização, entre novembro de 1982 e janeiro de 1984. Desses, os 9 números regulares saíram em formato de revista e os 2 últimos (o nº 76, com os materiais do V Congresso; o nº 77, com uma retrospetiva do Jovem do IV ao V Congresso) saíram em formato de jornal. Fazendo um pouco de arqueologia, deixo-vos uma lista exemplificativa dos textos publicados no Jovem Socialista entre o IV e o V congressos da JS. Vejam (e depois da lista faço ao leitor uma pergunta simples):


The Clash, o rock contra o racismo, Não ao armamento nuclear, Os jovens, o 25 de Abril e a Música, Masculino/Feminino: factos e imagens, Campismo é cultura, Movimento de escritores novos, Camões e a sua obra, Defender o meio ambiente, Estatuto do Objetor de Consciência, Dossier Turismo Juvenil, Natal: um produto para consumo? Os mistérios de Milton Nascimento, Discocrítica, Planeamento familiar, Entrevista com Mário Soares,  Os Jovens e o serviço militar, Bob Marley ao Jovem Socialista, Entrevista com Filipovic, Nuclear: dizemos por que não, JS recebe resistentes salvadorenhos, O jovem consumidor e o desporto escolar, Objeção de Consciência, Vida Sexual da Juventude (inquérito e entrevista com Maria Belo), JS em Beirute, durante a invasão israelita, Entrevista com Rosa Mota, Desporto associativo em Aveiro, Campanha para as autarquias: entrevista com Eduardo Pereira, Entrevista com um objetor da consciência francês,  O negócio das armas, RTP, para quê?, Entrevista com Soares Louro sobre Comunicação Social, Comer, perigo de morte?, Reportagem: «Eu abortei!», Perspetivas do movimento ecológico internacional, Os comunistas e o nuclear, A revolução na Nicarágua, Livros proibidos no regime fascista, The Wall (Pink Floyd), O movimento dos Cineclubes,  Lançamento do Prémio Literário Jovem Socialista, Estudantes Socialistas em Encontro Nacional, Cultura em debate (depoimentos de António Reis, Margarida Projecto, Fátima Murta e Fernando Alçada), Entrevista com dois artesãos de Idanha-a-Nova, Sobre a Lei da Defesa Nacional, Defesa do Consumidor, Defesa do Património Natural e Cultural, A civilização do «Macho», A Imprensa de juventude no estrangeiro, Plano de Emprego de Jovens, O Ambiente na Constituição, O Rock dos nossos tempos, Banda Desenhada, Edição Especial: Política de Juventude da JS, Movimento Ecológico Internacional, Desarmamento nuclear, Repúblicas coimbrãs, Dia do Estudante; entrevista com Jorge Sampaio, dirigente associativo em 1962, O que é a regionalização, A loucura militar, Serviço cívico: inquérito de rua, Mapa por um mundo solidário, Entrevista com Aquino de Bragança, intelectual moçambicano, Relatividade estrita: apontamento científico, Beatle John, Que fomento desportivo em tempo de crise,  Poesia britânica, Grande inquérito «E agora, socialistas?»,  O erotismo de andar de bicicleta, Marx, quem és tu?, Objeção de consciência no Parlamento Europeu,  Fala-nos um palestino, Entrevista com Soeiro Pereira Gomes, As dimensões do Universo, Humor e política, História do Xadrez, Declaração sobre a Paz, Os homens ou as armas?, Entrevista com Manuel Alegre (sobre o seu livro “Babilónia”), O roteiro dos ecologistas, Alimentação em férias, Pratique desporto, A mulher em Os Lusíadas, A arte das aranhas, Mulher... em chinês, Número especial sobre desarmamento, Entrevista com dirigente da JS espanhola, Oposição filipina ao Jovem Socialista, A Juventude Socialista e o Governo: inquérito de rua, A educação sexual, Reivindicações estudantis, Existirão outros sistemas solares?, Cuidado com o Pato Donald, Como vamos de música.


Lendo esta lista de assuntos tratados no Jovem Socialista, no início dos anos 1980 (tinha, na altura, uma tiragem de 5000 exemplares e era distribuído gratuitamente por todas as estruturas, uma das poucas despesas que o Partido não nos regateava), parece-vos que denota uma organização paleolítica?


(O número do Jovem Socialista onde este texto foi editado pode ser lido na íntegra ou descarregado aqui: Jovem Socialista nº 537, dezembro 2024)



Porfírio Silva, 15 de Dezembro de 2024)
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30.11.24

O que esperar de António Costa?

09:00




No dia em que António Costa assumiu em pleno as suas funções de Presidente do Conselho Europeu (ontem, 29 de novembro), assinei em O Jornal Económico um "ensaio" intitulado "O que esperar de António Costa?". Para registo, fica aqui esse texto. No final, fica o link para a publicação original.

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1. O primeiro socialista Presidente do Conselho Europeu parte com o crédito do seu histórico de construtor, mas o mundo está perigoso, a UE enfrenta decisões existenciais e a sua família política é largamente minoritária na instituição que o elegeu. O que poderá António Costa tentar e o que poderá conseguir?

2. As funções do Presidente do Conselho Europeu estão entre quase nada e quase tudo. "Preside”, “dinamiza”, “assegura a preparação e continuidade dos trabalhos”, “facilitar a coesão e o consenso”, “representação externa da União”, dizem os Tratados, poderia ser uma função basicamente organizativa, própria de um funcionário público altamente qualificado. Mas pode, e deve, ser muito mais, procurando as decisões políticas que minimizem a divergência entre os diferentes interesses nacionais em presença e maximizem a convergência entre esses e o interesse comum europeu. António Costa terá sido escolhido por quem testemunhou as suas qualidades neste campo.

Entretanto, tais funções são exercidas numa rede de tensões complexa. Entre o Conselho de Assuntos Gerais, a cooperação com a Presidente da Comissão, o papel da Alta Representante em matéria de representação externa e o reporte ao Parlamento Europeu, a sua margem de manobra não é território firme à partida: terá de ser conquistada no dia-a-dia.

A tendência passada de Ursula von der Leyen para alargar informalmente as suas competências (e a necessidade de corrigir esse desvio), bem como uma previsível mudança de sensibilidade ao estado global do mundo do anterior para a atual Alta Representante, colocam pressão no jogo de cooperação competitiva em que se moverá António Costa.

Entre quase nada e quase tudo, o novo Presidente conquistará o seu espaço, sabendo que, se há problemas de fundo na União Europeia pelos quais pouco poderá fazer, há outras matérias decisivas nas quais, esperamos, tentará suavemente introduzir alguma razoabilidade. Vamos por partes.

3. Não é por acaso que reafirmamos sempre que o nosso europeísmo é crítico. Somos europeístas, não desistimos da UE (seria irresponsável desistir da nossa específica organização regional num mundo onde o perigo de estar sozinho é crescente), mas sabemos que é necessário diminuir o peso do neoliberalismo na ideologia implícita de muitas opções das instâncias comunitárias.

António Costa mostrou saber resistir à tentativa de interferir na política nacional a partir de Bruxelas numa base ideológica estreita, quando venceu a batalha contra as sanções que os falcões queriam impor a Portugal, em 2016, por incumprimento dos critérios quanto ao défice e à dívida pública. Multas e suspensão dos fundos comunitários, a aplicar durante a governação de António Costa, por um incumprimento relativo ao período governativo de Passos Coelho, era o que pedia o PPE (o grupo europeu de PSD e CDS). O problema do neoliberalismo incrustado é, contudo, mais vasto. Vejamos o exemplo do papel do BCE.

Sempre que cai no debate público alguma decisão do BCE que pode conflituar com orientações de política pública dos Estados-Membros, ou da própria UE, a justificação padrão é a função que os Tratados lhe cometem. Foi o caso com a subida acentuada das taxas de juro como estratégia para combater a inflação decorrente da guerra na Europa, em choque com os esforços de vários governos para proteger as famílias da perda de rendimentos (designadamente, energia e bens alimentares). Apresentando a estabilidade dos preços como a sua função primária, isso é confundido com o que seria uma função única ou cega.

Ora, na verdade, o que os Tratados estipulam é que, também, “apoiará as políticas económicas gerais da União tendo em vista contribuir para a realização dos objetivos da União”, incluindo o pleno emprego, a proteção social, a coesão económica, social e territorial, o progresso científico e tecnológico, a justiça social, … Isto quer dizer que o mandato do BCE não pode ser reduzido a uma visão monetarista da governação.

Não existia uma fórmula simples para lidar com a inflação, mas a visão estreita da situação resulta diretamente dos pressupostos ideológicos subjacentes. Este é um exemplo concreto de que as ideologias têm consequências práticas na política europeia, o que não será revertido por iniciativas positivas, mas localizadas (como é o caso do recente relatório Draghi, que chama a atenção para a necessidade de mais competitividade precisar de mais e não menos inclusão social).

Esse neoliberalismo implícito desconsidera as consequências gravosas dos excessos de desregulação, descura os efeitos da submissão da economia real aos interesses da especulação financeira, e das privatizações descontroladas que retiram capacidade efetiva aos poderes públicos, degrada a condição dos trabalhadores pela desregulação intensiva do mercado de trabalho.

Os esforços para reequilibrar este cenário – designadamente, o Pilar Europeu dos Direitos Sociais – não reverterão só por si o já longo “tsunami” ideológico. Para um socialista democrático, esta é a grande questão do nosso europeísmo. Ora, o Presidente do Conselho Europeu não poderá fazer grande coisa para mudar significativamente este pano de fundo da política europeia. Até porque lhe faltam aliados.

4. Há, não obstante, matérias decisivas para o nosso futuro comum que podem beneficiar da racionalidade política e da sageza de António Costa. A UE falhará aos cidadãos se não encontrar respostas robustas para o seu alargamento, para a definição do seu papel no mundo, para as transições climática e digital articuladas e socialmente justas – e se não encontrar os novos recursos próprios apropriados a enfrentar e vencer esses desafios.

O novo Presidente do Conselho Europeu mostrou, anteriormente, compreender bem cada uma dessas facetas da dinâmica europeia e deu sinais de poder introduzir alguma sensatez na abordagem de algumas dessas matérias. Menciono duas.

No tocante ao alargamento, proliferam as visões ligeiras que admitem que ele possa ocorrer à sombra de um desleixo dos critérios definidos para a adesão, pondo a “vontade política” voluntarista à frente das exigências democráticas e socioeconómicas que garantam a coerência do projeto. António Costa deu, a seu tempo, sinal de que tal movimento não pode ser bem-sucedido sem a transformação do funcionamento da UE, e que não pode ser um alargamento desordenado que faça perigar a consistência de todo o edifício, que troque os valores fundamentais pela pressa e arrisque o desperdício da experiência histórica deste projeto singular.

Quanto ao papel da União no mundo, se a autonomia estratégica (competitividade, energia, defesa) é essencial para que a UE não seja um infante ingénuo num mundo de gigantes agressivos, é crucial entender que a questão existencial é a questão da guerra e da paz. Ora, aí, nem toda a propaganda é suficiente para nos fazer ignorar questões simples: o que fez a UE para evitar que se chegasse à invasão russa da Ucrânia, atuando na compreensão de que só a segurança comum é segurança de todos? O que fez a UE para evitar que se chegasse à situação atual no Médio Oriente? O que faz a UE para evitar a proliferação de abordagens claramente incoerentes aos dois casos, onde aqui se apela ao direito internacional e ali se esquecem as suas exigências?

Devemos ter a esperança que um António Costa que, na sua juventude, mostrou que lhe fazia sentido a mensagem “deem uma oportunidade à paz”, e que entendia essa mensagem para lá das fronteiras partidárias, seja capaz de levar as lideranças europeias a compreender que, se temos de estar preparados para a guerra neste mundo real em que vivemos (e não adormecermos todos os dias acomodados à nossa dependência do “amigo americano”), também temos de ser capazes de esforços reais e concretos para fazer a paz (e é entre inimigos que é preciso fazer a paz), onde não confundamos conferências de paz com iniciativas onde só são bem recebidos os aliados de um dos lados. Ignorar a questão limite, que é a questão da guerra e da paz, seria, afinal, suicidário.

5. A situação de António Guterres como Secretário-Geral da ONU mostra que os bloqueios endógenos de uma organização pesam mais na dura realidade que o génio de uma liderança. Acredito, contudo, que António Costa conseguirá, lidando com o labirinto institucional, reunir na UE as inteligências e as vontades políticas necessárias para nos aproximarmos um pouco mais do sempre fugidio ideal europeu da prosperidade partilhada.

(Link para a publicação original: O que esperar de António Costa?)


Porfírio Silva, 30 de novembro de 2024
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15.11.24

Fórum Europeu sobre o Futuro dos Partidos Políticos


Republico aqui, para registo, o texto que publiquei na edição de ontem do Acção Socialista.

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Teve lugar, na passada semana (7 e 8 de novembro), em Roma, mais uma edição do Fórum Europeu sobre o Futuro dos Partidos Políticos, no qual tive a oportunidade de participar, a convite dos organizadores. Dessa realização dou nota sumária neste apontamento.

O Fórum tem vindo a decorrer há já sete anos, organizado pela Fundação Friedrich Ebert, em colaboração com o Instituto Universitário Europeu, de Florença, e, este ano, reuniu académicos (principalmente de ciência política) e políticos no ativo desenvolvendo a sua investigação e/ou ação na Áustria, Bulgária, Chéquia, Croácia, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, França, Grécia, Hungria, Itália, Polónia, Portugal, Roménia, Suécia, Suíça e Estados Unidos da América.

O tema deste ano foi “Para além da social-democracia: a transformação da esquerda nas sociedades do conhecimento emergentes” e foi abordado neste Fórum a partir dos trabalhos que se encontram refletidos no livro Beyond Social Democracy: the Transformation of the Left in Emerging Knowledge Societies, publicado este ano pela Cambridge University Press, tendo como organizadores Silja Häusermann, da Universidade de Zurique, e Herbert Kitschelt, da Universidade de Duke (na Carolina do Norte, EUA).

Sem prejuízo de, em edições futuras, darmos informação mais circunstanciada sobre os debates ocorridos neste Fórum, deixamos, desde já, breve apontamento sobre algumas das questões mais salientes que foram, nesta ocasião, abordadas.

A grande novidade das discussões deste ano, que, mais uma vez, se integram numa linhagem de investigação sobre o campo da social-democracia como corrente de ação política, e que (desde há alguns anos) nunca deixam de refletir sobre o chamado declínio eleitoral da social-democracia, foi o enquadramento mais abrangente: em vez de pensarmos apenas nos partidos da social-democracia tradicional (incluindo os que escolheram uma das designações historicamente equivalentes, como sejam os socialistas democráticos ou os trabalhistas), pensamos num campo mais plural da esquerda democrática. Isto é: há, hoje, em vários países, formações políticas que, concorrendo eleitoralmente com os tradicionais partidos da social-democracia, não deixam de ter um ideário também ele social-democrata (mesmo que não o admitam explicitamente). Ora, no quadro dos desafios enfrentados hoje pela esquerda democrática, não deixaria de ser pertinente pensar a ação política sem desatender da importância de contar com esses partidos para construir blocos políticos e sociais amplos, capazes de fazer avançar a ação social-democrata para além das fronteiras orgânicas estritas dos tradicionais partidos desse campo.

Um exemplo das questões suscitadas por esta linha de análise é o seguinte: um partido da área da social-democracia pode escolher um posicionamento político, face a outras partidos da esquerda democrática e face a partidos da direita, que o engrandece eleitoralmente à custa desses outros partidos quando, afinal, eles poderiam ser futuros parceiros. Isso pode garantir um certo sucesso eleitoral relativo, no imediato, mas sem retirar um voto à direita - e, portanto, potencialmente, ficando-se pela redistribuição de votos dentro da esquerda e deixando à direita a maior margem de manobra. Entretanto, essa não é a única opção: um partido da social-democracia tradicional pode, mesmo que com algum risco político, procurar captar eleitorado que oscila entre a direita democrática e a esquerda democrática, de modo a conseguir ampliar a força do conjunto da esquerda democrática, mesmo que isso implique perder algum eleitorado para outros partidos dessa esquerda democrática. Esta opção poderia ser mais arriscada para um determinado partido, mas tornar-se mais vantajosa para o conjunto do campo da social-democracia. (Em termos de teoria dos jogos, o risco seria que a estratégia “egoísta” tenderia a ser a “estratégia dominante”, quer na ótica da competição entre partidos da esquerda, quer na ótica da competição entre esquerda e direita.)

Evidentemente, este tipo de raciocínio não é um raciocínio puramente tático, nem puramente eleitoral. Este tipo de raciocínio torna-se relevante para responder, quer à realidade da crescente fragmentação política e partidária que se tem verificado em muitas democracias, quer para responder politicamente a um desafio de fundo que enfrentam as esquerdas em muitos países. O desafio de fundo é a existência de várias esquerdas, nem sempre compatíveis entre si no que toca a definir rumos para as políticas públicas: desde uma esquerda mais tradicional, com opções políticas marcadamente desenhadas a partir da economia e do programa de redistribuição como caminho para menor desigualdade e mais justiça social, passando por uma esquerda mais focada em valores liberais ou libertários, ligados à promoção dos direitos individuais como dimensão irrenunciável de uma democracia aprofundada, até esquerdas mais conservadoras em termos de valores, embora reivindicativas em termos socioeconómicos (por exemplo, as tensões acerca da imigração ou das agendas de novos direitos, tensões envolvendo algumas correntes da esquerda). O ponto é que esta análise não se esgota na consideração de posicionamentos ideológicos: ela corresponde, na realidade de muitos países, a diferenças profundas na composição social dos eleitorados de diferentes partidos de esquerda. Portanto, não é o “mero” campo das ideias, ou do simbólico, que está em questão; estão em questão diferenças sociais reais que reclamam soluções políticas diferentes e, por vezes, até, pelo menos à primeira vista, contraditórias.

Não sendo possível, no espaço de um artigo de jornal, dar nota da riqueza de todos os debates que tiveram lugar neste Fórum, voltaremos, logo que possível, a reportar aspetos do rico conteúdo deste Fórum.

Entretanto, deixamos uma sugestão. O livro que, como mencionado acima, providenciou os trabalhos de partida para este Fórum, encontra-se disponível, para ser descarregado gratuitamente, de forma legal, no sítio da editora, no seguinte endereço: Beyond Social Democracy: the Transformation of the Left in Emerging Knowledge Societies .



Porfírio Silva, 15 de novembro de 2024
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5.11.24

Recusemos as agendas míopes




Deixo aqui, para registo, o editorial do Acção Socialista publicado na edição de ontem, 4 de novembro de 2024, da minha responsabilidade como diretor desse órgão de informação do PS.


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Recusemos as agendas míopes


Porque é que os partidos socialistas e sociais-democratas não são hoje revolucionários e são partidos gradualistas, que procuram melhorar a condição das pessoas cuja vida depende do seu trabalho, partidos que trabalham para avanços incrementais, que não jogam tudo ou nada numa “futura sociedade socialista”, que procuram melhorias passo a passo? Não é porque tenham perdido o sentido da utopia; é porque aprenderam, historicamente, que o foco exclusivo na agenda do proletariado não permitia progressos sociais significativos. Compreenderam que uma agenda mais vasta – a agenda da democracia, a agenda da construção de instituições democráticas – que não interessa apenas ao proletariado, mas também a outros grupos sociais – dava mais ferramentas de luta, reunia forças mais vastas, abria mais portas para concretizar objetivos de primeira importância para o interesse dos trabalhadores. E essas conquistas podiam enraizar-se mais solidamente em instituições democráticas. É dessa compreensão que nasce o socialismo democrático, ou a social-democracia, e que nascem os avanços sociais que têm sido possíveis por ação desta corrente política há mais de um século. A agenda do mundo do trabalho obteve vitórias mais profundas e duradouras por se ter incrustado na agenda da república democrática.


Hoje, de novo, os combates dos socialistas contra as desigualdades injustas, pelo trabalho como expressão de humanidade que não pode ser encarado como uma mercadoria, pela solidariedade organizada, esses combates só podem ser eficaz e eficientemente travados e vencidos se forem embutidos numa agenda mais vasta – a agenda dos direitos humanos. A nossa Constituição, ao definir Portugal, logo no seu artigo 1º, como uma República baseada na dignidade da pessoa humana, dá o rumo: o exercício de todos os direitos, bem como a assunção de todos os deveres, tem como horizonte a dignidade da pessoa humana. De toda a pessoa humana. Hoje, num mundo empestado de tentativas sistemáticas para dividir os povos em categorias estanques com critérios de oportunismo e de propaganda (como aqueles que falam de “portugueses de bem” para diminuir os que não sejam seus apaniguados), o primeiro inimigo de qualquer luta por direitos sociais é a desconsideração dos direitos humanos na sua universalidade. Num mundo atacado por populismos agressivos, a única estratégia possível para defender as conquistas sociais é não vacilar em matéria de direitos humanos, em matéria de dignidade da pessoa humana. Qualquer cedência ou fraqueza nossa em matéria de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana será paga, mais cedo ou mais tarde, em retrocessos sociais.


Essa é uma razão sólida para recusarmos agendas míopes, agenda imediatistas (pensar apenas na próxima eleição faz-nos correr o risco de perder a alma… e perder a próxima eleição).


O Secretário-Geral do PS, intervindo no encerramento do debate na generalidade do OE para 2025, deu ao país um bom exemplo prático de como se recusam agendas míopes. Afirmou, a dado ponto: “Para o atual Governo – como para toda a Direita – o conceito de Segurança limita-se à segurança da integridade física e da propriedade. Uma resposta que acaba sempre por falhar, porque não entendem que as sociedades mais seguras são as mais coesas e estáveis – e que as sociedades com maiores níveis de exclusão e de desigualdades são também as mais inseguras e as mais violentas.” Lá está: uma agenda míope para a segurança é uma agenda meramente securitária; uma agenda de vistas largas, uma agenda responsável para a segurança entra em conta com a coesão social. E, logo de seguida, disse ainda Pedro Nuno Santos: “Sabemos que, quando a insegurança e a instabilidade são endémicas, a esperança pode ser derrotada pelo medo. E todos sabemos que há na Política quem viva do medo, quem se alimente do medo, quem promova o medo.” E logo reafirmou, em nosso nome, em nome dos socialistas, que derrotaremos os que promovem o medo. Lá está: uma agenda de vistas largas para a segurança é uma agenda que recusa o medo, que recusa a promoção do medo.


É disso que precisamos, precisámos sempre e precisamos especialmente nos tempos difíceis que vivem hoje os democratas por todo o mundo: recusar agendas míopes, recusar agendas oportunistas, recusar ceder ao medo (e recusar a promoção do medo), lutar no quadro de uma ampla agenda democrática, de uma agenda de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana – a única agenda capaz de reunir as forças suficientes para impedir recuos nas conquistas sociais. E, tendo a ventura de viver num país com uma Constituição democrática, traçar uma linha clara assente na proteção constitucional da dignidade da pessoa humana e na defesa da legalidade democrática.


Porfírio Silva, 5 de novembro de 2024
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22.10.24

Viabilização democrática




Deixo aqui, para registo, o editorial do Acção Socialista, publicado na edição de 22 de outubro, da minha responsabilidade como diretor desse órgão de informação do PS.

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O Partido Socialista, por deliberação unânime da Comissão Política Nacional, tomada ontem à noite, decidiu abster-se nas votações na generalidade e final global do Orçamento de Estado para 2025. Em aberto fica, para o período de discussão e votação na especialidade, a capacidade do Grupo Parlamentar para tentar evitar os piores traços da proposta governamental, sem interferir com aquilo que o Governo da AD entende dever ser o saldo orçamental para o próximo ano.

O PS não vai viabilizar o orçamento pelas suas qualidades. Nenhuma voz na Comissão Política Nacional defendeu a bondade deste orçamento. Nem o fará convencido de que o Governo de Luís Montenegro tenha competência para continuar o que estava a correr bem ou corrigir o que precisava de ser melhorado do ciclo político anterior. Nenhuma voz na reunião de ontem à noite se mostrou distraída da incompetência evidenciada pelos membros do governo que tenham mexido uma palha, nem da insustentabilidade do rumo que está a ser traçado. A razão é simples: a equipa de Montenegro é apenas uma comissão eleitoral em hiperatividade de curto prazo, sem visão de futuro que não seja a ideologia dos chavões velhos da direita lusa. No governo desta AD não resta nenhum traço de ideal reformista a pensar no futuro sustentável dos portugueses que vivem do seu trabalho.

Sem poder perscrutar todas as razões que levaram ao voto de cada comissário político do PS a favor da abstenção no OE, acredito que uma razão ponderosa nos assistiu a todos. Essa razão é: a distorção dos mecanismos constitucionais, operada pelo atual Presidente da República, confunde a votação do orçamento anual com uma moção de censura ou uma moção de confiança. A aprovação da primeira ou a rejeição da segunda implica a queda do governo – mas a rejeição de uma proposta de OE não tem essa implicação. Digo: não o implica no texto constitucional; implica-o na avariada leitura política de um PR que, pelos vistos, se dispunha a dissolver pela terceira vez o Parlamento no decurso dos seus mandatos. Em vez de aplicar a Constituição da República Portuguesa, que, sabiamente, prevê mecanismos diferenciados para ultrapassar situações distintas, dando espaço institucional para que funcione a escolha política no espaço democrático, Marcelo Rebelo de Sousa introduziu uma prática presidencial que corresponde à chalaça “para quem só conhece martelos, tudo no mundo são pregos”. Passou a interpretar o regime como uma espécie de presidencialismo do primeiro-ministro e, repetidamente, afunila os seus próprios poderes, autolimitando por antecipação a sua intervenção, que parece agora reduzir-se à infinita repetição de dissoluções da Assembleia da República. Ou à repetição da respetiva ameaça.

Neste contexto, com Marcelo Rebelo de Sousa, de braço dado com Luís Montenegro, a prometer mais uma crise política fora de calendário, ameaçando com umas eleições poucos meses depois das anteriores, algo que seria incompreensível para a generalidade dos cidadãos e agravaria a desafeição do povo com a política, alguém tinha de ter um comportamento responsável. Coube ao PS, mais uma vez, esse papel.

Ser o adulto na sala pode exigir sacrifícios, mas, finalmente, é parte daquilo que uma oposição forte e responsável pode fazer pela democracia. Não temos pressa, porque sabemos para onde vamos. É um sacrifício deixar passar um mau orçamento, mas estamos conscientes de que o fazemos pela preservação das instituições democráticas. Reforçar o nosso trabalho de alternativa é outra face dessa ação democrática – e nisso nos concentramos.

(Publicação original aqui: Viabilização democrática.)

Porfírio Silva, 22 de outubro de 2024
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11.9.24

O DEBATE. Trump vs Kamala, claro.

10:04



Para um ser racional, capaz de distinguir entre factos e alucinações e capaz de pesar a qualidade dos argumentos, Kamala venceu claramente o debate. Trump fartou-se de mentir e, mais do que isso, de inventar completos disparates. A questão é saber se isso serve de muito. De alguma coisa serve: se Kamala tivesse mostrado impreparação, ou se tivesse descambado em assuntos melindrosos para a sua base de apoio potencial (como a situação em Israel e em Gaza), o seu eleitorado desmobilizaria em alguma medida. Mas este tipo de debate, com aquele eleitorado neste contexto, não é decisivo. Para distinguir entre um facto e uma bizarria, é preciso ter algum conhecimento dos factos. Para distinguir entre um bom argumento e um pseudo-argumento sem lógica nenhuma, é preciso ter um certo grau de racionalidade em operação. Mais: para ter uma avaliação democrática é preciso ser um democrata: os que continuam a aplaudir a recusa de Trump em aceitar o resultado das anteriores eleições não se chocam nada com a insistência nessa loucura. A questão é que o eleitorado de Trump tem mais disto do que o eleitorado de Kamala (nenhum dos eleitorados é homogéneo, nenhum é puro e santo, nem nos EUA nem em lado nenhum, é uma questão de proporção). Não vale a pena rasgarmos as vestes, contudo. No imediato, porque Kamala pode perfeitamente vencer, até com o apoio dos republicanos racionais e democratas que percebem o perigo para a democracia e vêm no trumpismo a destruição do Partido Republicano tradicional. O debate contribuiu para esse caminho. Por outro lado, porque, embora em graus diferentes, esta fragilidade é característica das democracias representativas tal como elas realmente existem: a falta de mecanismos para os cidadãos terem maior poder real na decisão política, mais quotidianamente e não apenas de quatro em quatro anos, promove o desconhecimento dos factos e das consequências das políticas seguidas. Por não terem considerado devidamente o problema do afastamento entre representantes e representados, as chamadas "democracias ocidentais" ficaram mais vulneráveis à demagogia e à manipulação. É melhor viver nestas democracias imperfeitas do que em sociedades esmagadas por ditaduras, como acontece na Rússia, na China, na Arábia Saudita, ... (a lista é imensa). Mas corremos o risco de perder essa vantagem se não corrigirmos os nossos defeitos fundamentais. Que a "democracia representativa real" não acabe como o "socialismo real"...


Porfírio Silva, 11 de setembro de 2024
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3.9.24

OE 2025: falar claro sobre o país




Deixo aqui, para registo, o editorial do Acção Socialista, publicado na edição de 2 de setembro, da minha responsabilidade como diretor desse órgão de informação do PS.

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OE 2025: falar claro sobre o país

Há quem pense que negociar o Orçamento de Estado, neste caso o OE para 2025, é apenas uma questão de conversa leve para entreter as audiências. E, pior, há quem ache que pode forçar os deputados do PS a votar sob chantagem e sem que o governo da AD faça minimamente o seu trabalho para encontrar os votos parlamentares que o povo não lhes deu. E também há, na esquerda da esquerda, quem ache que pode dizer ao PS como assumirmos as nossas responsabilidades e quem acredite que não somos capazes de pensar pela nossa cabeça acerca do interesse nacional e do interesse da maioria do povo português que vive do seu trabalho.


A posição do PS é que estamos a tratar de um assunto sério (embora não seja a única matéria a merecer debate político) e que, por isso, o país pode continuar a contar com a nossa responsabilidade e com o nosso compromisso com as propostas e com os valores com que nos apresentámos ao eleitorado.
Foi essa responsabilidade e verticalidade, com clareza e transparência, que, ontem, mais uma vez, em Tomar, assumiu o Secretário-Geral do PS. Disse, na ocasião, várias coisas muitíssimo acertadas:

(1) O PS só pode começar a negociar o OE quando receber a informação necessária para avaliar a situação do país. Evidente: o contrário seria irresponsabilidade.

(2) O PS não aceitará um OE que tenha implícitos os regimes IRS e IRC que a AD propôs na AR. Claro: se têm uma pequeníssima maioria e querem impor a sua visão unilateral, é porque não querem aprovar o OE nem estão a ser sérios com o PS.

(3) Se as autorizações legislativas relativas aos regimes fiscais forem aprovadas com a IL e o CH, é com esses partidos que o governo tem de aprovar o OE. Claro: a AD não pode querer fazer governação séria com a técnica das duas caras, que consiste em pedir ao PS os votos para fazer a política dos radicais de direita.

(4) Cumpridas as três condições anteriores, então apresentaremos as nossas propostas para o OE. Certo: continuamos a ter uma posição construtiva, como temos tido desde que se iniciou esta legislatura. Coisa de que, pelo contrário, a AD não tem dado quaisquer mostras.

Acresce: a AD, com esta maioria frágil, só pode querer aprovar o OE com cedências relevantes ao partido de oposição com que quase empatou. Certo: a democracia é esse pluralismo, não é ganhar por uma unha negra e querer governar sem ter em conta os outros eleitos pelo voto do povo - de cujos votos, aliás, precisam.

Pedro Nuno Santos posicionou o PS neste debate de forma clara, correcta, construtiva e responsável. Não fez nenhuma exigência maximalista. Não bloqueou nenhuma possibilidade. Deixou caminho aberto para que Luís Montenegro se deixe de jogos florais e assuma as suas responsabilidades.


(A publicação original pode ser encontrada aqui: EDITORIAL. OE 2025: Falar claro sobre o país )


Porfírio Silva, 3 de setembro de 2024
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18.7.24

Senhor PM, a tática da má-fé prejudica a democracia

09:55

A propósito do debate do estado da nação, ontem, no Parlamento, publiquei ontem este editorial no Acção Socialista, que aqui deixo para registo.

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SENHOR PM, A TÁTICA DA MÁ-FÉ PREJUDICA A DEMOCRACIA

Ninguém critica o Governo Montenegro por não ter feito tudo em 100 dias. Tal como ninguém critica que o governo da direita aproveite um certo grau de convergência interpartidária registada na última campanha eleitoral para as legislativas em torno de certas matérias para as fazer avançar. Como aconteceu com as reivindicações dos professores relativas à sua carreira, que teriam registado avanços qualquer que fosse o resultado das legislativas. Não será o PS a cometer esse erro, até porque temos consciência de que não conseguimos fazer tudo o que planeámos, num ciclo político que enfrentou uma crise sanitária sem precedentes, uma guerra na Europa e uma crise inflacionária com uma dimensão desconhecida para muitos. Não será o PS a cometer esse erro, porque sabe que há muito por fazer, como sempre dissemos, apesar de o seu ciclo de governação ter sido interrompido de forma extemporânea e artificial.

 

O que se critica ao Governo é que seja mais um departamento de propaganda do que um executivo nacional. Que tente enganar o país e fazer passar por suas medidas que herdou, legisladas e em execução: como foi o caso com a descida do IRS. Que não se importe de arriscar a credibilidade internacional do país por pura tática política: como foi o caso com a tentativa de denegrir o estado das finanças públicas, no que só recuou depois de desmentido pela Comissão Europeia. O que se critica ao Governo é a tomada de medidas que agravam as desigualdades em prejuízo dos que mais precisam, como é o caso da operação fiscal justificada como política para os jovens. O que se critica é a arrogância da incompetência, como tem sido demonstrado na área governativa da Saúde, com tantos casos que seria difícil ter aqui espaço para elencar todos. O que se critica ao Governo é que se esforce mais para parecer que governa do que para governar.

 

Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, tem de criticar-se o Governo por se esgotar na guerrilha política e mostrar completo alheamento face à responsabilidade, que é sua, de trabalhar pela estabilidade da governação que propõe ao país.

 

Se um governo minoritário, liderado por um primeiro-ministro cujo partido tem apenas uma bancada parlamentar da mesma dimensão da bancada do maior partido da oposição, claramente insuficiente para governar sozinho, aproveita o momento solene do debate parlamentar do estado da nação para atacar em puro “politiquês” o principal partido da oposição, mostra o nível da sua (fraca) ambição. Luís Montenegro não procura tempo e apoio para desenvolver políticas públicas que continuem o esforço de desenvolvimento do país, porque se o quisesse apresentaria ao Parlamento as suas ideias para construir as soluções que o permitissem. Luís Montenegro não procura construir convergências a partir da pluralidade, que é o esforço normal e necessário em democracias onde a representação popular é ela mesma plural – e até, cada vez mais, fragmentada –, continuando, ao contrário, num espírito de desforra que não pode ser bom conselheiro: como exibiu hoje, de novo, no parlamento, classificando como “usurpação” a constituição, em 2015, de uma maioria das esquerdas para interromper a governação “além da troika” (esquecido, talvez, daqueles que, no seu campo político, tinham já anteriormente teorizado a razoabilidade de explorar todos os mecanismos constitucionais para criar uma maioria política, mesmo contra a força que chegasse em primeiro lugar).

 

Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, o mesmo tem de ser criticado por querer ser o Governo dos 300 dias. Quando o PS oferece disponibilidade para discutir, sem linhas vermelhas, as grandes opções contidas no orçamento de Estado, o Governo procura saturar a paciência dos socialistas com agressividade verbal e puro desdém. O Governo não quer ter condições para governar. O Governo quer, apenas, poder continuar em campanha eleitoral – e, para isso, procura umas eleições rápidas. Quem conduz politicamente este Governo quer repetir a tática do “deixem-nos trabalhar” e das “forças de bloqueio”, esquecendo que, passados todos estes anos depois da primeira volta dessa tática, a instabilidade política tem um preço exorbitante, que é a progressão do extremismo populista. A escolha da agressão constante ao maior partido da oposição, tentando que se torne para os socialistas insuportável negociar com quem assim se comporta, exibe uma má-fé política de quem, depois, proclama uma abertura retórica nunca concretizada para “consensos”.

 

A democracia não precisa de falsos consensos. A democracia não precisa de que estejamos todos de acordo; precisa que as forças democráticas sejam capazes de trabalhar por compromissos razoáveis e equilibrados, compromissos que não ignorem as diferenças políticas e não impliquem a renúncia aos valores fundamentais de cada um dos interlocutores. Pretender que, em democracia, a vontade do Governo prevalece “porque sim”, mesmo sem apoio maioritário, desconsiderando a representação cidadã que foi confiada também a outros partidos, é negar a própria democracia. Usar retoricamente a necessidade de compromissos e, depois, fazer tudo para afastar quem está disposto a discutir peças tão decisivas como o orçamento de Estado, é usar de má-fé. É preciso que o senhor primeiro-ministro compreenda que a má-fé no debate democrático vai contra a própria essência deliberativa da democracia – e vai de par com a sua tendência para desvalorizar o parlamento. A má-fé, a retórica do diálogo usada como mero ingrediente de uma estratégia de confrontação e rutura, com meros intuitos eleitoralistas, é deslealdade à própria democracia. Senhor Primeiro-Ministro, essa tática da má-fé prejudica a democracia – e a vida da democracia, estando difícil por todo o lado, bem dispensa que se ofereçam mais oportunidades aos que engordam na instabilidade e no clima de confrontação extremada.


Porfírio Silva, 18 de julho de 2024
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9.7.24

Contributo para compreender a política em França nos próximos dias

A primeira reação face aos resultados das eleições legislativas antecipadas de 7 de julho em França foi de alívio: a "barragem republicana" impediu a extrema-direita de chegar ao poder, Já escrevi sobre isso, na segunda-feira a seguir aos factos, um editorial no Acção Socialista: Derrotar a extrema-direita, não apenas por agora, mas duradouramente. A vitória da coligação pré-eleitoral de esquerda, a Nova Frente Popular, na qual o Partido Socialista Francês toma parte, é motivo de esperança - mas também de atenção e reflexão.

Contudo, para refletir precisamos de alguma informação de base. E, dadas as complexidades do sistema político francês, e das próprias minudências do sistema eleitoral, às vezes isso não é fácil (ainda menos para quem não consegue recolher informação na língua dos franceses). Essa é a motivação para deixar aqui alguma informação e alguns elementos de problematização:
- um olhar sobre os resultados das legislativas 2024;
- a composição interna dos três grandes blocos;
- alguns tópicos que podem ser úteis para interpretar o que virá nos próximos dias ou nas próximas semanas.
  



O ESSENCIAL DOS RESULTADOS ELEITORAIS



Para começar, os dados quantitativos: mapa da França com os eleitos por círculo (só os círculos dos residentes em território continental europeu):




                 





A NFP (Nova Frente Popular) ficou em primeiro lugar; o Ensemble, que junta os centristas em torno de Macron, ficou em segundo lugar; o Rassemblemente National (RN, extrema-direita), com o apoio de uma parte do LR (Os Republicanos, que costumavam ser direita tradicional) ficou em terceiro lugar; LR (entre Os Republicanos, aqueles que recusaram juntar-se à extrema-direita) ficou em quarto lugar. 

Sendo a Assembleia Nacional composta por 577 deputados, faz-se maioria absoluta com 289 deputados. Note-se que o governo que agora deverá cessar funções, da cor do Presidente Macron, não dispunha de maioria absoluta no parlamento, governando com recurso cada vez mais frequente a um mecanismo constitucional que permite ao governo fazer passar leis sem as submeter a voto parlamentar normal (nessa circunstância, a única maneira de travar essa lei é apresentar e fazer aprovar uma moção de censura ao governo, derrubando-o).

Onde ganhou a Nova Frente Popular:






Onde ganhou o Ensemble:





Onde ganhou a extrema-direita (RN e Republicanos que a apoiaram):




Uma nota de precaução sobre os resultados: se é certo que já se sabe quem foi eleito e quem não foi eleito (os nomes dos deputados eleitos), ainda não se sabe exatamente a distribuição por grupos políticos. Os números acima não são, por isso, absolutamente certos, havendo dissonância entre várias fontes consultadas (em princípio, não afetando a correlação de forças global).  A que se deve essa estranha situação? Designadamente, e especialmente, ao facto de estarem em curso algumas dissidências dos Insubmissos - devidas, nomeadamente, à forma sectária como Mélenchon elaborou as listas, "purgando" alguns dos seus camaradas que o haviam criticado, nomeadamente tentando afastar deputados do seu partido com mandato na anterior Assembleia Nacional. Deu-se, inclusivamente, o caso de um candidato excluído dos Insubmissos ter mantido a sua candidatura contra um (outro) candidato dos Insubmissos (integrado na NFP) e ter ganho a eleição. Os números acima são os que podíamos ler no Le Monde ao fim do dia de segunda-feira.




SOBRE A COMPOSIÇÃO INTERNA DOS TRÊS GRANDES BLOCOS



Importa conhecer a composição de cada um dos grandes grupos, na medida em que eles estão longe de ser homogéneos e muito do que pode acontecer nos próximos tempos pode passar por reconfigurações que ponham em causa as formas apresentadas aos eleitores.

Esta informação não foi fácil de obter, a maior parte dos órgãos de comunicação social não tinha esta informação durante a elaboração deste texto e, finalmente, usamos a informação da FranceInfo em linha (obrigado, Maria João Pires). Os dados globais não correspondem à informação anterior, mas dão uma distribuição que, mesmo que seja aproximada, dá uma boa visão global da distribuição de forças dentro de cada um dos três grandes blocos.



Distribuição dos assentos dentro da Nova Frente Popular:

LFI (Insubmissos, liderados por Mélenchon): 71 deputados

Socialistas (que incluem o Partido Socialista Francês, mas onde este não é sequer hegemónico): 64  deputados

Ecologistas: 33 deputados

Partido Comunista Francês: 9 deputados

Outros: 3 deputados

Há deputados eleitos por outras (pequenas) formações, regionalistas, dissidentes dos Insubmissos que conseguiram ser eleitos contra o candidato oficial, socialistas eleitos fora das listas do NFP, etc., que podem vir a alinhar com a estratégia da NFP, apesar de não lhe pertencerem formalmente.







Distribuição dos assentos dentro do Ensemble: 

Renascimentos (Macron): 98 deputados

MoDem: 34 deputados

Horizons: 26 deputados 

União dos Democratas e Independentes: 1 deputado

Outros: 4 deputados







Distribuição dos assentos na extrema-direita e aliados:

Rassemblemente national (RN): 126 deputados

RN e Republicanos: 17 deputados







CHAVES PARA O FUTURO



Como disse na noite eleitoral (na TF1) um alto dirigente do Partido Socialista Francês, acabou o bipartidarismo. É verdade que esse bipartidarismo já há muito que era um "bi-bloquismo", porque o enfrentamento era entre dois blocos, de composição complexa cada um deles, e não entre dois partidos, mas, agora, temos uma situação qualitativamente nova: estão em campo, não dois, mas três grandes blocos políticos, eventualmente em curso de recomposição (por exemplo, é interessante saber o que farão no futuro Os Republicanos da ala histórica, que, sendo bastante conservadores, não alinharam com a extrema-direita e, de momento, parecem pouco inclinados a ceder ao namoro dos Macronistas, escaldados com o tratamento que o Presidente lhes deu no passado. E têm, com um conjunto de aliados próximos, cerca de 60 deputados.) De qualquer modo, a situação é nova e poderá evoluir mais ou menos rapidamente nos próximos tempos.

Nenhuma grande força política em França estará, agora, apenas a pensar no futuro imediato. Todos deverão estar conscientes de que uma solução imediata que rapidamente se revele fraca e incapaz de responder à gravidade da situação provocará, daqui a um ou dois anos, uma crise ainda maior e, então, uma vitória mais provável da extrema-direita. Na realidade, o cenário é confuso. Todos estarão, pois, a jogar em vários tabuleiros ao mesmo tempo.


Os Macronistas foram os principais beneficiários da "barragem republicana" à extrema-direita


Desde logo, não é fácil interpretar os resultados da segunda volta destas eleições: qual é o peso real de cada bloco? O partido de Le Pen, tendo, graças à “frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas mobilizadas por Macron. Contudo, essa vantagem tem de ser relativizada de dois modos. Por um lado, a frente de esquerda e o bloco centrista não concorreram em todos os círculos. Mais precisamente, a NFP desistiu (principalmente a favor dos centristas) em cerca de 130 círculos e os centristas desistiram (principalmente a favor da NFP) em cerca de 80 círculos. Nos círculos onde desistiram tiveram zero votos - mas os seus eleitores não desaparecera, embora não sejam contabilizados. Quem perdeu mais, nessa dimensão, foi a NFP, que desistiu em mais 50 círculos do que os centristas: afinal, foram, talvez, os Macronistas os que mais ganharam com a estratégia proposta pela esquerda frentista. Este efeito é reforçado pelo facto de a NFP ter sido afastada na primeira volta em mais círculos do que a extrema-direita (a extrema-direita foi eliminada em 92 círculos na primeira volta, a NFP foi eliminada em 131 círculos). Noutro sentido, há que contar com os candidatos que, tendo sido eleitos à primeira volta... não tiveram votos na segunda volta: a extrema-direita elegeu 39 na primeira volta, a NFP 31, e foram os únicos a eleger um número significativo na primeira volta - e, portanto, os únicos prejudicados na fotografia em percentagem da segunda volta. No conjunto, enquanto o resultado "natural" da primeira volta dava 306 triangulares, finalmente só aconteceram 89, o que mostra o grau de distorção da percentagem da segunda volta.


A aprendizagem por fazer

Em países como a Alemanha ou os Países Baixos, e outros onde os resultados eleitorais levam os partidos a procurar constituir maiorias para poderem governar, sem a ilusão de durarem muito governos minoritários, o que estaria em perspectiva, agora, em França, seria alguma espécie de entendimento entre a NFP e os centristas reunidos em torno de Macron. Não parece, contudo, que isso seja fácil. Macron, com o seu egocentrismo, tornou-se um símbolo odiado da arrogância política. É difícil que a esquerda, no seu conjunto, aceite colaborar ostensivamente com ele. Simetricamente, a componente Mélenchon da NFP é tóxica, não apenas para os adversários da direita e do centro, mas igualmente para outras forças de esquerda, para quem o desbragamento verbal e o sectarismo do líder dos Insubmissos é inaceitável - tal como já é inaceitável mesmo para alguns dirigentes dos Insubmissos. Mas Mélenchon é o líder dos Insubmissos e, portanto, da componente maioritária da NFP - embora muitos tenham dito e redito, durante a campanha eleitoral, que ele não seria o seu candidato a primeiro-ministro. 
Haverá, em algumas componentes da NFP, a tentação de romper e aceitar alguma forma de cooperação com os Macronistas - mas é muito duvidoso que seja aceitável romper, assim, sem mais nem menos, uma proposta que se apresentou aos eleitores e cujo programa foi sufragado em questões muito concretas (como a idade da reforma). Não seria um bom princípio enganar assim os eleitores - e seria, mais tarde, um peso difícil de carregar em novo confronto eleitoral.
Os Macronistas, por seu lado, tentarão, provavelmente, juntar forças com uma parte da direita tradicional, designadamente os Republicanos e seus aliados, para tentarem compor um bloco mais numeroso que a NFP, mas é duvidoso que sejam, assim, recompensados, por estes anos em que Macron andou a tentar desgraçar todos os partidos de esquerda e todos os partidos de direita a favor da sua estratégia de hegemonia. 


Entre o curto e o médio prazo

Durante um ano, a Assembleia Nacional não pode ser dissolvida. O atual governo, Macronista, não tem maioria no parlamento e governou nos últimos dois anos com recurso frequente a um mecanismos constitucional que permite ao governo "impor" uma determinada lei fazendo com que ela só possa ser travada pela aprovação de uma moção de censura e consequente derrube do governo. Assim sendo, não é de descartar que Macron, aproveitando da vantagem de ser Presidente, queria nomear um governo e esperar que ele resista ao parlamento por essa via. Não seria, contudo, fácil continuar mais tempo a viver desse expediente.
E seria democraticamente triste que Macron tratasse de ignorar olimpicamente que a NFP foi, politicamente, a principal vencedora destas eleições.
Entretanto, alguns dirigentes da NFP querem ter a oportunidade de governar com o mesmo expediente que o governo de Macron tem usado, considerando que podem viver com uma maioria relativa na Assembleia Nacional, sem necessidade de negociar com os centristas ou com a direita. É expectável, com umas eleições presidenciais no horizonte, que nenhum dos outros blocos queira dar essa oportunidade à esquerda.
Haverá, designadamente na esquerda francesa, quem julgue que é preciso uma reforma profunda do sistema político - designadamente do sistema eleitoral, que alguns consideram que só será democrático se for proporcional - , estando, por isso, dispostos a qualquer solução entre "união republicana" e "governo de tecnocratas" para aguentar um ano, enquanto se fazem essas reformas, para depois voltar a dar a voz ao povo.

Em jeito de resmungo pessoal, eu diria o seguinte: (1) as nossas democracias estão a demorar a aprender que os parlamentos são o lugar da pluralidade e, portanto, devem ser o lugar da concertação e do compromisso - e, enquanto não aprendermos isso, estaremos sempre na tentação de termos poder suficiente para não precisarmos de mais ninguém, com a direita extrema sempre à espreita para parasitar a instabilidade e a incapacidade de compromisso dos partidos democráticos; (2) os debates daquilo que, por cá, eu chamei "esquerda plural", são, no essencial, os debates que a esquerda francesa vai ter de fazer para sair de pé deste desafio - e, aí, não tenho dúvidas de que um dos principais pontos de torção será o posicionamento face à União Europeia, onde as divergências ideológicas de fundo têm mais implicações em decisões políticas muito concretas.



Porfírio Silva, 9 de julho de 2024
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