Deixo aqui, para registo, o meu editorial de hoje no Acção Socialista, que assino na responsabilidade de diretor dessa publicação.
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Ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz
Ontem, numa rua de um bairro de Lisboa, pessoas, muitas
pessoas, foram indiscriminadamente mandadas encostar à parede e sujeitas a
revista policial, no quadro de um aparato mandado montar para mostrar essa
humilhação coletiva a determinados grupos étnicos ou raciais (embora,
cientificamente, não existam raças humanas, mas apenas a raça humana). Uma
operação desta natureza não podia acontecer sem motivos fortes – e desses
motivos, suficientemente concretos, a opinião pública devia ser adequadamente
esclarecida. Ora, segundo se sabe, desse espetáculo lamentável resultou a
apreensão de uma arma branca e de canábis. A desproporção entre os meios e os
resultados, mais as declarações do primeiro-ministro, denunciam o fito
puramente propagandístico da operação. As forças policiais estão a ser usadas
para fins político-partidários, isto é, para tentar obter uma transferência de
votos entre partidos da direita portuguesa, à custa do respeito que devemos a
todas as pessoas que vivem na nossa comunidade.
Não por acaso, a zona escolhida para aquela humilhação
coletiva e seletiva é conhecida pela forte presença de imigrantes. O governo
não se atreveria a produzir este espetáculo numa rua de Cascais ou do Estoril,
porque, aí, as perceções preconceituosas que alimentam estas manobras não
funcionariam no sentido desejado pelos instigadores. Seguindo uma estratégia de
cavar divisões, o governo está, repetidamente, a criar as condições para uma
fratura social que julgávamos impossível na nossa sociedade. Não se trata de
pretender que não havia racismo entre nós, porque havia. Trata-se de que, até
há pouco, não havia nenhuma pessoa decente e com responsabilidades públicas que
enveredasse pelo caminho de explorar o racismo existente, latente, subliminar,
para espicaçar perceções distorcidas, erradas e contrárias aos dados existentes,
apenas como parte de um jogo de pequena política. Hoje, essa espécie, que devia
ser rara, tem um espécime na chefia do governo.
Efetivamente, pelo que diz, o primeiro-ministro parece ter
sido o mandante desta ação. Não deu nenhuma justificação, nenhuma explicação,
nem apresentou nenhum resultado que, pelo menos remotamente, indiciasse
qualquer lógica assente na legalidade democrática que estivesse subjacente ao
teatro público montado para humilhar pessoas que vivem entre nós e que
contribuem para a nossa humanidade comum. A sua explicação é vergonhosa, quando
assume que labora na manipulação de perceções.
O primeiro-ministro foi capturado pela extrema-direita. Não
somos capazes de precisar se o primeiro-ministro sabe de história o suficiente
para compreender que encontramos antecedentes destas práticas de humilhação de
grupo para fins políticos na estratégia do partido nazi na Alemanha da primeira
metade do século passado ou se é levianamente que o primeiro-ministro entra
pelo caminho infernal do acirrar divisões de grupo na sociedade do Portugal
onde vivemos.
O que sabemos é que todos os portugueses de paz,
respeitadores da Constituição e da legalidade, aderentes aos princípios
fundadores dos direitos humanos, foram ontem colhidos por aquela ação numa rua
de Lisboa. O que sabemos é que somos todos ameaçados com ações, como aquela,
que pretendem acirrar a desconfiança, e até o despeito e a raiva, entre pessoas
que são, desta forma, acantonadas em identidades grupais que alguns pretendem
transformar em antagónicas. O que sabemos é que todos perdemos com esta ameaça,
politicamente inspirada, à concórdia entre membros da comunidade dos humanos
que vivem no nosso país. Por isso, ontem fomos todos encostados à parede no
Martim Moniz, e isso foi obra de quem nos governa e trai, por truque político,
os seus deveres e responsabilidades.
(Publicação original aqui: Ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz .)