15.11.24

Fórum Europeu sobre o Futuro dos Partidos Políticos


Republico aqui, para registo, o texto que publiquei na edição de ontem do Acção Socialista.

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Teve lugar, na passada semana (7 e 8 de novembro), em Roma, mais uma edição do Fórum Europeu sobre o Futuro dos Partidos Políticos, no qual tive a oportunidade de participar, a convite dos organizadores. Dessa realização dou nota sumária neste apontamento.

O Fórum tem vindo a decorrer há já sete anos, organizado pela Fundação Friedrich Ebert, em colaboração com o Instituto Universitário Europeu, de Florença, e, este ano, reuniu académicos (principalmente de ciência política) e políticos no ativo desenvolvendo a sua investigação e/ou ação na Áustria, Bulgária, Chéquia, Croácia, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, França, Grécia, Hungria, Itália, Polónia, Portugal, Roménia, Suécia, Suíça e Estados Unidos da América.

O tema deste ano foi “Para além da social-democracia: a transformação da esquerda nas sociedades do conhecimento emergentes” e foi abordado neste Fórum a partir dos trabalhos que se encontram refletidos no livro Beyond Social Democracy: the Transformation of the Left in Emerging Knowledge Societies, publicado este ano pela Cambridge University Press, tendo como organizadores Silja Häusermann, da Universidade de Zurique, e Herbert Kitschelt, da Universidade de Duke (na Carolina do Norte, EUA).

Sem prejuízo de, em edições futuras, darmos informação mais circunstanciada sobre os debates ocorridos neste Fórum, deixamos, desde já, breve apontamento sobre algumas das questões mais salientes que foram, nesta ocasião, abordadas.

A grande novidade das discussões deste ano, que, mais uma vez, se integram numa linhagem de investigação sobre o campo da social-democracia como corrente de ação política, e que (desde há alguns anos) nunca deixam de refletir sobre o chamado declínio eleitoral da social-democracia, foi o enquadramento mais abrangente: em vez de pensarmos apenas nos partidos da social-democracia tradicional (incluindo os que escolheram uma das designações historicamente equivalentes, como sejam os socialistas democráticos ou os trabalhistas), pensamos num campo mais plural da esquerda democrática. Isto é: há, hoje, em vários países, formações políticas que, concorrendo eleitoralmente com os tradicionais partidos da social-democracia, não deixam de ter um ideário também ele social-democrata (mesmo que não o admitam explicitamente). Ora, no quadro dos desafios enfrentados hoje pela esquerda democrática, não deixaria de ser pertinente pensar a ação política sem desatender da importância de contar com esses partidos para construir blocos políticos e sociais amplos, capazes de fazer avançar a ação social-democrata para além das fronteiras orgânicas estritas dos tradicionais partidos desse campo.

Um exemplo das questões suscitadas por esta linha de análise é o seguinte: um partido da área da social-democracia pode escolher um posicionamento político, face a outras partidos da esquerda democrática e face a partidos da direita, que o engrandece eleitoralmente à custa desses outros partidos quando, afinal, eles poderiam ser futuros parceiros. Isso pode garantir um certo sucesso eleitoral relativo, no imediato, mas sem retirar um voto à direita - e, portanto, potencialmente, ficando-se pela redistribuição de votos dentro da esquerda e deixando à direita a maior margem de manobra. Entretanto, essa não é a única opção: um partido da social-democracia tradicional pode, mesmo que com algum risco político, procurar captar eleitorado que oscila entre a direita democrática e a esquerda democrática, de modo a conseguir ampliar a força do conjunto da esquerda democrática, mesmo que isso implique perder algum eleitorado para outros partidos dessa esquerda democrática. Esta opção poderia ser mais arriscada para um determinado partido, mas tornar-se mais vantajosa para o conjunto do campo da social-democracia. (Em termos de teoria dos jogos, o risco seria que a estratégia “egoísta” tenderia a ser a “estratégia dominante”, quer na ótica da competição entre partidos da esquerda, quer na ótica da competição entre esquerda e direita.)

Evidentemente, este tipo de raciocínio não é um raciocínio puramente tático, nem puramente eleitoral. Este tipo de raciocínio torna-se relevante para responder, quer à realidade da crescente fragmentação política e partidária que se tem verificado em muitas democracias, quer para responder politicamente a um desafio de fundo que enfrentam as esquerdas em muitos países. O desafio de fundo é a existência de várias esquerdas, nem sempre compatíveis entre si no que toca a definir rumos para as políticas públicas: desde uma esquerda mais tradicional, com opções políticas marcadamente desenhadas a partir da economia e do programa de redistribuição como caminho para menor desigualdade e mais justiça social, passando por uma esquerda mais focada em valores liberais ou libertários, ligados à promoção dos direitos individuais como dimensão irrenunciável de uma democracia aprofundada, até esquerdas mais conservadoras em termos de valores, embora reivindicativas em termos socioeconómicos (por exemplo, as tensões acerca da imigração ou das agendas de novos direitos, tensões envolvendo algumas correntes da esquerda). O ponto é que esta análise não se esgota na consideração de posicionamentos ideológicos: ela corresponde, na realidade de muitos países, a diferenças profundas na composição social dos eleitorados de diferentes partidos de esquerda. Portanto, não é o “mero” campo das ideias, ou do simbólico, que está em questão; estão em questão diferenças sociais reais que reclamam soluções políticas diferentes e, por vezes, até, pelo menos à primeira vista, contraditórias.

Não sendo possível, no espaço de um artigo de jornal, dar nota da riqueza de todos os debates que tiveram lugar neste Fórum, voltaremos, logo que possível, a reportar aspetos do rico conteúdo deste Fórum.

Entretanto, deixamos uma sugestão. O livro que, como mencionado acima, providenciou os trabalhos de partida para este Fórum, encontra-se disponível, para ser descarregado gratuitamente, de forma legal, no sítio da editora, no seguinte endereço: Beyond Social Democracy: the Transformation of the Left in Emerging Knowledge Societies .



Porfírio Silva, 15 de novembro de 2024
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5.11.24

Recusemos as agendas míopes




Deixo aqui, para registo, o editorial do Acção Socialista publicado na edição de ontem, 4 de novembro de 2024, da minha responsabilidade como diretor desse órgão de informação do PS.


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Recusemos as agendas míopes


Porque é que os partidos socialistas e sociais-democratas não são hoje revolucionários e são partidos gradualistas, que procuram melhorar a condição das pessoas cuja vida depende do seu trabalho, partidos que trabalham para avanços incrementais, que não jogam tudo ou nada numa “futura sociedade socialista”, que procuram melhorias passo a passo? Não é porque tenham perdido o sentido da utopia; é porque aprenderam, historicamente, que o foco exclusivo na agenda do proletariado não permitia progressos sociais significativos. Compreenderam que uma agenda mais vasta – a agenda da democracia, a agenda da construção de instituições democráticas – que não interessa apenas ao proletariado, mas também a outros grupos sociais – dava mais ferramentas de luta, reunia forças mais vastas, abria mais portas para concretizar objetivos de primeira importância para o interesse dos trabalhadores. E essas conquistas podiam enraizar-se mais solidamente em instituições democráticas. É dessa compreensão que nasce o socialismo democrático, ou a social-democracia, e que nascem os avanços sociais que têm sido possíveis por ação desta corrente política há mais de um século. A agenda do mundo do trabalho obteve vitórias mais profundas e duradouras por se ter incrustado na agenda da república democrática.


Hoje, de novo, os combates dos socialistas contra as desigualdades injustas, pelo trabalho como expressão de humanidade que não pode ser encarado como uma mercadoria, pela solidariedade organizada, esses combates só podem ser eficaz e eficientemente travados e vencidos se forem embutidos numa agenda mais vasta – a agenda dos direitos humanos. A nossa Constituição, ao definir Portugal, logo no seu artigo 1º, como uma República baseada na dignidade da pessoa humana, dá o rumo: o exercício de todos os direitos, bem como a assunção de todos os deveres, tem como horizonte a dignidade da pessoa humana. De toda a pessoa humana. Hoje, num mundo empestado de tentativas sistemáticas para dividir os povos em categorias estanques com critérios de oportunismo e de propaganda (como aqueles que falam de “portugueses de bem” para diminuir os que não sejam seus apaniguados), o primeiro inimigo de qualquer luta por direitos sociais é a desconsideração dos direitos humanos na sua universalidade. Num mundo atacado por populismos agressivos, a única estratégia possível para defender as conquistas sociais é não vacilar em matéria de direitos humanos, em matéria de dignidade da pessoa humana. Qualquer cedência ou fraqueza nossa em matéria de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana será paga, mais cedo ou mais tarde, em retrocessos sociais.


Essa é uma razão sólida para recusarmos agendas míopes, agenda imediatistas (pensar apenas na próxima eleição faz-nos correr o risco de perder a alma… e perder a próxima eleição).


O Secretário-Geral do PS, intervindo no encerramento do debate na generalidade do OE para 2025, deu ao país um bom exemplo prático de como se recusam agendas míopes. Afirmou, a dado ponto: “Para o atual Governo – como para toda a Direita – o conceito de Segurança limita-se à segurança da integridade física e da propriedade. Uma resposta que acaba sempre por falhar, porque não entendem que as sociedades mais seguras são as mais coesas e estáveis – e que as sociedades com maiores níveis de exclusão e de desigualdades são também as mais inseguras e as mais violentas.” Lá está: uma agenda míope para a segurança é uma agenda meramente securitária; uma agenda de vistas largas, uma agenda responsável para a segurança entra em conta com a coesão social. E, logo de seguida, disse ainda Pedro Nuno Santos: “Sabemos que, quando a insegurança e a instabilidade são endémicas, a esperança pode ser derrotada pelo medo. E todos sabemos que há na Política quem viva do medo, quem se alimente do medo, quem promova o medo.” E logo reafirmou, em nosso nome, em nome dos socialistas, que derrotaremos os que promovem o medo. Lá está: uma agenda de vistas largas para a segurança é uma agenda que recusa o medo, que recusa a promoção do medo.


É disso que precisamos, precisámos sempre e precisamos especialmente nos tempos difíceis que vivem hoje os democratas por todo o mundo: recusar agendas míopes, recusar agendas oportunistas, recusar ceder ao medo (e recusar a promoção do medo), lutar no quadro de uma ampla agenda democrática, de uma agenda de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana – a única agenda capaz de reunir as forças suficientes para impedir recuos nas conquistas sociais. E, tendo a ventura de viver num país com uma Constituição democrática, traçar uma linha clara assente na proteção constitucional da dignidade da pessoa humana e na defesa da legalidade democrática.


Porfírio Silva, 5 de novembro de 2024
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22.10.24

Viabilização democrática




Deixo aqui, para registo, o editorial do Acção Socialista, publicado na edição de 22 de outubro, da minha responsabilidade como diretor desse órgão de informação do PS.

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O Partido Socialista, por deliberação unânime da Comissão Política Nacional, tomada ontem à noite, decidiu abster-se nas votações na generalidade e final global do Orçamento de Estado para 2025. Em aberto fica, para o período de discussão e votação na especialidade, a capacidade do Grupo Parlamentar para tentar evitar os piores traços da proposta governamental, sem interferir com aquilo que o Governo da AD entende dever ser o saldo orçamental para o próximo ano.

O PS não vai viabilizar o orçamento pelas suas qualidades. Nenhuma voz na Comissão Política Nacional defendeu a bondade deste orçamento. Nem o fará convencido de que o Governo de Luís Montenegro tenha competência para continuar o que estava a correr bem ou corrigir o que precisava de ser melhorado do ciclo político anterior. Nenhuma voz na reunião de ontem à noite se mostrou distraída da incompetência evidenciada pelos membros do governo que tenham mexido uma palha, nem da insustentabilidade do rumo que está a ser traçado. A razão é simples: a equipa de Montenegro é apenas uma comissão eleitoral em hiperatividade de curto prazo, sem visão de futuro que não seja a ideologia dos chavões velhos da direita lusa. No governo desta AD não resta nenhum traço de ideal reformista a pensar no futuro sustentável dos portugueses que vivem do seu trabalho.

Sem poder perscrutar todas as razões que levaram ao voto de cada comissário político do PS a favor da abstenção no OE, acredito que uma razão ponderosa nos assistiu a todos. Essa razão é: a distorção dos mecanismos constitucionais, operada pelo atual Presidente da República, confunde a votação do orçamento anual com uma moção de censura ou uma moção de confiança. A aprovação da primeira ou a rejeição da segunda implica a queda do governo – mas a rejeição de uma proposta de OE não tem essa implicação. Digo: não o implica no texto constitucional; implica-o na avariada leitura política de um PR que, pelos vistos, se dispunha a dissolver pela terceira vez o Parlamento no decurso dos seus mandatos. Em vez de aplicar a Constituição da República Portuguesa, que, sabiamente, prevê mecanismos diferenciados para ultrapassar situações distintas, dando espaço institucional para que funcione a escolha política no espaço democrático, Marcelo Rebelo de Sousa introduziu uma prática presidencial que corresponde à chalaça “para quem só conhece martelos, tudo no mundo são pregos”. Passou a interpretar o regime como uma espécie de presidencialismo do primeiro-ministro e, repetidamente, afunila os seus próprios poderes, autolimitando por antecipação a sua intervenção, que parece agora reduzir-se à infinita repetição de dissoluções da Assembleia da República. Ou à repetição da respetiva ameaça.

Neste contexto, com Marcelo Rebelo de Sousa, de braço dado com Luís Montenegro, a prometer mais uma crise política fora de calendário, ameaçando com umas eleições poucos meses depois das anteriores, algo que seria incompreensível para a generalidade dos cidadãos e agravaria a desafeição do povo com a política, alguém tinha de ter um comportamento responsável. Coube ao PS, mais uma vez, esse papel.

Ser o adulto na sala pode exigir sacrifícios, mas, finalmente, é parte daquilo que uma oposição forte e responsável pode fazer pela democracia. Não temos pressa, porque sabemos para onde vamos. É um sacrifício deixar passar um mau orçamento, mas estamos conscientes de que o fazemos pela preservação das instituições democráticas. Reforçar o nosso trabalho de alternativa é outra face dessa ação democrática – e nisso nos concentramos.

(Publicação original aqui: Viabilização democrática.)

Porfírio Silva, 22 de outubro de 2024
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11.9.24

O DEBATE. Trump vs Kamala, claro.

10:04



Para um ser racional, capaz de distinguir entre factos e alucinações e capaz de pesar a qualidade dos argumentos, Kamala venceu claramente o debate. Trump fartou-se de mentir e, mais do que isso, de inventar completos disparates. A questão é saber se isso serve de muito. De alguma coisa serve: se Kamala tivesse mostrado impreparação, ou se tivesse descambado em assuntos melindrosos para a sua base de apoio potencial (como a situação em Israel e em Gaza), o seu eleitorado desmobilizaria em alguma medida. Mas este tipo de debate, com aquele eleitorado neste contexto, não é decisivo. Para distinguir entre um facto e uma bizarria, é preciso ter algum conhecimento dos factos. Para distinguir entre um bom argumento e um pseudo-argumento sem lógica nenhuma, é preciso ter um certo grau de racionalidade em operação. Mais: para ter uma avaliação democrática é preciso ser um democrata: os que continuam a aplaudir a recusa de Trump em aceitar o resultado das anteriores eleições não se chocam nada com a insistência nessa loucura. A questão é que o eleitorado de Trump tem mais disto do que o eleitorado de Kamala (nenhum dos eleitorados é homogéneo, nenhum é puro e santo, nem nos EUA nem em lado nenhum, é uma questão de proporção). Não vale a pena rasgarmos as vestes, contudo. No imediato, porque Kamala pode perfeitamente vencer, até com o apoio dos republicanos racionais e democratas que percebem o perigo para a democracia e vêm no trumpismo a destruição do Partido Republicano tradicional. O debate contribuiu para esse caminho. Por outro lado, porque, embora em graus diferentes, esta fragilidade é característica das democracias representativas tal como elas realmente existem: a falta de mecanismos para os cidadãos terem maior poder real na decisão política, mais quotidianamente e não apenas de quatro em quatro anos, promove o desconhecimento dos factos e das consequências das políticas seguidas. Por não terem considerado devidamente o problema do afastamento entre representantes e representados, as chamadas "democracias ocidentais" ficaram mais vulneráveis à demagogia e à manipulação. É melhor viver nestas democracias imperfeitas do que em sociedades esmagadas por ditaduras, como acontece na Rússia, na China, na Arábia Saudita, ... (a lista é imensa). Mas corremos o risco de perder essa vantagem se não corrigirmos os nossos defeitos fundamentais. Que a "democracia representativa real" não acabe como o "socialismo real"...


Porfírio Silva, 11 de setembro de 2024
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3.9.24

OE 2025: falar claro sobre o país




Deixo aqui, para registo, o editorial do Acção Socialista, publicado na edição de 2 de setembro, da minha responsabilidade como diretor desse órgão de informação do PS.

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OE 2025: falar claro sobre o país

Há quem pense que negociar o Orçamento de Estado, neste caso o OE para 2025, é apenas uma questão de conversa leve para entreter as audiências. E, pior, há quem ache que pode forçar os deputados do PS a votar sob chantagem e sem que o governo da AD faça minimamente o seu trabalho para encontrar os votos parlamentares que o povo não lhes deu. E também há, na esquerda da esquerda, quem ache que pode dizer ao PS como assumirmos as nossas responsabilidades e quem acredite que não somos capazes de pensar pela nossa cabeça acerca do interesse nacional e do interesse da maioria do povo português que vive do seu trabalho.


A posição do PS é que estamos a tratar de um assunto sério (embora não seja a única matéria a merecer debate político) e que, por isso, o país pode continuar a contar com a nossa responsabilidade e com o nosso compromisso com as propostas e com os valores com que nos apresentámos ao eleitorado.
Foi essa responsabilidade e verticalidade, com clareza e transparência, que, ontem, mais uma vez, em Tomar, assumiu o Secretário-Geral do PS. Disse, na ocasião, várias coisas muitíssimo acertadas:

(1) O PS só pode começar a negociar o OE quando receber a informação necessária para avaliar a situação do país. Evidente: o contrário seria irresponsabilidade.

(2) O PS não aceitará um OE que tenha implícitos os regimes IRS e IRC que a AD propôs na AR. Claro: se têm uma pequeníssima maioria e querem impor a sua visão unilateral, é porque não querem aprovar o OE nem estão a ser sérios com o PS.

(3) Se as autorizações legislativas relativas aos regimes fiscais forem aprovadas com a IL e o CH, é com esses partidos que o governo tem de aprovar o OE. Claro: a AD não pode querer fazer governação séria com a técnica das duas caras, que consiste em pedir ao PS os votos para fazer a política dos radicais de direita.

(4) Cumpridas as três condições anteriores, então apresentaremos as nossas propostas para o OE. Certo: continuamos a ter uma posição construtiva, como temos tido desde que se iniciou esta legislatura. Coisa de que, pelo contrário, a AD não tem dado quaisquer mostras.

Acresce: a AD, com esta maioria frágil, só pode querer aprovar o OE com cedências relevantes ao partido de oposição com que quase empatou. Certo: a democracia é esse pluralismo, não é ganhar por uma unha negra e querer governar sem ter em conta os outros eleitos pelo voto do povo - de cujos votos, aliás, precisam.

Pedro Nuno Santos posicionou o PS neste debate de forma clara, correcta, construtiva e responsável. Não fez nenhuma exigência maximalista. Não bloqueou nenhuma possibilidade. Deixou caminho aberto para que Luís Montenegro se deixe de jogos florais e assuma as suas responsabilidades.


(A publicação original pode ser encontrada aqui: EDITORIAL. OE 2025: Falar claro sobre o país )


Porfírio Silva, 3 de setembro de 2024
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18.7.24

Senhor PM, a tática da má-fé prejudica a democracia

09:55

A propósito do debate do estado da nação, ontem, no Parlamento, publiquei ontem este editorial no Acção Socialista, que aqui deixo para registo.

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SENHOR PM, A TÁTICA DA MÁ-FÉ PREJUDICA A DEMOCRACIA

Ninguém critica o Governo Montenegro por não ter feito tudo em 100 dias. Tal como ninguém critica que o governo da direita aproveite um certo grau de convergência interpartidária registada na última campanha eleitoral para as legislativas em torno de certas matérias para as fazer avançar. Como aconteceu com as reivindicações dos professores relativas à sua carreira, que teriam registado avanços qualquer que fosse o resultado das legislativas. Não será o PS a cometer esse erro, até porque temos consciência de que não conseguimos fazer tudo o que planeámos, num ciclo político que enfrentou uma crise sanitária sem precedentes, uma guerra na Europa e uma crise inflacionária com uma dimensão desconhecida para muitos. Não será o PS a cometer esse erro, porque sabe que há muito por fazer, como sempre dissemos, apesar de o seu ciclo de governação ter sido interrompido de forma extemporânea e artificial.

 

O que se critica ao Governo é que seja mais um departamento de propaganda do que um executivo nacional. Que tente enganar o país e fazer passar por suas medidas que herdou, legisladas e em execução: como foi o caso com a descida do IRS. Que não se importe de arriscar a credibilidade internacional do país por pura tática política: como foi o caso com a tentativa de denegrir o estado das finanças públicas, no que só recuou depois de desmentido pela Comissão Europeia. O que se critica ao Governo é a tomada de medidas que agravam as desigualdades em prejuízo dos que mais precisam, como é o caso da operação fiscal justificada como política para os jovens. O que se critica é a arrogância da incompetência, como tem sido demonstrado na área governativa da Saúde, com tantos casos que seria difícil ter aqui espaço para elencar todos. O que se critica ao Governo é que se esforce mais para parecer que governa do que para governar.

 

Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, tem de criticar-se o Governo por se esgotar na guerrilha política e mostrar completo alheamento face à responsabilidade, que é sua, de trabalhar pela estabilidade da governação que propõe ao país.

 

Se um governo minoritário, liderado por um primeiro-ministro cujo partido tem apenas uma bancada parlamentar da mesma dimensão da bancada do maior partido da oposição, claramente insuficiente para governar sozinho, aproveita o momento solene do debate parlamentar do estado da nação para atacar em puro “politiquês” o principal partido da oposição, mostra o nível da sua (fraca) ambição. Luís Montenegro não procura tempo e apoio para desenvolver políticas públicas que continuem o esforço de desenvolvimento do país, porque se o quisesse apresentaria ao Parlamento as suas ideias para construir as soluções que o permitissem. Luís Montenegro não procura construir convergências a partir da pluralidade, que é o esforço normal e necessário em democracias onde a representação popular é ela mesma plural – e até, cada vez mais, fragmentada –, continuando, ao contrário, num espírito de desforra que não pode ser bom conselheiro: como exibiu hoje, de novo, no parlamento, classificando como “usurpação” a constituição, em 2015, de uma maioria das esquerdas para interromper a governação “além da troika” (esquecido, talvez, daqueles que, no seu campo político, tinham já anteriormente teorizado a razoabilidade de explorar todos os mecanismos constitucionais para criar uma maioria política, mesmo contra a força que chegasse em primeiro lugar).

 

Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, o mesmo tem de ser criticado por querer ser o Governo dos 300 dias. Quando o PS oferece disponibilidade para discutir, sem linhas vermelhas, as grandes opções contidas no orçamento de Estado, o Governo procura saturar a paciência dos socialistas com agressividade verbal e puro desdém. O Governo não quer ter condições para governar. O Governo quer, apenas, poder continuar em campanha eleitoral – e, para isso, procura umas eleições rápidas. Quem conduz politicamente este Governo quer repetir a tática do “deixem-nos trabalhar” e das “forças de bloqueio”, esquecendo que, passados todos estes anos depois da primeira volta dessa tática, a instabilidade política tem um preço exorbitante, que é a progressão do extremismo populista. A escolha da agressão constante ao maior partido da oposição, tentando que se torne para os socialistas insuportável negociar com quem assim se comporta, exibe uma má-fé política de quem, depois, proclama uma abertura retórica nunca concretizada para “consensos”.

 

A democracia não precisa de falsos consensos. A democracia não precisa de que estejamos todos de acordo; precisa que as forças democráticas sejam capazes de trabalhar por compromissos razoáveis e equilibrados, compromissos que não ignorem as diferenças políticas e não impliquem a renúncia aos valores fundamentais de cada um dos interlocutores. Pretender que, em democracia, a vontade do Governo prevalece “porque sim”, mesmo sem apoio maioritário, desconsiderando a representação cidadã que foi confiada também a outros partidos, é negar a própria democracia. Usar retoricamente a necessidade de compromissos e, depois, fazer tudo para afastar quem está disposto a discutir peças tão decisivas como o orçamento de Estado, é usar de má-fé. É preciso que o senhor primeiro-ministro compreenda que a má-fé no debate democrático vai contra a própria essência deliberativa da democracia – e vai de par com a sua tendência para desvalorizar o parlamento. A má-fé, a retórica do diálogo usada como mero ingrediente de uma estratégia de confrontação e rutura, com meros intuitos eleitoralistas, é deslealdade à própria democracia. Senhor Primeiro-Ministro, essa tática da má-fé prejudica a democracia – e a vida da democracia, estando difícil por todo o lado, bem dispensa que se ofereçam mais oportunidades aos que engordam na instabilidade e no clima de confrontação extremada.


Porfírio Silva, 18 de julho de 2024
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9.7.24

Contributo para compreender a política em França nos próximos dias

A primeira reação face aos resultados das eleições legislativas antecipadas de 7 de julho em França foi de alívio: a "barragem republicana" impediu a extrema-direita de chegar ao poder, Já escrevi sobre isso, na segunda-feira a seguir aos factos, um editorial no Acção Socialista: Derrotar a extrema-direita, não apenas por agora, mas duradouramente. A vitória da coligação pré-eleitoral de esquerda, a Nova Frente Popular, na qual o Partido Socialista Francês toma parte, é motivo de esperança - mas também de atenção e reflexão.

Contudo, para refletir precisamos de alguma informação de base. E, dadas as complexidades do sistema político francês, e das próprias minudências do sistema eleitoral, às vezes isso não é fácil (ainda menos para quem não consegue recolher informação na língua dos franceses). Essa é a motivação para deixar aqui alguma informação e alguns elementos de problematização:
- um olhar sobre os resultados das legislativas 2024;
- a composição interna dos três grandes blocos;
- alguns tópicos que podem ser úteis para interpretar o que virá nos próximos dias ou nas próximas semanas.
  



O ESSENCIAL DOS RESULTADOS ELEITORAIS



Para começar, os dados quantitativos: mapa da França com os eleitos por círculo (só os círculos dos residentes em território continental europeu):




                 





A NFP (Nova Frente Popular) ficou em primeiro lugar; o Ensemble, que junta os centristas em torno de Macron, ficou em segundo lugar; o Rassemblemente National (RN, extrema-direita), com o apoio de uma parte do LR (Os Republicanos, que costumavam ser direita tradicional) ficou em terceiro lugar; LR (entre Os Republicanos, aqueles que recusaram juntar-se à extrema-direita) ficou em quarto lugar. 

Sendo a Assembleia Nacional composta por 577 deputados, faz-se maioria absoluta com 289 deputados. Note-se que o governo que agora deverá cessar funções, da cor do Presidente Macron, não dispunha de maioria absoluta no parlamento, governando com recurso cada vez mais frequente a um mecanismo constitucional que permite ao governo fazer passar leis sem as submeter a voto parlamentar normal (nessa circunstância, a única maneira de travar essa lei é apresentar e fazer aprovar uma moção de censura ao governo, derrubando-o).

Onde ganhou a Nova Frente Popular:






Onde ganhou o Ensemble:





Onde ganhou a extrema-direita (RN e Republicanos que a apoiaram):




Uma nota de precaução sobre os resultados: se é certo que já se sabe quem foi eleito e quem não foi eleito (os nomes dos deputados eleitos), ainda não se sabe exatamente a distribuição por grupos políticos. Os números acima não são, por isso, absolutamente certos, havendo dissonância entre várias fontes consultadas (em princípio, não afetando a correlação de forças global).  A que se deve essa estranha situação? Designadamente, e especialmente, ao facto de estarem em curso algumas dissidências dos Insubmissos - devidas, nomeadamente, à forma sectária como Mélenchon elaborou as listas, "purgando" alguns dos seus camaradas que o haviam criticado, nomeadamente tentando afastar deputados do seu partido com mandato na anterior Assembleia Nacional. Deu-se, inclusivamente, o caso de um candidato excluído dos Insubmissos ter mantido a sua candidatura contra um (outro) candidato dos Insubmissos (integrado na NFP) e ter ganho a eleição. Os números acima são os que podíamos ler no Le Monde ao fim do dia de segunda-feira.




SOBRE A COMPOSIÇÃO INTERNA DOS TRÊS GRANDES BLOCOS



Importa conhecer a composição de cada um dos grandes grupos, na medida em que eles estão longe de ser homogéneos e muito do que pode acontecer nos próximos tempos pode passar por reconfigurações que ponham em causa as formas apresentadas aos eleitores.

Esta informação não foi fácil de obter, a maior parte dos órgãos de comunicação social não tinha esta informação durante a elaboração deste texto e, finalmente, usamos a informação da FranceInfo em linha (obrigado, Maria João Pires). Os dados globais não correspondem à informação anterior, mas dão uma distribuição que, mesmo que seja aproximada, dá uma boa visão global da distribuição de forças dentro de cada um dos três grandes blocos.



Distribuição dos assentos dentro da Nova Frente Popular:

LFI (Insubmissos, liderados por Mélenchon): 71 deputados

Socialistas (que incluem o Partido Socialista Francês, mas onde este não é sequer hegemónico): 64  deputados

Ecologistas: 33 deputados

Partido Comunista Francês: 9 deputados

Outros: 3 deputados

Há deputados eleitos por outras (pequenas) formações, regionalistas, dissidentes dos Insubmissos que conseguiram ser eleitos contra o candidato oficial, socialistas eleitos fora das listas do NFP, etc., que podem vir a alinhar com a estratégia da NFP, apesar de não lhe pertencerem formalmente.







Distribuição dos assentos dentro do Ensemble: 

Renascimentos (Macron): 98 deputados

MoDem: 34 deputados

Horizons: 26 deputados 

União dos Democratas e Independentes: 1 deputado

Outros: 4 deputados







Distribuição dos assentos na extrema-direita e aliados:

Rassemblemente national (RN): 126 deputados

RN e Republicanos: 17 deputados







CHAVES PARA O FUTURO



Como disse na noite eleitoral (na TF1) um alto dirigente do Partido Socialista Francês, acabou o bipartidarismo. É verdade que esse bipartidarismo já há muito que era um "bi-bloquismo", porque o enfrentamento era entre dois blocos, de composição complexa cada um deles, e não entre dois partidos, mas, agora, temos uma situação qualitativamente nova: estão em campo, não dois, mas três grandes blocos políticos, eventualmente em curso de recomposição (por exemplo, é interessante saber o que farão no futuro Os Republicanos da ala histórica, que, sendo bastante conservadores, não alinharam com a extrema-direita e, de momento, parecem pouco inclinados a ceder ao namoro dos Macronistas, escaldados com o tratamento que o Presidente lhes deu no passado. E têm, com um conjunto de aliados próximos, cerca de 60 deputados.) De qualquer modo, a situação é nova e poderá evoluir mais ou menos rapidamente nos próximos tempos.

Nenhuma grande força política em França estará, agora, apenas a pensar no futuro imediato. Todos deverão estar conscientes de que uma solução imediata que rapidamente se revele fraca e incapaz de responder à gravidade da situação provocará, daqui a um ou dois anos, uma crise ainda maior e, então, uma vitória mais provável da extrema-direita. Na realidade, o cenário é confuso. Todos estarão, pois, a jogar em vários tabuleiros ao mesmo tempo.


Os Macronistas foram os principais beneficiários da "barragem republicana" à extrema-direita


Desde logo, não é fácil interpretar os resultados da segunda volta destas eleições: qual é o peso real de cada bloco? O partido de Le Pen, tendo, graças à “frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas mobilizadas por Macron. Contudo, essa vantagem tem de ser relativizada de dois modos. Por um lado, a frente de esquerda e o bloco centrista não concorreram em todos os círculos. Mais precisamente, a NFP desistiu (principalmente a favor dos centristas) em cerca de 130 círculos e os centristas desistiram (principalmente a favor da NFP) em cerca de 80 círculos. Nos círculos onde desistiram tiveram zero votos - mas os seus eleitores não desaparecera, embora não sejam contabilizados. Quem perdeu mais, nessa dimensão, foi a NFP, que desistiu em mais 50 círculos do que os centristas: afinal, foram, talvez, os Macronistas os que mais ganharam com a estratégia proposta pela esquerda frentista. Este efeito é reforçado pelo facto de a NFP ter sido afastada na primeira volta em mais círculos do que a extrema-direita (a extrema-direita foi eliminada em 92 círculos na primeira volta, a NFP foi eliminada em 131 círculos). Noutro sentido, há que contar com os candidatos que, tendo sido eleitos à primeira volta... não tiveram votos na segunda volta: a extrema-direita elegeu 39 na primeira volta, a NFP 31, e foram os únicos a eleger um número significativo na primeira volta - e, portanto, os únicos prejudicados na fotografia em percentagem da segunda volta. No conjunto, enquanto o resultado "natural" da primeira volta dava 306 triangulares, finalmente só aconteceram 89, o que mostra o grau de distorção da percentagem da segunda volta.


A aprendizagem por fazer

Em países como a Alemanha ou os Países Baixos, e outros onde os resultados eleitorais levam os partidos a procurar constituir maiorias para poderem governar, sem a ilusão de durarem muito governos minoritários, o que estaria em perspectiva, agora, em França, seria alguma espécie de entendimento entre a NFP e os centristas reunidos em torno de Macron. Não parece, contudo, que isso seja fácil. Macron, com o seu egocentrismo, tornou-se um símbolo odiado da arrogância política. É difícil que a esquerda, no seu conjunto, aceite colaborar ostensivamente com ele. Simetricamente, a componente Mélenchon da NFP é tóxica, não apenas para os adversários da direita e do centro, mas igualmente para outras forças de esquerda, para quem o desbragamento verbal e o sectarismo do líder dos Insubmissos é inaceitável - tal como já é inaceitável mesmo para alguns dirigentes dos Insubmissos. Mas Mélenchon é o líder dos Insubmissos e, portanto, da componente maioritária da NFP - embora muitos tenham dito e redito, durante a campanha eleitoral, que ele não seria o seu candidato a primeiro-ministro. 
Haverá, em algumas componentes da NFP, a tentação de romper e aceitar alguma forma de cooperação com os Macronistas - mas é muito duvidoso que seja aceitável romper, assim, sem mais nem menos, uma proposta que se apresentou aos eleitores e cujo programa foi sufragado em questões muito concretas (como a idade da reforma). Não seria um bom princípio enganar assim os eleitores - e seria, mais tarde, um peso difícil de carregar em novo confronto eleitoral.
Os Macronistas, por seu lado, tentarão, provavelmente, juntar forças com uma parte da direita tradicional, designadamente os Republicanos e seus aliados, para tentarem compor um bloco mais numeroso que a NFP, mas é duvidoso que sejam, assim, recompensados, por estes anos em que Macron andou a tentar desgraçar todos os partidos de esquerda e todos os partidos de direita a favor da sua estratégia de hegemonia. 


Entre o curto e o médio prazo

Durante um ano, a Assembleia Nacional não pode ser dissolvida. O atual governo, Macronista, não tem maioria no parlamento e governou nos últimos dois anos com recurso frequente a um mecanismos constitucional que permite ao governo "impor" uma determinada lei fazendo com que ela só possa ser travada pela aprovação de uma moção de censura e consequente derrube do governo. Assim sendo, não é de descartar que Macron, aproveitando da vantagem de ser Presidente, queria nomear um governo e esperar que ele resista ao parlamento por essa via. Não seria, contudo, fácil continuar mais tempo a viver desse expediente.
E seria democraticamente triste que Macron tratasse de ignorar olimpicamente que a NFP foi, politicamente, a principal vencedora destas eleições.
Entretanto, alguns dirigentes da NFP querem ter a oportunidade de governar com o mesmo expediente que o governo de Macron tem usado, considerando que podem viver com uma maioria relativa na Assembleia Nacional, sem necessidade de negociar com os centristas ou com a direita. É expectável, com umas eleições presidenciais no horizonte, que nenhum dos outros blocos queira dar essa oportunidade à esquerda.
Haverá, designadamente na esquerda francesa, quem julgue que é preciso uma reforma profunda do sistema político - designadamente do sistema eleitoral, que alguns consideram que só será democrático se for proporcional - , estando, por isso, dispostos a qualquer solução entre "união republicana" e "governo de tecnocratas" para aguentar um ano, enquanto se fazem essas reformas, para depois voltar a dar a voz ao povo.

Em jeito de resmungo pessoal, eu diria o seguinte: (1) as nossas democracias estão a demorar a aprender que os parlamentos são o lugar da pluralidade e, portanto, devem ser o lugar da concertação e do compromisso - e, enquanto não aprendermos isso, estaremos sempre na tentação de termos poder suficiente para não precisarmos de mais ninguém, com a direita extrema sempre à espreita para parasitar a instabilidade e a incapacidade de compromisso dos partidos democráticos; (2) os debates daquilo que, por cá, eu chamei "esquerda plural", são, no essencial, os debates que a esquerda francesa vai ter de fazer para sair de pé deste desafio - e, aí, não tenho dúvidas de que um dos principais pontos de torção será o posicionamento face à União Europeia, onde as divergências ideológicas de fundo têm mais implicações em decisões políticas muito concretas.



Porfírio Silva, 9 de julho de 2024
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8.7.24

Derrotar a extrema-direita, não apenas por agora, mas duradouramente





Ontem, 7 de julho, foi a segunda volta das eleições legislativas antecipadas de 2024 em França e hoje, na minha responsabilidade de diretor do órgão informativo do Partido Socialista, entendi dever escrever o editorial do Acção Socialista. Reproduzo-o aqui, para registo.

***

DERROTAR A EXTREMA-DIREITA,

NÃO APENAS POR AGORA, MAS DURADOURAMENTE


Ontem, festejámos uma realização importante: os franceses travaram a extrema-direita! A Nova Frente Popular, juntando uma pluralidade de forças de esquerda – entre as quais, o Partido Socialista Francês –, num acordo político e eleitoral concretizado em pouquíssimos dias, elegeu mais deputados do que qualquer outra candidatura. O Ensemble, reunindo várias forças que se movem na influência do Presidente Macron, ficou em segundo lugar. Em terceiro lugar, em número de deputados, ficou o partido de extrema-direita animado por Marine Le Pen.


Numa semana em que tivemos duas eleições legislativas importantes no espaço europeu, Reino Unido e França, os socialistas têm muita coisa a festejar. O Partido Trabalhista britânico conquistou uma larguíssima maioria absoluta, acabando com mais de uma década de trapalhadas dos conservadores e permitindo a esperança de uma governação mais decente naquele país (por exemplo, acabando com o projeto de entrega de refugiados a países terceiros, ao arrepio das garantias com que os países civilizados se comprometem face à lei internacional). Pelo seu lado, o Partido Socialista Francês integrou a vasta reunião de forças de esquerda que trabalhou para impedir o acesso da extrema-direita ao poder – tendo conseguido concretizar esse desiderato. São, pois, duas realizações positivas de partidos com quem o PS mantém estreitas e cordiais relações, baseadas em valores e compromissos progressistas.


Convém, no entanto, continuar com os pés bem assentes na terra e sermos capazes de medir os desafios que temos perante nós. No Reino Unido, o Reform UK, o partido extremista liderado por Nigel Farage (o Trump inglês), só conseguiu eleger quatro deputados para a Câmara dos Comuns (o que compara com mais de quatrocentos eleitos pelo Labour), mas isso deveu-se ao sistema eleitoral vigente (uninominal maioritário a uma volta, em que, em cada círculo, “o vencedor leva tudo”). Em votos, esse partido extremista colheu mais de 14%. Ficou, pois, em terceiro lugar (os Trabalhistas venceram com mais de 33% e os Conservadores ficaram com mais de 23%). Em França, o partido extremista, que tenta apresentar uma imagem adocicada para melhor enganar os incautos, e que vai navegando em sucessivas gerações Le Pen, tendo, graças à “frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas mobilizadas por Macron. Era com este sistema que a extrema-direita ambicionava chegar à maioria absoluta, chegando o seu candidato a primeiro-ministro a dizer que só formaria governo nessas condições, pelo que não devemos dar qualquer crédito aos seus protestos pelo funcionamento do sistema depois de conhecerem os resultados das urnas – mas a questão merece reflexão.


O que estes números nos dizem é que, mais do que derrotar a extrema-direita hoje, é preciso derrotar a extrema-direita duradouramente. Agir nas raízes, não apenas na copa das árvores. É preciso eliminar as causas sociais e políticas do avanço da extrema-direita, única maneira de evitar que ela volte, mais forte a cada nova perturbação, até derrotar a democracia.


Para derrotar as causas sociais do avanço da extrema-direita é preciso ultrapassar a insensibilidade social que, por vezes, impede os partidos democráticos de atentar mais cuidadosamente na vida concreta das pessoas e dos territórios – e de lhes dar respostas substantivas. Em França, essa insensibilidade social apresentou-se, nos últimos anos, desde logo, no topo do Estado, com a atitude do Presidente Macron, tornando-se a marca dessa forma de centrismo equilibrista e com uma ideia de progresso excessivamente abstrata e desligada das realidades sociais.


Para derrotar as causas políticas do avanço da extrema-direita é preciso insuflar vida nas instituições democráticas, permitindo que a discussão real e concreta da vida quotidiana de todos os cidadãos e de todos os territórios se torne o centro da vida política – e criando espaços de verdadeira deliberação democrática, de tal modo que se torne visível que aquilo de que os políticos falam é mesmo acerca dos melhores caminhos para conseguirmos, todos, uma vida melhor. Uma democracia deliberativa é uma democracia que não se esgota na prevalência dos que têm mais votos: é uma democracia que se exerce escutando efetivamente os argumentos dos outros e integrando todos os contributos positivos num processo de ir continuando a tentar fazer melhor.


Para derrotar as causas políticas do avanço da extrema-direita é preciso que a esquerda não renuncie a ser alternativa: em vez de querer apenas rodar no poder com a direita, a esquerda deve trabalhar para oferecer soluções melhores, mais justas e mais sustentáveis, para a vida das pessoas e do país. Por isso, no caso da França, é importante que a Nova Frente Popular seja capaz de se manter unida a trabalhar por uma visão alternativa para a governação do país, com o programa comum que as diferentes forças de esquerda apresentaram em conjunto ao país, capaz de ultrapassar a insensibilidade social que o bloco centrista liderado por Macron tem protagonizado. E, ao mesmo tempo, para garantir que a derrota da extrema-direita não é momentânea, mas duradoura e profunda, é preciso que a esquerda vencedora, a Nova Frente Popular, seja capaz de trabalhar com as demais forças democráticas para criar o espaço social necessário para tratar das feridas e ir em frente: se foram capazes de se eleger mutuamente, apesar das diferenças, deverão ser capazes de recusar à extrema-direita a instabilidade e a crispação de que ela se alimenta.


Numa democracia representativa, onde o parlamento é o lugar central de deliberação, não faz sentido continuar com a ficção de que basta chegar à frente numa eleição para poder governar sozinho. Ninguém pode nunca governar sozinho, mesmo que tenha maioria absoluta no parlamento, porque, felizmente, a sociedade conta – e conta cada vez mais. Mais claro se torna que, ficando em primeiro lugar, mas com maioria relativa, é preciso trabalhar num horizonte mais amplo. E, claro, a esquerda só pode escolher trabalhar com os democratas, com os outros democratas. Com os democratas que não hesitam em defender a República face à ameaça da extrema-direita, porque só esses são democratas com que se pode contar. Numa palavra: em tempos difíceis, em democracias complexas, o sectarismo é suicídio. Em França como alhures. Quer isto dizer que a esquerda deve perder de vista a sua diferença, o seu contributo próprio? Não. Quer dizer que a esquerda relevante é a esquerda que, antes de mais, é a força democrática por excelência, a força determinante para que prevaleça a democracia contra o fechamento das sociedades e contra as tentações totalitárias.

 

(Para ler na publicação original, clicar aqui: https://accaosocialista.pt/#/1538/derrotar-a-extrema-direita-nao-apenas-por-agora-mas-duradouramente )



Porfírio Silva, 8 de julho de 2024
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2.7.24

"Conversa" com o chatGPT sobre aquilo que Diogo Costa chamou “instinto” na defesa dos penáltis

16:19


Ontem, 1 de julho de 2024, a seleção nacional de futebol enfrentou a equipa eslovena num dos jogos dos oitavos de final do Euro 2024. A intervenção dos guarda-redes foi decisiva. O guarda-redes esloveno (Jan Oblak) defendeu uma grande penalidade a cargo de Cristiano Ronaldo quase no fim da primeira parte do prolongamento, evitando que a sua equipa ficasse numa desvantagem mortal a poucos minutos do fim da partida. O guarda-redes português (Diogo Costa) conseguiu travar uma avançada eslovena onde ele era o único obstáculo entre o ataque e a baliza e, depois, no desempate por grandes penalidades, defendeu os três remates da marca dos onze metros dos jogadores eslovenos e assim, já que os três portugueses chamados à função concretizaram, a equipa portuguesa passou a eliminatória e os espetadores tiveram a oportunidade de ver algo raríssimo (não posso afirmar que seja inédito): um guarda-redes defender três penaltis no mesmo jogo.


Em declarações no final do jogo, Diogo Costa afirmou ter seguido cegamente o seu instinto (sem prejuízo, claro de ter treinado muito e de ter estudado os adversários). É aquilo que a maior parte das pessoas diria sobre tal situação: quando não sabemos explicar o nosso comportamento, dizemos que foi por instinto. Pelo menos, dizemos isso quando o comportamento deu o resultado esperado (é raro atribuirmos ao instinto uma decisão que deu um resultado que consideramos mau).


Tive uma “conversa” com o chatGPT acerca do que possa existir de investigação científica acerca da forma como guarda-redes defendem pontapés da marca de grande penalidade. O programa respondeu-me em vários planos: os guarda-redes estudam o histórico de execução dos seus oponentes e preparam respostas que consideram apropriadas; estudam posicionamentos iniciais que podem melhorar genericamente a sua velocidade de resposta ao remate; adotam estratégias que não dependem especificamente do que o marcador vai fazer naquele momento, mas que estatisticamente aumentam a probabilidade de ter a reação adequada; usam técnicas (movimentos corporais, gestos ou palavras) para distrair o jogador que vai executar o penalti; e os guarda-redes também podem melhorar a sua capacidade de antecipar o lado para o qual aquele jogador, naquele caso concreto, vai rematar.


Perguntámos, depois, especificamente, sobre investigação existente acerca do último tópico: capacidade do guarda-redes para antecipar o lado para onde será dirigido o remate. Essa capacidade é, por vezes, referida como “antecipação visual”, quer dizer, como é que o guarda-redes capta e interpreta pistas corporais e comportamentais do marcador que denunciam o lado para onde vai rematar. Mais uma vez segundo o chatGPT, há investigação sobre as seguintes questões: como é que os guarda-redes identificam e interpretam pistas corporais no momento da marcação, tais como a posição dos pés e a posição dos quadris, ou o ângulo de aproximação ao remate; onde é que os guarda-redes focam a sua atenção para ter essas pistas: pé de apoio do jogador ou orientação do corpo; como é que os guarda-redes fixam o olhar (mais ou menos longamente) em certos pontos críticos do corpo do rematador, de molde a focarem o que lhes possa dar mais indicações.


A questão seguinte foi esta: a capacidade do guarda-redes de antecipar o lado para o qual o rematador vai chutar pode ser descrita como decisão ou instinto (ou intuição)? A resposta foi: uma mistura de ambos. O estudo do histórico daquele rematador em concreto, o estudo das pistas corporais (pé de apoio, posição dos quadris, dos ombros e da cabeça, corrida de preparação), fornecem elementos para uma decisão. Contudo, há elementos que levam o guarda-redes a uma determinada resposta e que o próprio não consegue racionalizar: dizer que é a experiência que o ensina a reagir de determinada maneira é uma maneira de dizer que há um processamento não consciente da situação, das pistas, da comparação com casos anteriores, a que chamamos instinto por não sermos capazes de interpretar como funciona realmente esse mecanismo.


Nesta fase da conversa, foi preciso clarificar uma questão: é mais apropriado falar de “instinto” ou falar de “intuição” para nos referirmos à parte do comportamento do guarda-redes que não é propriamente decisão racional consciente? Lembramos que se começou aqui por falar de instinto por ter sido essa a expressão usada por Diogo Costa para explicar como determinou as suas defesas, mas que deve ser feita uma reserva a essa uso: instinto aponta para um comportamento inato (com o qual nascemos), regido por um certo automatismo, algo herdado e que não depende da experiência ou da aprendizagem. Não parece apropriado falar de instinto num caso em que, evidentemente, o guarda-redes estudou e treinou para modificar o seu comportamento. É mais apropriado falar de “intuição”, porque também se refere a comportamos que espoletamos sem recorrermos a um processo de raciocínio consciente (muitas vezes não somos capazes de explicar porque fizemos aquela opção), mas a intuição desenvolve-se com a experiência acumulada e com conhecimento adquirido, mesmo que a aplicação posterior dessa experiência e conhecimento seja um processo que não somos capazes de explicitar ou de consciencializar. O guarda-redes desenvolve a intuição com muito trabalho específico: treinando muitas vezes uma gama variada de situações, de tal modo que incorporou informação que depois vai usar muito mais rapidamente do que consegue pensar explicitamente, tomando decisões que são tão rápidas e não conscientes que até parecem automáticas. A intuição pode ser melhorada, com mais experiência e mais conhecimento, não é fixa – ao contrário do instinto.


Um outro tópico seria este: o que distingue a inteligência racional da inteligência intuitiva?


Deixemos isso para outra altura e anotemos as leituras que o chatGPT sugeriu sobre este tópico. O chatGPT sugeriu a consulta de três resultados de investigação sobre esta matéria.

Williams, A. M., & Burwitz, L. (1993). "Advance cue utilization in soccer" 

Este estudo analisou como os guarda-redes utilizam pistas visuais para antecipar a direção do chute. Os resultados mostraram que guarda-redes experientes conseguem identificar e interpretar pistas do movimento corporal do cobrador, como a posição dos pés, quadris e ângulo de aproximação, para prever a direção do chute. Mostraram que a análise consciente de pistas visuais pode ser treinada, mas que a aplicação dessas habilidades em jogo envolve decisões rápidas que muitas vezes se baseiam em instintos refinados. (Para quem tenha acesso, pode consultar aquihttps://doi.org/10.4324/9780203474235 )

 

Savelsbergh, G. J. P., van der Kamp, J., Williams, A. M., & Ward, P. (2005). "Anticipation and visual search behavior in expert soccer goalkeepers". Neste estudo, os investigadores estudaram os padrões de busca visual dos guarda-redes durante os penáltis. Descobriram que os guarda-redes experientes focam a sua atenção em áreas críticas, como o pé de apoio do jogador e a orientação do corpo, o que lhes permite antecipar melhor a direção do remate. Destacaram que os guarda-redes experientes têm padrões de busca visual mais eficazes, uma capacidade que, parecendo instintiva, é desenvolvida através de treino e experiência. (Para quem tenha acesso, pode encontrar aqui https://doi.org/10.1080/00140130500101346 )

 

Rienhoff, R., Tirp, J., Strauß, B., Baker, J., & Schorer, J. (2013). "The 'quiet eye' and motor performance: How skill level influences online and offline performance". Este artigo relata uma investigação sobre a técnica do "olho quieto" (quiet eye), que é o período de fixação visual antes de iniciar um movimento. Guarda-redes de elite mostraram fixações mais longas em pontos críticos (como o pé de apoio do jogador) antes do remate, permitindo uma melhor antecipação da direção. (Não consegui encontrar este artigo, mas há muito trabalho publicado sobre esta problemática.)




Gostariam de dizer algo sobre esta "conversa" com o chatGPT?

Porfírio Silva, 2 de julho de 2024
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16.6.24

A Nova Frente Popular em França



Face à ameaça de uma vitória da extrema-direita, e face à paralisia do campo liberal do presidente Macron, que, depois de ter desmembrado a esquerda e de ter desmembrado a direita tradicional, numa estratégia de “monarca” que despreza as estruturas de intermediação e de formação da vontade política que são os partidos, diversos partidos – e muito diversos são eles entre si – decidiram apresentar-se às eleições legislativas (precipitadamente) antecipadas em França na Nova Frente Popular.

Enquanto a luta, na “direita tradicional”, entre os que querem aliar-se à extrema-direita e os que querem ir autonomamente às próximas eleições legislativas, já vai no tribunal, os principais partidos da esquerda francesa elaboraram rapidamente um programa eleitoral e um esquema de repartição das candidaturas em todo o território nacional, formando a  Nova Frente Popular, destinada a concorrer às legislativas antecipadas que o presidente Macron marcou após constatar a vitória da extrema-direita (e a sua própria derrota) nas europeias deste mês em França.

 Essas eleições serão nos próximos dias 30 de junho e 7 de julho (primeira e segunda voltas).

Neste apontamento queremos deixar algumas anotações sobre este momento, basicamente nos seguintes aspetos: breve recordatória dos momentos mais recentes de cooperação à esquerda em França; descrição básica do processo “Nova Frente Popular” agora em curso em França.


Etapas anteriores

 

Vale a pena passar, brevemente, em revista a dinâmica das tentativas de juntar a esquerda nas últimas décadas da política francesa.

Depois do movimento unificador da esquerda não comunista francesa, que resultou na criação do PSF em 1971, em larga medida graças ao impulso de François Mitterrand, deu-se rapidamente um movimento de aproximação aos comunistas. Cabe lembrar que o PCF, liderado por Georges Marchais, era a força dominante da esquerda francesa, em termos organizativos e eleitorais, apesar da “crise cultural” que passara pelo Maio de ’68.

Assinado em 1972, o Programa Comum de Governo, entre o PSF e o PCF, a que se juntou o Movimento dos Radicais de Esquerda, foi a primeira tentativa séria, depois da guerra, para uma “esquerda plural”. Mitterrand foi o candidato da “esquerda unida” às presidenciais de 1974 (derrotado). Globalmente, o processo espoletou uma dinâmica que prejudicou eleitoralmente o Partido Comunista Francês: o PSF suplantou o PCF em eleições autárquicas e regionais em 1976 e em 1977.

A renegociação do Programa Comum para as Legislativas de 1978 fracassou (um dos principais pontos de desacordo foi o programa de nacionalizações proposto pelos comunistas e recusado pelos socialistas), o PCF rompeu com o Programa Comum, os partidos que o compunham concorrem separados, a direita volta a sair vencedora do escrutínio, mas acontece uma reviravolta: pela primeira vez desde antes da guerra, os socialistas tiveram (em eleições nacionais) mais votos do que os comunistas, emergindo o PSF como a força mais votada à esquerda (com 22%), perdendo o PCF a sua anterior preponderância (com 20%). O declínio eleitoral dos comunistas nunca mais parou e a cooperação entre os grandes partidos de esquerda entrara em crise ainda na oposição.

A nova oportunidade surgiu em 1981, quando Mitterrand foi eleito Presidente da República por toda a esquerda e nomeou um novo governo, com 4 ministros comunistas, seguindo-se uma vitória esmagadora em legislativas antecipadas (graças ao sistema maioritário). Rapidamente, graças ao insucesso do programa económico em contexto de crise internacional, o governo mudou de rumo e recomeçou o afastamento entre socialistas e comunistas – tal como começou uma viragem do PSF nas políticas públicas, num sentido bastante diferente daquele que proporcionara a aproximação aos comunistas.

A fase assinalável seguinte de cooperação à esquerda é a chamada “Esquerda Plural”: para as legislativas de 1997, uma rede de acordos liga o PSF, em entendimentos separados, com os Verdes, os Radicais de Esquerda e o movimento de Jean-Pierre Chevènement (antigo dirigente de uma corrente do PSF, dissidira e criara um movimento). Esses acordos, complementados por uma declaração conjunta do PSF e do PCF, configuraram o que se chamou a Esquerda Plural, que chegou ao governo com ministros e secretários de Estado dos vários parceiros, com o líder do PSF, Lionel Jospin, como primeiro-ministro.

Lionel Jospin foi, depois, candidato presidencial derrotado, não tendo passado da primeira volta, o que constituiu um terramoto na política francesa: a segunda volta das presidenciais foi disputada por dois candidatos da direita (direita tradicional e extrema-direita), apesar de, na primeira volta, o conjunto dos candidatos da esquerda terem recolhido mais de 42% dos votos. A extrema fragmentação da esquerda afastou-a da possibilidade de disputar minimamente o poder.

Mais recentemente, nas legislativas de 2022, que se seguem à reeleição de Macron para um segundo mandato presidencial, Jean-Luc Mélenchon (que foi, no passado, militante do PSF), consegue dinamizar a NUPES (Nova União Popular Ecologista e Social). A NUPES, cuja principal força é a France Insoumise, o partido onde pontifica Mélenchon, conta ainda com os ecologistas, os socialistas e os comunistas. Não constituindo, propriamente, um movimento de renovação da esquerda francesa (nem no plano das ideias, nem no plano da organização), e mesmo sem um verdadeiro sucesso eleitoral, consegue que Macron não tenha maioria absoluta no parlamento. Balanço eleitoral da NUPES em 2022: na segunda volta, a NUPES continuava em jogo em 385 círculos, enquanto, nas eleições de 2017, os partidos que a integram, concorrendo separados, só tinham sobrevivido à primeira volta em 146 círculos.

A NUPES nunca deixou de ser um campo político fragmentado, fragmentação essa muito alimentada pelo radicalismo político e comportamental de Mélenchon, apesar de não ser possível deixar de contar com o partido político atualmente mais representativo da esquerda francesa. Se a France Insoumise é, no atual quadro, incontornável do ponto de vista do peso eleitoral à esquerda, é evidente que Mélenchon é visto por muitos à esquerda como obstáculo a um aprofundamento da cooperação nessa mesma esquerda. Entre os episódios que evidenciam essa questão podemos mencionar as eleições de setembro de 2023 para a renovação parcial do Senado, onde socialistas, comunistas e ecologistas organizam candidaturas comuns, deixando de fora o partido de Mélenchon, que acusou o toque. Posteriormente, a posição de Mélenchon sobre o ataque do Hamas a Israel é considerada, por muitos, no mínimo dúbia, levando os socialistas a suspender a sua participação na NUPES. Nas europeias deste ano, os partidos integrantes da NUPES concorreram separadamente.


 A Nova Frente Popular

 

A Nova Frente Popular é uma coligação pré-eleitoral com um programa partilhado por todas as forças concorrentes (França Insubmissa, Ecologistas, Socialistas e Comunistas) e vai traduzir-se no facto de que em cada círculo eleitoral apresentar-se-á uma candidatura única apoiada por todos estes partidos (e outras organizações mais pequenas que atuam nas proximidades de algumas destas forças). Para isso, fizeram um acordo círculo eleitoral a círculo eleitoral, designando onde se vai tentar eleger quem (em termos de partidos, sendo que cada partido escolhe autonomamente os candidatos aos lugares que lhe couberam na distribuição).

A distribuição das candidaturas será a seguinte: a França Insubmissa terá 299 candidatos (são menos 100 candidatos dos “insubmissos” que na candidatura NUPES em 2022), 175 candidatos dos socialistas (reforçados, até tendo em vista a subida muito substancial que tiveram nas europeias), 92 candidatos dos ecologistas e 50 candidatos dos comunistas.

Entretanto (dificuldades) a França Insubmissa, de Mélenchon, está a ser acusada de sectarismo por ter excluído das suas listas algumas das figuras que são críticas do líder (vários deputados e deputadas atualmente em funções), enquanto mantém nas listas um condenado por violência doméstica (a quatro meses de prisão com pena suspensa).

Quanto ao programa, ou contrato de legislatura, e reconhecendo que preciso de mais tempo de análise para o perceber melhor, posso, desde já, indicar-vos que podem lê-lo na língua original (francês) no sítio da Nova Frente Popular (https://www.nouveaufrontpopulaire.fr/ ). Contudo, como acredito que muitos dos meus leitores não entendem facilmente o francês, deixo o link para o esquerda.net, que creio ter a única versão portuguesa disponível do “contrato de legislatura” da Nova Frente Popular: https://www.esquerda.net/artigo/aqui-esta-o-programa-eleitoral-da-nova-frente-popular/91330.

Não sou, em geral, partidário de “formas de fusão” entre partidos diferentes, preferindo formas de cooperação que preservam a autonomia e as diferenças específicas. Compreendo, no entanto, que um sistema como o francês favorece fortemente a concentração de votos e penaliza a dispersão, embora já não tanto como o antigo sistema maioritário puro. É isso que justifica, para muitos, que um campo tão fragmentado como a atual esquerda francesa tenha de procurar formas de concentração que permitam não desperdiçar as suas forças.

Para terminar, deixo uma imagem da distribuição das candidaturas pelas diferentes forças integrantes da Nova Frente Popular, numa imagem do Le Monde.



A entrega de candidaturas termina hoje.


Porfírio Silva, 16 de junho de 2024
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