A propósito do debate do estado da nação, ontem, no Parlamento, publiquei ontem este editorial no Acção Socialista, que aqui deixo para registo.
SENHOR PM, A TÁTICA DA MÁ-FÉ PREJUDICA A DEMOCRACIA
Ninguém critica o Governo Montenegro por não ter feito tudo
em 100 dias. Tal como ninguém critica que o governo da direita aproveite um
certo grau de convergência interpartidária registada na última campanha
eleitoral para as legislativas em torno de certas matérias para as fazer
avançar. Como aconteceu com as reivindicações dos professores relativas à sua
carreira, que teriam registado avanços qualquer que fosse o resultado das
legislativas. Não será o PS a cometer esse erro, até porque temos consciência de
que não conseguimos fazer tudo o que planeámos, num ciclo político que
enfrentou uma crise sanitária sem precedentes, uma guerra na Europa e uma crise
inflacionária com uma dimensão desconhecida para muitos. Não será o PS a
cometer esse erro, porque sabe que há muito por fazer, como sempre dissemos,
apesar de o seu ciclo de governação ter sido interrompido de forma extemporânea
e artificial.
O que se critica ao Governo é que seja mais um departamento
de propaganda do que um executivo nacional. Que tente enganar o país e fazer
passar por suas medidas que herdou, legisladas e em execução: como foi o caso
com a descida do IRS. Que não se importe de arriscar a credibilidade
internacional do país por pura tática política: como foi o caso com a tentativa
de denegrir o estado das finanças públicas, no que só recuou depois de
desmentido pela Comissão Europeia. O que se critica ao Governo é a tomada de medidas
que agravam as desigualdades em prejuízo dos que mais precisam, como é o caso
da operação fiscal justificada como política para os jovens. O que se critica é
a arrogância da incompetência, como tem sido demonstrado na área governativa da
Saúde, com tantos casos que seria difícil ter aqui espaço para elencar todos. O
que se critica ao Governo é que se esforce mais para parecer que governa do que
para governar.
Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100
dias, tem de criticar-se o Governo por se esgotar na guerrilha política e
mostrar completo alheamento face à responsabilidade, que é sua, de trabalhar
pela estabilidade da governação que propõe ao país.
Se um governo minoritário, liderado por um primeiro-ministro
cujo partido tem apenas uma bancada parlamentar da mesma dimensão da bancada do
maior partido da oposição, claramente insuficiente para governar sozinho,
aproveita o momento solene do debate parlamentar do estado da nação para atacar
em puro “politiquês” o principal partido da oposição, mostra o nível da sua
(fraca) ambição. Luís Montenegro não procura tempo e apoio para desenvolver
políticas públicas que continuem o esforço de desenvolvimento do país, porque
se o quisesse apresentaria ao Parlamento as suas ideias para construir as
soluções que o permitissem. Luís Montenegro não procura construir convergências
a partir da pluralidade, que é o esforço normal e necessário em democracias
onde a representação popular é ela mesma plural – e até, cada vez mais,
fragmentada –, continuando, ao contrário, num espírito de desforra que não pode
ser bom conselheiro: como exibiu hoje, de novo, no parlamento, classificando
como “usurpação” a constituição, em 2015, de uma maioria das esquerdas para
interromper a governação “além da troika” (esquecido, talvez, daqueles que, no
seu campo político, tinham já anteriormente teorizado a razoabilidade de
explorar todos os mecanismos constitucionais para criar uma maioria política,
mesmo contra a força que chegasse em primeiro lugar).
Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100
dias, o mesmo tem de ser criticado por querer ser o Governo dos 300 dias.
Quando o PS oferece disponibilidade para discutir, sem linhas vermelhas, as
grandes opções contidas no orçamento de Estado, o Governo procura saturar a
paciência dos socialistas com agressividade verbal e puro desdém. O Governo não
quer ter condições para governar. O Governo quer, apenas, poder continuar em
campanha eleitoral – e, para isso, procura umas eleições rápidas. Quem conduz
politicamente este Governo quer repetir a tática do “deixem-nos trabalhar” e
das “forças de bloqueio”, esquecendo que, passados todos estes anos depois da
primeira volta dessa tática, a instabilidade política tem um preço exorbitante,
que é a progressão do extremismo populista. A escolha da agressão constante ao
maior partido da oposição, tentando que se torne para os socialistas
insuportável negociar com quem assim se comporta, exibe uma má-fé política de
quem, depois, proclama uma abertura retórica nunca concretizada para
“consensos”.
A democracia não precisa de falsos consensos. A democracia
não precisa de que estejamos todos de acordo; precisa que as forças
democráticas sejam capazes de trabalhar por compromissos razoáveis e
equilibrados, compromissos que não ignorem as diferenças políticas e não
impliquem a renúncia aos valores fundamentais de cada um dos interlocutores.
Pretender que, em democracia, a vontade do Governo prevalece “porque sim”,
mesmo sem apoio maioritário, desconsiderando a representação cidadã que foi
confiada também a outros partidos, é negar a própria democracia. Usar
retoricamente a necessidade de compromissos e, depois, fazer tudo para afastar
quem está disposto a discutir peças tão decisivas como o orçamento de Estado, é
usar de má-fé. É preciso que o senhor primeiro-ministro compreenda que a má-fé
no debate democrático vai contra a própria essência deliberativa da democracia
– e vai de par com a sua tendência para desvalorizar o parlamento. A má-fé, a
retórica do diálogo usada como mero ingrediente de uma estratégia de
confrontação e rutura, com meros intuitos eleitoralistas, é deslealdade à
própria democracia. Senhor Primeiro-Ministro, essa tática da má-fé prejudica a
democracia – e a vida da democracia, estando difícil por todo o lado, bem
dispensa que se ofereçam mais oportunidades aos que engordam na instabilidade e
no clima de confrontação extremada.