5.11.24

Recusemos as agendas míopes




Deixo aqui, para registo, o editorial do Acção Socialista publicado na edição de ontem, 4 de novembro de 2024, da minha responsabilidade como diretor desse órgão de informação do PS.


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Recusemos as agendas míopes


Porque é que os partidos socialistas e sociais-democratas não são hoje revolucionários e são partidos gradualistas, que procuram melhorar a condição das pessoas cuja vida depende do seu trabalho, partidos que trabalham para avanços incrementais, que não jogam tudo ou nada numa “futura sociedade socialista”, que procuram melhorias passo a passo? Não é porque tenham perdido o sentido da utopia; é porque aprenderam, historicamente, que o foco exclusivo na agenda do proletariado não permitia progressos sociais significativos. Compreenderam que uma agenda mais vasta – a agenda da democracia, a agenda da construção de instituições democráticas – que não interessa apenas ao proletariado, mas também a outros grupos sociais – dava mais ferramentas de luta, reunia forças mais vastas, abria mais portas para concretizar objetivos de primeira importância para o interesse dos trabalhadores. E essas conquistas podiam enraizar-se mais solidamente em instituições democráticas. É dessa compreensão que nasce o socialismo democrático, ou a social-democracia, e que nascem os avanços sociais que têm sido possíveis por ação desta corrente política há mais de um século. A agenda do mundo do trabalho obteve vitórias mais profundas e duradouras por se ter incrustado na agenda da república democrática.


Hoje, de novo, os combates dos socialistas contra as desigualdades injustas, pelo trabalho como expressão de humanidade que não pode ser encarado como uma mercadoria, pela solidariedade organizada, esses combates só podem ser eficaz e eficientemente travados e vencidos se forem embutidos numa agenda mais vasta – a agenda dos direitos humanos. A nossa Constituição, ao definir Portugal, logo no seu artigo 1º, como uma República baseada na dignidade da pessoa humana, dá o rumo: o exercício de todos os direitos, bem como a assunção de todos os deveres, tem como horizonte a dignidade da pessoa humana. De toda a pessoa humana. Hoje, num mundo empestado de tentativas sistemáticas para dividir os povos em categorias estanques com critérios de oportunismo e de propaganda (como aqueles que falam de “portugueses de bem” para diminuir os que não sejam seus apaniguados), o primeiro inimigo de qualquer luta por direitos sociais é a desconsideração dos direitos humanos na sua universalidade. Num mundo atacado por populismos agressivos, a única estratégia possível para defender as conquistas sociais é não vacilar em matéria de direitos humanos, em matéria de dignidade da pessoa humana. Qualquer cedência ou fraqueza nossa em matéria de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana será paga, mais cedo ou mais tarde, em retrocessos sociais.


Essa é uma razão sólida para recusarmos agendas míopes, agenda imediatistas (pensar apenas na próxima eleição faz-nos correr o risco de perder a alma… e perder a próxima eleição).


O Secretário-Geral do PS, intervindo no encerramento do debate na generalidade do OE para 2025, deu ao país um bom exemplo prático de como se recusam agendas míopes. Afirmou, a dado ponto: “Para o atual Governo – como para toda a Direita – o conceito de Segurança limita-se à segurança da integridade física e da propriedade. Uma resposta que acaba sempre por falhar, porque não entendem que as sociedades mais seguras são as mais coesas e estáveis – e que as sociedades com maiores níveis de exclusão e de desigualdades são também as mais inseguras e as mais violentas.” Lá está: uma agenda míope para a segurança é uma agenda meramente securitária; uma agenda de vistas largas, uma agenda responsável para a segurança entra em conta com a coesão social. E, logo de seguida, disse ainda Pedro Nuno Santos: “Sabemos que, quando a insegurança e a instabilidade são endémicas, a esperança pode ser derrotada pelo medo. E todos sabemos que há na Política quem viva do medo, quem se alimente do medo, quem promova o medo.” E logo reafirmou, em nosso nome, em nome dos socialistas, que derrotaremos os que promovem o medo. Lá está: uma agenda de vistas largas para a segurança é uma agenda que recusa o medo, que recusa a promoção do medo.


É disso que precisamos, precisámos sempre e precisamos especialmente nos tempos difíceis que vivem hoje os democratas por todo o mundo: recusar agendas míopes, recusar agendas oportunistas, recusar ceder ao medo (e recusar a promoção do medo), lutar no quadro de uma ampla agenda democrática, de uma agenda de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana – a única agenda capaz de reunir as forças suficientes para impedir recuos nas conquistas sociais. E, tendo a ventura de viver num país com uma Constituição democrática, traçar uma linha clara assente na proteção constitucional da dignidade da pessoa humana e na defesa da legalidade democrática.


Porfírio Silva, 5 de novembro de 2024
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