O Presidente da República fez ontem, na cerimónia de comemoração dos 46 anos do 25 de Abril de 1974 no parlamento, um grande discurso. Foi um grande discurso, porque foi inteiramente sobre o momento que vivemos, sem fugir a nenhuma das questões que afligem o país: e isso é o melhor da política, quando o pior da política é falar de cor e salteado sobre coisas abstractas sem ligar ao que realmente está a acontecer às pessoas em cada momento. Foi um grande discurso, porque foi um discurso de adesão sem peias à democracia representativa: quando, tantas vezes, tem mostrado a face de um presidencialista para lá da Constituição, deu-se ao exercídio de uma empenhada explicação do papel da Assembleia da República na nossa democracia. Escrevi, no calor do momento, a seguinte mensagem nas redes sociais: "Na cerimónia do 25 de Abril na Assembleia da República, o PR deu o peito às balas, contra a demagogia e pelas instituições da democracia representativa. Eu, que nem sempre concordo com o PR, aqui declaro o meu respeito." Não me arrependo nem um segundo de o ter escrito.
O Presidente da República deu uma resposta cabal e inteira aos que, por estes dias, falaram da cerimónia do 25 de Abril no parlamento como «"democracia celebratória" da elite oficial, à margem dos cidadãos», mostrando como sempre volta à superfície, mesmo na "elite intelectual e letrada", mesmo entre o selecto grupo dos constitucionalistas, a pulsão antiparlamentar e o desprezo pela representação (como fizeram aqueles que disseram que "aprovar leis pode ser trabalho, mas uma cerimónia comemorativa não"). Curioso é ter visto quem, na ânsia de atacar o parlamento e a cerimónia, tenha ido buscar o exemplo do Papa Francisco sózinho na Praça de S. Pedro. Queriam dizer que também os deputados deviam seguir o exemplo, assim cometendo dois erros reveladores: primeiro, mostraram não distinguir entre uma teocracia (tecnicamente, como Estado, é isso que o Vaticano é) e uma democracia representiva, onde a diversidade é essencial e se corporiza no parlamento, nunca numa única pessoa; segundo, fazem de conta que valorizam o gesto de Francisco, mas, na realidade não o entenderam: se não o entenderam como acto simbólico, também não podem entender a força simbólica de uma comemoração no parlamento. Quem não entende a carga simbólica de uma cerimónia de Estado não passa de um funcionário do pensamento cinzento.
O Presidente da República ainda fez notar que há grandes diferenças entre uma democracia e uma ditadura no modo de lidar com estas situações. Falou, designadamente, na liberdade de informação. Talvez falte a alguns o registo adequado a perceber quão concreta esta questão é para o nosso país. Mas, para todos os que temos memória histórica, é notável a diferença que faz enfrentar um desafio desta dimensão em democracia e não em ditadura. Basta comparar o respeito pelas pessoas com que esta crise tem sido gerida com o absoluto desrespeito com que o governo da ditadura lidou com as vítimas das grandes cheias de 1967 no nosso país. A tentativa de usar a censura para esconder a dimensão da tragédia, que pode ter causado 700 mortes, onde 20 mil casas foram danificadas, prejuízos de mais de 17 milhões de euros a preços atuais, uma desgraça que atingiu os mais pobres, embora não tenha tocado os centros de poder. Enquanto os estudantes, do superior e do secundário, se mobilizavam como voluntários para socorrer a população, o governo de então primou pela inoperância e as forças de segurança foram usadas para perseguir os estudantes em vez de apoiarem as populações. (E Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos estudantes que se mobilizaram nesse momento.) É usar a memória e olhar para história, e comparar, para entender a diferença que faz enfrentar os momentos difíceis da vida de um povo em ditadura ou em democracia. E, por isso, faz todo o sentido assinalar solenemente o Dia da Liberdade no parlamento, na instituição da pluralidade democrática, precisamente nestes tempos difíceis e dolorosos de pandemia. Porque tudo o que está a ser feito é mais bem feito também por vivermos em democracia, porque a democracia é algo concreto nas nossas vidas e não um ideal abstrato.
(Sugiro duas leituras sobre as cheias de 1967: Cheias de 1967. A tragédia que Salazar quis esconder e Cheias de 1967: A miséria que a natureza esmagou e a ditadura encobriu .)
Quero voltar, aqui, a algo que já escrevi noutro sítio, no princípio desta polémica: não acho que sejam fascistas, ou anti-democratas, todos os que estiveram contra, ou tiveram dúvidas, sobre a cerimónia do 25 de Abril na Assembleia da República. Mas creio, isso sim, que foram empurrados por duas motivações erradas: ou estavam mal informados sobre o formato da cerimónia (que sempre esteve muito longe das 700 pessoas que costumavam estar dentro daquela sala em ano normal) ou estavam a alinhar numa interpretação estreita, demasiado funcionalista, do papel do parlamento numa democracia representativa - longe dos regimes onde o parlamento é decorativo.
Mas Marcelo Rebelo de Sousa explicou tudo isto muito melhor do que eu (como se pode verificar aqui: Discurso do Presidente da República na Sessão Solene Comemorativa do 46.º aniversário do 25 de Abril).
Porfírio Silva, 26 de Abril de 2020