Quero confessar-vos que, como cidadão e amante da liberdade - das liberdades concretas - receio os discursos daqueles que buscam o demónio da pandemia no facto de a nossa época ser um tempo onde massas imensas de pessoas não podem ser impedidas de viajar, visitar, viver, negociar, estudar, namorar, ..., por todo o mundo. Em qualquer recanto do mundo.
Explico-me.
Às vezes dizendo-o, outras vezes sem o dizer com todas as letras, lemos apóstolos inconfessos da autarcia misturarem a crítica (merecida) às injustiças económicas e sociais da globalização com a crítica (para mim absurda) à liberdade de circulação de pessoas, que tornou a Terra uma aldeia (para os que podem, não para todos). Essa mistura, tratando tudo como malvadez do capitalismo, só poderia, para ser consequente, resultar num conselho: não saiam da vossa terra, do vosso país, da vossa cidade, da vossa aldeia, da vossa empresa, da vossa universidade. Esse horror à mundialização é, desgraçadamente, querer conceder completa vitória ao vírus, sem luta e sem alma.
É ainda mais triste quando esse horror à mundialização é propagado por intelectuais, filósofos, pensadores, artistas. É que foram precisamente os intelectuais os que, historicamente, mais beneficiaram da largueza do mundo - e, durante largas épocas, os únicos que realmente dela puderam usufruir.
Tenham sido, ou não, os milhões de chineses que se espalharam pelo mundo com o vírus a origem próxima do fenómeno; tenham sido, ou não, os seus hábitos alimentares a ponte do vírus para os humanos; tenham eles andado em negócio ou em turismo enquanto infectados - identificar nesse espalhamento de pessoas pelo mundo a causa essencial da pandemia, em vez de apenas a causa contingente, e julgar que se encontra, a longo prazo e numa perspectiva civilizacional, um remédio apropriado em fechar cada povo na sua casa... é uma triste renúncia. É fazer do "proibido abraçar" um remédio que, em vez de ser a desgraça momentânea das relações entre pessoas, seria a desgraça permanente das relações entre povos. Inacreditável. Confundir distopia com utopia.
Os que tratam tudo isto como "capitalismo e ponto", e os que falam com desdém das tentativas de reabrir as nossas ruas com o regresso ao trabalho - e abrangem nesse desdém a tentativa (escândalo!) de pôr de novo a economia a funcionar, são a desgraça do pensamento. Aproximam-se, lamento dizê-lo, dos longínquos admiradores da "Revolução Cultural" de Mao, que também custou massas imensas de vítimas humanas em nome de uma ideia que nada curava do bem-estar concreto das pessoas reais. E tudo justificava em nome de uma ideia de organização futura da sociedade e do mundo. A diferença, abissal, é que Mao sabia bem que estava apenas a proteger o seu próprio poder pessoal e da sua clique. Hoje, neste contexto, "basta", tão simplesmente, adoptar sem reflexão crítica a ideia de que o mundo pode sobreviver um ano sem produção: a comida cairá do céu e com ela a água, a electricidade, os medicamentos, a capacidade para pagar a habitação,...
Precisamos de soluções políticas, quer dizer, precisamos de formas de nos organizarmos como sociedade que respeitem a dignidade de todas as pessoas humanas, não precisamos nada de profetas da salvação pelo encarceramento. Essa mitologia do fechamento é o que justifica que se deixem morrer os refugiados lá longe - e disso estamos fartos. E não precisamos de filósofos para justificar esse fechamento criminoso. Precisamos de soluções políticas: sociedades onde cada vez menos a saúde seja uma mercadoria - e quem diz saúde diz educação, habitação, cultura, ...Precisamos de um pensamento filosófico que dê consistência ética a uma sociedade decente, sem regressar a qualquer tipo de pensamento feudal pró-fechamento como ideal de vida em comum.
Porfírio Silva, 13 de Abril de 2020